Ano: 2001 Vol. 67 Ed. 2 - Março - Abril - (16º)
Seção: Relato de Casos
Páginas: 249 a 251
Surdez Súbita em Aids.
Sudden Deafness in Aids.
Autor(es):
Maria F. P. Carvalho*,
Renato Tidei**,
Fernando A. Q. Ribeiro***.
Palavras-chave: surdez súbita, síndrome da imunodeficiência adquirida, deficiência auditiva
Keywords: sudden deafness, Aids, hearing loss
Resumo:
A incidência de manifestações otorrinolaringológicas na Aids é muito alta (40 a 90%), sendo que a deficiência auditiva é a manifestação otológica mais freqüente. Pode ser condutiva ou sensorioneural, sendo esta geralmente progressiva e bilateral, causada por doenças oportunistas ou medicações ototóxicas. Os autores apresentam um caso de surdez súbita unilateral em um paciente com 44 anos de idade, portador assintomático do vírus HIV há quatro anos. O paciente, além da surdez súbita, não apresentava qualquer alteração clínica ou laboratorial, e a tomografia computadorizada de crânio e ouvidos e a ressonância nuclear magnética de crânio foram normais. Com estes resultados, concluiram que, neste paciente, a surdez súbita foi a primeira e única manifestação clínica da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) e sugerem a necessidade da investigação desta doença nos casos de surdez súbita de causa desconhecida.
Abstract:
The incidence of otolaryngological diseases in Aids is very high (40 to 90%), witch hearing loss is the commonest otological manifestation that can be sensorineural or conductive, often progressive and bilateral, caused by opportunist diseases or ototoxic agents. The authors present a case of unilateral sudden deafness in a 44 year-old male patient with virus HIV, but no symptoms for four years. Besides sudden deafness, he patient didn't present any other clinical or blood tests defect, CT and MR were normal. They conclude that sudden deafness was the first and unique manifestation of Acquired Immunodeficiency Syndrome (Aids) in this patient, and suggest deep investigation in a case of sudden deafness, considering Aids as a possible cause.
INTRODUÇÃO
Em junho de 1981 foram relatados os primeiros casos de síndrome da imunodeficiência adquirida ou Aids, em Los Angeles, nos Estados Unidos, em cinco pacientes homossexuais do sexo masculino, que apresentavam pneumonia por Pneumocystis carinii, e outras infecções oportunistas11. Em 1983 foi definido o agente da doença, um retrovírus chamado I HIV. Desde então, a doença se espalhou pelo mundo inteiro e, no Brasil, já existem notificados aproximadamente 30 mil casos, com predominância na região Sudeste6.
A Aids se caracteriza por um estado de imunossupressão que predispõe os pacientes infectados a infecções oportunistas, tais como pneumocistose e candidíase ou neoplasias, tais corno sarcoma de Kaposi. O HIV tem um tropismo pelos linfócitos T helper (CD4), levando a uma diminuição destes, alterando toda a resposta imune, por uma diminuição da interleucina2, alteração dos linfócitos B e das células natural killer, e inativando macrófagos.
A incidência de manifestações otorrinolaringológicas, incluindo região de cabeça e pescoço, em adultos é variável e, segundo a literatura, pode ser de 40% a 90%6. Muitas vezes, as primeiras manifestações da doença se encontram nesta área.
Em crianças, provavelmente, esta incidência é maior devido às infecções bacterianas recorrentes, que já são comuns. Segundo Figueiredo7 (1999), que estudou as manifestações otorrinolaringológicas em crianças com Aids, as otites médias foram os acometimentos otorrinolaringológico mais referidos, presentes em 62% das crianças. As manifestações na área da otorrinolaringologia estiveram presentes em 72% das crianças, sendo que as mais freqüentes foram: linfoadenopatia cervical, otite média secretora e otite média crônica. Os autores acompanharam 37 crianças doentes e compararam as infecções agudas que elas demonstraram durante este seguimento, com o seu estadiamento imunológico, e obtiveram os seguintes resultados:
- Estádio 1 (sem evidência de imunossupressão) - otite média aguda.
- Estádio 2 (imunossupressão moderada) - parotidite aguda.
