Ano: 1992 Vol. 58 Ed. 4 - Outubro - Dezembro - (11º)
Seção: Relato de Casos
Páginas: 290 a 293
Escleroma nasal e laringeo. Relato de um caso.
Nasal and laryngeal sclerom. Case report.
Autor(es):
Hamam A.C.S*,
Guimarães L.H.F.G.**
Palavras-chave: rinoscleroma, escleroina, laringe
Keywords: rhinoscleroma, scleroma, larynx
Resumo:
Os autores apresentam um caso de Escleroma nasal e laríngeo e discutem, junto a uma revisão bibliográfica, aspectos de epidemiologia, sintomatologia, patologia, diagnósticos diferenciais e tratamento.
Abstract:
The authors present a case of Nasal and Laryngeal Scleronn discussing a bibliographyc revision and aspects as epidemiology, symptomathology, pathology, differential diagnosis and treatment.
INTRODUÇÃO
O Rinoscleroma é uma doença inflamatória crônica, específica, causada por um diplobacilo Gram negativo, encapsulado, imóvel, com replicação intracelular em histiócitos, a Klebisiella rhinoscleromatis (Bacilo de Frisch).
É uma patologia de baixa infectividade, com evolução lenta, não tem preferência por sexo, incide em indivíduos de baixo nível sócio-econômico, mais freqüente entre os 20 e 40 anos de vida. É endêmica em alguns países da Europa Oriental (Hungria, Polônia, Ucrânia), África Central e do Norte (Egito), Ásia (Paquistão, Indonésia) e alguns países da América Latina (México Nicarágua El Salvador, Guatemala, Colombia, Venezuela)1,2,3,4,5.
Encontramos poucos casos descritos no Brasil6,7.
Em 1870, Von Hebra descreveu a patologia como uma forma cutânea de câncer "como massas proeminentes, de superfície esbranquiçada e consistência firme, ocluindo parcial ou totalmente as cavidades nasais, causando deformidades das asas e da pirâmide nasal", o assim chamado nariz de Hebra1,4.
Em 1876, Mikuliez relatou ser uma doença inflamatória.
Von Frisch, em 1882, isolou a Klebisiella rhinoscleromatis. O encontro sistemático do microorganismo nos tecidos associado aos estudos da imunofluorescência de anticorpos e a microscopia eletrônica atestam a etiologia bacteriana da doença. Estudos experimentais de inoculação do bacilo em mucosa nasal de ratos provocou a formação de nódulos típicos do Rinoscleroma no local e septicemia. Em coelhos houve reação granulomatosa própria do Rinoscleroma no trato respiratório inferior.
Conhecido por Rinoscleroma até 1932, durante o II Congresso Internacional de Otorrinolaringologia, em Madrid, foi mudada a nomenclatura para ESCLEROMA, pela publicação de casos comprometendo não só nariz, porém o termo é consagrado na literatura médica e evita confusão com outras doenças com prefixo "escler", como esclerose e eselerodermia2.
RELATO DO CASO
R.M.S.F., 26 anos, sexo feminino, cor parda, casada, natural de Santo Antonio da Platina - Paraná, operadora de máquina, apresentava queixa de obstrução nasal há 5 anos.
Sua história começou há 8 anos com rinorréia escura com formação de crostas bilateralmente ("formando um molde do nariz"), epistaxe esporádica e mau cheiro nasal. Há 5 anos a obstrução nasal tornou-se progressiva e iniciou-se um alargamento da pirâmide nasal, rinorréia posterior com "gosto ruim". Apresentava também dor em pontada freqüente no nariz, coriza ora amarelada, ora escurecida, com odor fétido. Referia ainda disfonia progressiva e tosse seca, com dispnéia leve em decúbito dorsal horizontal. Há 6 meses apresentava dor acentuada no nariz, sem sequer permitir tocá-lo, não melhorando com analgésicos comuns. Até então, não havia feito nenhum tratamento específico.
A paciente era tabagista e apresentava epidemiologia positiva para Leishmaniose. Referia ter sido submetida a duas biópsias de cordas vocais com resultado inconclusivo. Tinha um irmão com problema nasal semelhante.
FIGURA 1A
Ao exame apresentava-se em bom estado geral, cupnêica, corada, acianótica, afebril, com voz aspirada e atonal. A pirâmide nasal evidenciava um abaulamento em região lateral inferior bilateral (Figuras 1a e 1b), e estreitamento do orifício narinário às custas de tumoração arroxeada na região da válvula (áreas II e III). À laringoscopia indireta, a região glótica estava desarranjada por hiperplasia de banda ventricular esquerda, hiperemia difusa, edema e secreção catarral.
