Versão Inglês

Ano:  1935  Vol. 3   Ed. 2  - Março - Abril - ()

Seção: -

Páginas: 112 a 122

 

SINDROME DISSOCIADO ALTERNO DO VIII° PAR CRANEANO (1)

Autor(es): DR. ADERBAL TOLOSA (Da Clinica Neurologica e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de São Paulo. Chefe: Prof. E. Vampré)
DR. MARIO OTTONI DE REZENDE (Da Clinica Oto-rino-laringologica da Santa Casa de São Paulo. Chefe: Dr. Schmidt Sarmento).

Lues labirintica destrutiva

O diagnostico etiologico dos casos clinicos que afetam, com exclusividade, o aparelho labirintico do ouvido, não costuma ter bases seguras, tal como demonstrou a serie de exames a que tivemos de submeter o paciente de nossa observação. A ausencia das reacções serologicas positivas, tanto no sangue quanto no liquor, não deixou de trazer certa desorientação no diagnostico, feito, quasi que exclusivamente, pelo exame cuidadoso dos aparelhos auditivo e vestibular. A perspectiva de que se tratasse de um caso puro de lues, labirintica ou retro-labirintica, foi prevista com certa segurança pelos resultados obtidos com os exames destes aparelhos. As chapas radiograficas, tiradas posteriormente, vieram, como se poderá observar nos clichés apresentados, confirmar a existencia de lesões em ambos os rochedos, sobretudo no esquerdo, acima e pouco atraz do orificio do conduto auditivo interno; lesões que destróem o osso juxta-posto ao labirinto, causando a sintomatologia apresentada pelo paciente. O interesse da observação não se limita ao que ficou dito, mas está tambem no decurso clinico observado, sobretudo quanto ao successo medicamentoso adequado.

Eis a observação:

Jorge G., de 29 anos, branco, solteiro, estoniano, guarda-civil, residente em São Paulo. Deu entrada na Clinica Neurologica em Fevereiro de 1934.

Anamnese - Diz que seu pai falecera de cancer hepatico, tendo, ainda, mãe e duas irmãs vivas e sadias. Teve tifo e pneumonía na infancia. Furunculose. Blenorragia por varias vezes. Ha 6 anos ulceração venerea diagnosticada sifiloma. Tomou 3 series de 914 e grande numero de injeções intra-musculares, que não sabe especificar.

Molestia atual - Data de 2 anos e meio. Iniciou-se por surdez progressiva á direita. Nunca sentiu dôres e nem teve corrimento purulento nos ouvidos. Ficou surdo completamente do lado direito. Ha três meses foi assaltado por fortes dôres de cabeça, especialmente em sua metade esquerda, começando, tambem, a baixar a audição deste lado. Devido a cefaléa intensa baixou ao Hospital e, além desta, outras perturbações lhe apareceram: tonturas, vertigens e dificuldade no caminhar. Com o repouso, no leito, durante alguns dias, estes fenomenos atenuaram-se e foi nesta ocasião que deu entrada no serviço de Neurologia.

Exame do doente - Individuo forte, sem defeitos fisicos, regularmente constituido e com psiquismo normal ao primeiro exame. Entretanto, além da queixa definida, que apresenta, já relatada na historia morbida, narra multidão de pequenos sintomas sem nexo, mesmo disparatados. Parece tratar-se de um temperamento psicastenico; discretos sinais de lues. Nada de anormal no aparelho respiratorio.

Aparelho circulatorio: Pulso 80 na ocasião do exame. Pressão 13 e 8 (Tycos). Reforço do 2.° tom aortico.

Ap. digestivo: Obstipação cronica.

Ap. genito-urinario: Blenorragia cronica.

Sistema nervoso - O exame somatico pormenorizado revelou apenas um certo carater ébrio da marcha.

l.º EXAME do aparelho labirintico praticado em 10-2-1934:

a) - Coclear direito parece não ter mais função. As condições de ruido, de nosso serviço, não permitem, no entanto, uma afirmativa categorica.
b) - Coclear esquerdo reage normalmente.
c) - Vestibular direito hipo-irritavel. 150 cm3 de agua fria ligeiros abalos nistagmicos para esquerda e leve sensação vertiginosa.
d) - Vestibular esquerdo não é excitavel com 300 cm³ de agua fria. Mesmo com grande latencia não se produz nistagmo e nem vertigens.
e) - Vestibular direito, prova rotatoria, quasi no limiar da função normal.
f) - Vestibular esquerdo, prova rotatoria, não reage de fórma alguma.
g) - Não apresenta sinal de Romberg.
h) - Não apresenta ataxia.
i) - Nistagmo espontaneo para ambos os lados, sem vertigem.