- Estádio 3 ( imunossupressão severa) - sinusite aguda.
De acordo com a literatura, as manifestações otológicas mais comuns na Aids são: deficiência auditiva (62%), otalgia (50%), otorréia (31%), vertigens (15%) e zumbido (15%). As deficiências auditivas podem ser condutivas ou sensorioneurais13. A incidência da deficiência auditiva sensorioneural em aidédicos varia de 23% a 49%12. Normalmente progressivas e bilaterais, podem ser decorrentes de doenças oportunistas ou de medicações ototóxicas usadas para o tratamento destas, tais como anfotericina B, pentamidina, pirimetamina, cetoconazol, aciclovir, AZT, DDI10, e citostáticos, tais como a cisplatina2.
A surdez súbita em pacientes com Aids ocorre e pode ser atribuída à própria presença do vírus HIV no nervo auditivo. Isto ainda não foi confirmado, dado que o vírus até o momento não pode ser isolado neste local. Também pode ser decorrente de infecções oportunistas, devido à imunodepressão, tais como: otossífilis, toxoplasmose, criptococose (o Criptococcus neoformans já foi identificado no nervo coclear e no órgão de Corti)8, encefalites, meningites fúngica, bacteriana, tuberculosa ou virai (herpética); ou por tumores do sistema nervoso central, como linfoma ou sarcoma de Kaposi.
Não foi encontrado na literatura pertinente qualquer caso descrito de surdez súbita como primeira e única manifestação da Aids.
APRESENTAÇÃO DE CASO CLINICO
J. G. S., do sexo masculino, com 41 anos de idade, de cor branca, escriturário, procurou o Serviço de Otorrinolaringologia da Santa Casa de São Paulo, no dia 16/4/1998, encaminhado por seu infectologista, de um posto de saúde, onde era acompanhado como portador assintomático de HIV há quatro anos. Referia que havia sido contaminado em contato heterossexual extra-conjugal e fazia uso de AZT e DDI, prescrito pelo seu médico. Referia ainda queixa de deficiência auditiva súbita à esquerda há três dias, acompanhada de vertigem de média intensidade, que já melhorara.
Como antecedentes pessoais referia ter tido sífilis, tratada há 10 anos, negava contato homossexual e era tabagista de 10 cigarros por dia, há 25 anos. O paciente é casado, tem três filhos e nem a esposa nem os filhos são portadores do vírus HIV.
Exames laboratoriais:
o Hemograma completo: série branca normal, série vermelha, Hb e Ht normais, com aumento do volume corpuscular médio (VCM).
- VHS normal.
- Sorologia para toxoplasmose não reagente.
- Sorologia para mononucleose não reagente.
- Sorologia para sífilis e citomegalovírus IgG reagente e IgM não reagente (o que indica uma cicatriz sorológica para sífilis e citomegalovirose).
- Anti HBs não reagente.
- Lipidograma normal.
- Complemento total e frações normais.
- Fator anti-núcleo e fator reumatóide negativos.
Tomografia computadorizada de orelhas e crânio normais. Ressonância nuclear magnética de crânio normal.
Audiometrias: paciente realizou a primeira audiometria no dia de admissão no nosso Serviço, apresentando deficiência auditiva sensorioneural profunda à esquerda, com limiar por volta de 95 dB.
Evolução
Mesmo tratado com corticoterapia, no esquema de predinisona, em doses decrescentes num total de 16 dias - 60 mg em quatro dias, 40 mg em quatro dias, 20 mg em quatro dias e 10 mg em quatro dias -, o paciente não apresentou melhora do quadro auditivo (após quatro meses de controle com audiometrias) e abandonou nosso Serviço. Neste período, não apresentou qualquer outra manifestação de Aids.
DISCUSSÃO
A surdez súbita é definida como uma deficiência auditiva sensorioneural de instalação rápida, ou que se desenvolve rapidamente num período de horas ou poucos dias. Geralmente é unilateral, pode estar acompanhada de vertigens (50% dos casos), zumbido e sensação de ouvido tampado. A incidência nos sexos masculino e feminino é igual.