A Radiografia dos seios da face apresentava leve espessamento da mucosa de seios maxilares e etmoidais. A reação de Montenegro foi negativa em 5 amostras. À planigrafia de laringe, as pregas vocais estavam aumentadas com Ventrículo de Morgani não visível.
Foi realizada uma biópsia da tumoração nasal que revelou processo inflamatório crônico inespecífico, encontrando-se intenso infiltrado plasmocitário, com alguns linfácitos e histiócitos em vários graus de maturação, alguns vacuolizados.
A paciente foi submetida à cirurgia para esclarecimento diagnóstico, alívio da dor e da obstrução nasal. Por abordagem nasal associada ao "Midfacial Degloving" (figura 2), foi feita a exérese de uma massa arroxeada, sangrante, friável, sem limites precisos, infiltrando mucosa septal, assoalho, cornetos, cartilagens septal e laterais superiores, além de parte das inferiores. Permaneceu com tamponamento por 72 horas com antibioticoterapia sistêmica (Cloranfenicol e Ampicilina).
FIGURA 1B
FIGURA 2
Retirado tampão sem sangramento, as fossas nasais encontravam-se permeáveis até o 17a dia, quando começou haver queda do dorso nasal e estenose parcial do vestíbulo.
O exame Anátomo-Patológico dessa vez definiu a lesão: denso infiltrado plasmocitário com alguns histiócitos vacuolizados (Células de Mikuliez), caracterizando Rinoscleroma.
Dois meses após foi realizada microcirurgia de laringe com biópsia e diagnóstico de Escleroma Laríngeo.
A paciente foi medicada com Cefalexina por 18 meses na dosagem de 2g por dia, com controle hematológico e hepático periódico, sem que houvesse qualquer alteração dos parâmetros de normalidade.
Até o presente momento não há evidências de atividade da doença, estando o processo controlado.
A paciente encontra-se em programação de Rinoplastia Reconstrutora.
DISCUSSÃO
Não sendo o Brasil considerado como zona endêmica, apenas alguns casos foram aqui publicados. Granato e colaboradores, em 1977, publicaram um caso semelhante na sua forma nasal ressaltando a dificuldade diagnóstica por exame anátomo-patológico e a abordagem cirúrgica pela mesma via gengivo labial. Fazem referência ao primeiro caso publicado no Brasil por Adolpho Lutz em 1890 e à tese de Capistrano Pereira sobre Escleroma, de 1959. Infelizmente não tiveram acompanhamento do caso.
O Escleroma Nasal evolui por formas clínicas distintas e progressivas, havendo vários tipos de classificações, mas, basicamente, os autores consideram que há uma fase primeira chamada Catarral, Rinítica ou Exsudativa, onde há uma congestão da mucosa nasal, com rinorréia aquosa ou sanguinolenta, obstrução nasal, cacosmia, formação de poucas crostas, dor nasal e cefaléia. Na fase Atrófica as crostas são abundantes e com odor fétido. Nesta fase é importante o diagnóstico diferencial com a rinite atrófica ozeosa. Na terceira fase, Granulomatosa, infiltrativa ou nodular, como queiram alguns, há formação de um tecido de granulação, friável, sangrante, que atinge cornetos, assoalho e mucosa septal. Evolui com destruição óssea e cartilaginosa, sendo substituído na quarta fase por um tecido esclerótico cicatricial, podendo haver o comprometimento de outros órgãos do trato respiratório, com severa dispnéia1,9.
A doença, se não for tratada, atinge progressivamente outros órgãos como os seios maxilares (Antroscleroma)10, coana, óstio da tuba ouvido médio (Otoscleroma)3, pálato duro e mole, laringe, traquéia e brônquios, podendo levar à obstrução das vias aéreas e insuficiência respiratórias 11 As complicações variam com a extensão do processo. Existem casos descritos com comprometimento de linfonodos cervieais12, ducto lacrimal e órbita 13,14, invasão de fossa craniana anterior e meningite. É rara a transformação maligna (menos de 5%)1,3,9,15.