E' aconselhavel radiografia da cabeça-frente e perfil.

Caso interessante pela dissociação das lesões num e noutro ouvido. O vestibular esquerdo destruido em suas funções, e o coclear direito da mesma fórma. Vestibular direito e coclear esquerdo funccionaram quasi que normalmente. A ausencia de outros sintomas e, sobretudo, o fenomeno de compensação apresentado pelo doente, falam por uma lesão periferica. De que tipo? Provavelmente osteo-mielite localizada, e assim, com 80% a favor da lues.

Radiografias praticadas nesta ocasião, pelo Dr. Cassio Villaça, revelam: (Figs. 1 e 2).

1)- Perde de substancia na face superior do rochedo esquerdo, ao nivel da eminencia arcuata, com destruição do arco osseo do canal vertical anterior deste lado. Conduto auditivo interno de aparencia normal.

2) - Sinal de rarefação, com tendencia á necrose, da mesma região do rochedo direito, mas sem lesão aparente, do canal semi-circular vertical anterior deste lado.

Exame do liquido cefalo-raquidiano (7-2-1934).

Punção sub-occipital em posição deitado - Pressão inicial 10 (Claude),

Exame citologico - 0,8 por mm³.

Dosagem de albumina - 0,15 grs. por litro. Dosagem de cloretos - 7,80 grs. por litro.

Pesquiza de globulinas - (R. Pandy, Nonne e Weichbrodt) - Negativas.

R. Benjoin coloidal - 00000.00000.00000.0

R. Takara-Ara - Negativa.

R. Wassermann - Negativa com 1 cc.

R. desvio de complemento para cisticercose - Negativa.

Dosagem de glicose - 0,56 grs. por litro.

(O. Lange).

Mesmo com todas as reações negativas, tendo em vista os resultados obtidos pelo estudo das radiografias, que demonstraram a existencia de uma zona de necrose ao nivel de ambos os labirintos, e pelas conclusões fornecidas pelo exame otologico, que falavam pela presença de um processo luetico retro-labirintintico, foi instituido um tratamento energico e intenso, com o 914 e Bismuto, conjuntamente, para 3 meses de duração.

2.º exame do aparelho labirintico - Em fins do mês de Abril de 1934, volta-nos o paciente, grandemente melhorado, sem nistagmo espontaneo, sem vertigens, continuando sem Romberg, sem ataxia, sem desvio do indice.

a) - Coclear direito parece ouvir C 3 quando fortemente vibrado. Ouve a vóz falada "ad concham". Este ouvido está abaixo dos limites da audição.
b) - Coclear esquerdo: audição normal, apresentando pequenas diferenças que podem ser tidas como erros de interpretação.
c) - Vestibular direito: 300 cc3 agua fria: produz nistagmo para esquerda-horizontal-rotatorio, de 50" de duração, seguida de sensação vertiginosa fraca.
d) - Vestibular esquerdo: 500 cc3 de agua fria não produz reação alguma. E' um nervo morto, virtualmente destruido.
e) - As provas rotatorias não foram repetidas.

O paciente vae bem melhor de suas sensações subjetivas e pensa poder, logo, entrar em serviço. Continúa o tratamento.


Fig. 1. - Lado esquerdo. Radiografia tirada em Fevereiro de 1934.



Fig. 2. - Lado direito. Radiografia tirada em Fevereiro de 1934.



Fig. 3. - Lado esquerdo. Radiografia tirada em Outubro de 1934.



Fig. 4. - Lado direito. Radiografia tirada em Outubro de 1934.


3.º exame do aparelho labirintico em 4-6-1934:

a) - Não apresenta nistagmo espontaneo.
b) - Não apresenta vertigens espontaneas.
c) - Coclear direito: não reage aos diapasões, Voz 0,10.
d) - Coclear esquerdo: audição aproximadamente normal.
e) - Vestibular direito - Hiper-excitavel.
f) - Vestibular esquerdo - Hipo-excitavel. Doente melhor - Continúa o tratamento.