A surdez súbita pode ser classificada, etiologicamente, em dois grupos8:
1.) - Lesões localizadas no osso temporal.
a.) Schwanoma do VIII par.
b.) Tumor no ângulo ponto-cerebelar.
c.) Fístula na janela oval ou redonda.
d.) Aneurisma da artéria cerebelar ântero-inferior.
2.) - Doenças sistêmicas envolvendo o osso temporal.
a). Infecções virais que afetam a cóclea (como o vírus da caxumba).
b). Hipercoagulabilidade sangüínea.
c). Hiperviscosidade do sangue.
- policitemia vera;
- macroglobulinemia.
d). Arteriosclerose secundária a:
- idade;
- hipertensão arterial;
- diabetes;
- hiperlipidemia;
e). Doenças do colágeno.
f). Esclerose múltipla, sífilis, e outras.
Mesma assim, um número significante de quadros, mesmo bem investigados, permanecem sem diagnóstico etiológico, e são taxados de idiopáticos.
Bohadana e colaboradores1 (1998), em nosso meio, descreveram caso semelhante ao nosso, com surdez súbita como primeira manifestação da Aids, mas o paciente apresentava toxoplasmose do sistema nervoso central em estágio avançado, podendo ser esta a causa de sua perda auditiva. No paciente deste estudo, a surdez súbita foi a primeira e única manifestação da Aids, pois o paciente não apresentava qualquer tipo de afecção detectável.
No estudo de Marra e colaboradores, em 199710, foi estudado o efeito da terapia anti-retroviral no desenvolvimento da deficiência auditiva em pacientes com Aids. Foram estudados 99 pacientes submetidos ao tratamento anti-retroviral com drogas como: zidovudina (AZT), didanosina (DDI), zalcitabina, e stavudina. Como resultados, observaram que a prevalência. da deficiência auditiva sensorioneural, em pacientes submetidos ao tratamento com drogas anti-retrovirais, é significativa nos pacientes acima dos 35 anos de idade. Os autores atribuem como mecanismo para a deficiência auditiva associada à terapia anti-retroviral a lesão no DNA mitocondrial. Nucleotídeos dos agentes anti-retrovirais agem como destruidores da cadeia do DNA mitocondrial. Sabemos que mutações e deleções no DNA mitocondrial são responsáveis por deficiência auditiva sensorioneural nas formas sindrômica e não-sindrômica, sendo bem definida a mutação no DNA mitocondrial responsável pela ototoxicidade dos aminoglicosídeos3. Agentes anti-retrovirais podem conduzir a uma alteração na produção de energia (ATP) nas mitocôndrias das células da orelha interna, levando a uma deficiência auditiva sensorioneural. A freqüência das mutações mitocondriais aumenta com a idade; portanto, indivíduos mais idosos tratados com terapia anti-retroviral seriam mais suscetíveis à deficiência auditiva. O paciente do caso relatado fazia tratamento há quatro anos com AZT e DDI, mas o que não depõe a favor de uma lesão mitocondrial devido a esta drogas é o fato de deficiências auditivas causadas por mitocondriopatias geralmente serem bilaterais e muitas vezes progressivas5.
CONCLUSÃO
Visto que o paciente não apresentou qualquer sintoma clínico, alteração laboratorial ou de imagem que justificasse a etiologia da surdez súbita, concluímos que esta pode ter sido causada pelo próprio vírus HIV. Portanto, sugerimos que em todos os pacientes com quadro de surdez súbita, onde nenhuma causa seja confirmada, a pesquisa do HIV se faça rotineiramente - por ser, por si só, sua possível causa.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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* Pós-Graduanda da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
** Residente do Departamento de Otorrinolaringologia da Santa Casa de São Paulo.
*** Professor Adjunto do Departamento de Otorrinolaringologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo
Trabalho apresentado na forma de poster no 34° Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, em Porto Alegre/RS, em novembro de 1998.
Trabalho realizado no Departamento de Otorrinolaringologia da Santa Casa de São Paulo.
Endereço para correspondência: Dra. Maria de Fátima Carvalho - Rua Hilário Furlan, 107 - Brooklin Novo - 04571-180 São Paulo/SP.
Telefone / Fax: (0xx11) 5505-5363 / 5505-1915.
Artigo recebido em 1° de março de 2000. Artigo aceito em 18 de maio de 2000.