O diagnóstico é feito pelo quadro clínico característico, exame bacterioscópico com cultura de K. rhinoscleromatis, que não faz parte da flora normal do nariz e difere da K ozenae por algumas características bioquímicas e antigênicas 9 e exame anátomo-patológico, onde a microscopia vai mostrar "foamy eells" ou células de Mickufez, que são histiócitos vacuolizados que contém no seu citoplasma a K. rhinoscleromatis. Corpusculos de Russel circundam a célula de Mickuliez. A microscopia eletrónica mostra a bactéria dentro dos histiócitos1.
A sorologia tem valor quando positiva: os testes de fixação de complemento são específicos para K. rhinoscleromatis e tem sido utilizados como método de controle de cura pela sua negatividade após um tratamento eficaz. Os testes de aglutinação também são muito específicos, mas pouco sensíveis 1.
A Imunohistoquímica tem contribuído para a identificação dos antígenos capsulares pelo método de imuno-complexo peroxidase-antiperoxidase com a vantagem de se visualizar diretamente o antígeno por microscopia ótica convencional, além de permitir estudos retrospectivos 1,16.
A imunidade humoral não se altera no Rinoscleroma. Apesar da produção local de imunoglobulinas, os microorganismos ainda são capazes de se reproduzir, revelando talvez uma falência das respostas imunológicas celulares 16
Exames subsidiários devem ser feitos para pesquisar a extensão da doença, tais como: radiografia dos seios da face, laringoscopia direta, broncoscopia sialografia lacrimal e tomografia computadorizada 9,10,11,14,18.
O diagnóstico diferencial desta patologia deve ser feito com inúmeras outras, tanto inflamatórias quanto neoplásicas, variando com os diferentes estágios de evolução da doença. Na fase granulomatosa deve ser feito com Leislunaniose Cutâneo-Mucosa, Histoplasmose, Blastomicose, Criptococose, Esporotricose, Rinosporidiose, Tuberculose, Hanseníase, Lues e Actinomicose. Com a evolução destrutiva deve ser pensando no Granuloma Letal de Linha Média (forma grave do Linfoma, Reticulose Polimorfa ou Granulomatose de Wegener), Papiloma Invertido e Carcinoma Espinocelular. Alguns autores recomendam também não esquecer do Hemangioma Nasal e Neuroblastoma do Nervo Olfatório 5.
O tratamento é essencialmente clínico, sendo a bactéria sensível a um largo espectro de antibióticos, exceto Penicilina e Sulfasl. A Tetraciclina pode ser utilizada por meses ou anos, por ter baixa toxicidade, devendo ser evitada em crianças1,11,13,15,19. Pode ser associada com aminoglicosídeos como a Estreptomicina e a Garamicina em intervalos menores de tempo15,20,21. As Cefalosporinas como o Ceforanide22 e, principalmente a cefalexina, tem sido utilizada na dosagem de 2g dia por, no mínimo, 4 meses (o controle é clínico)11,15,19,21.
A Radioterapia suprime temporariamente o processo inflamatório, necessitando tratamento complementar. Alguns bacilos sobrevivem à irradiação e proliferam posteriormente21,23.
O laser de Argônio é utilizado como tratamento complementar no alívio da obstrução das vias respiratórias. Sob anestesia local, via fibra de quartzo é passado através do canal de aspiração do broncoscópio24.
O tratamento cirúrgico está indicado para o alívio da obstrução de vias aéreas, descompressão de órbita, Enfadenite cervical, ressecção de lesões restritas e isoladas ou para reconstrução estética2,11,12,13.
O tratamento local, segundo Gomea (1988) deve ser feito com infiltração nasal com Rifampicina25.
CONCLUSÃO
Trata-se de um caso de Escleroma Nasal e laríngeo em sua fase granulomatosa. Embora não sendo este país região endêmica da patologia, esta deve constar do nosso raciocínio clínico e entrar no diagnóstico diferencial dos processos tumorais e granulomatosos nasais.
A confirmação diagnóstica se faz pelo exame anátomo-patológico e, portanto, deve constar também da rotina dos patologistas a pesquisa de Células de Mickuliez e dos Bacilos de Frisch.
A escassez de casos não nos permite um protocolo terapêutico, mas a introdução das cefalosporinas no arsenal promoveu uma boa alternativa terapêutica de longo prazo, sem efeitos colaterais, neste caso.
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* Médico ORL do Hospital Sirio-Libanês e da Onoservice.
** Médica ORL da Otoservice.
Trabalho realizado em Clínica Privada - Otoservice.
Endereço para Correspondência: Alameda lraé, 620 - cj. 84 - Moema - 04075 - São Paulo.