4.º exame do aparelho labiríntico em 3-8-1934.

a) - Coclear direito: ouve a 0,10 e não distingue as palavras C 4 - 0.
b) - Coclear esquerdo: ouve e não distingue as palavras. C 4 = 0.
c) - Vestibular direito: 50 cc3 agua fria nistagmo para esquerda com duração e excursões normais.
d) - Vestibular esquerdo - 400 cc3. agua fria mal se esboçam ligeiros abalos.


O paciente parece ter peorado sob o ponto de vista da audição, pois o coclear esquerdo, até agora reagindo quasi que normalmente, pesa não distinguir as palavras, si bem que as ouvisse. O mesmo fáto que sou dá-se, tambem com o coclear direito. Este sintoma fala por uma afecção central ou nuclear, provavelmente devida á medicação insuficiente ou á ação do arsenico sobre o coclear (Herzheimer). Assim pensando, o doente que havia tomado, em 3 meses, 20 injecções intra-musculares de Yambi e 2 grs. 25 de 914, passou a tomar, nos 5 meses seguintes, mais 10 injeções endovenosas de 914, perfazendo 6,0 gramas de sal. Muito embora as melhoras se tenham acentuado bastante, a ponto de permitirem a volta do paciente á profissão que praticava, achamos que, pela gravidade do caso, a medicação deveria ser, ainda, mais intensa e combinada 914 e Bi, mais KI, pois que, este ultimo atúa bem nas afecções terciarias osteomielicas e gomosas.

Novas radiografias, feitas em Outubro de 1934, - Figs. 3 e 4 - mostram as grandes melhoras conseguidas pelo tratamento, mesmo insuficiente. As destruições osseas do rochedo esquerdo em via de franca reconstituição, e as lesões do direito praticamente cicatrizadas. A aposição de tecido osseo é evidente, se comparamos as radiografias tiradas em Fevereiro de 1934 com as de Outubro do mesmo ano.

De acôrdo com as melhoras demonstradas pelas chapas radiograficas, está o 5.° exame do apparelho labiríntico, praticado em 3-12-1934, que demonstrou:

a) - Vertigens espontaneas - 0.
b) - Nistagmo espontaneo - O.
c) - Romberg - O.
d) - Adiacocinesia - 0.
e) - Coclear direito - 0.
f) - Coclear esquerdo - Normal
g) - Vestibular direito - Hipo-excitavel.
h) - Vestibular esquerdo - ligeiramente hipo-excitavel.

O nervo coclear direito mantem o statu quo, isto é, não apresenta nenhuma melhora de audição, parecendo que sua lesão atuou desde o começo, pondo-o fóra de função. O nervo coclear esquerdo, felizmente, livrou-se em tempo de destruição identica e ainda é bastante para a vida de relação do paciente. O nervo vestibular direito, cuja hipo-excitabilidade peorava do primeiro para o segundo exame, passára á hiper-irritabilidade quando do 3.° exame, á normalidade no 4.°, e de novo, ligeiramente hipo-excitavel no 5.° exame.

O nervo vestibular esquerdo, que por ocasião dos 2 primeiros exames fôra considerado fóra de função, aparece no 3.° exame hipo-excitavel, no 4.° exame apenas irritavel com 400 cc.3. de agua fria, e, já no 5.° exame sómente com ligeiro grau de hipo-excitabilidade.

Além destas melhoras ha a acrescentar as subjetivas que, para a vida de trabalho do paciente, são as mais importantes: marcha bem, não tem vertigens, não tem nistagmo é nem tendencia á quéda. Os exames do labirinto foram praticados respectivamente em Fevereiro, Abril, Junho, Agosto e Dezembro de 1934. Acreditamos que com a intensificação do tratamento, os nervos vestibulares se normalizem de todo, assim tambem o coclear esquerdo, não sendo impossivel que o coclear direito possa, tambem, obter certo grau de melhoras.

Epicrise - Trata-se de um paciente que ha 6 anos adquirira um acidente luetico primario, seguido de tratamento antiluecito mal conduzido e insuficiente. Dois anos após a infecção, começára a ficar surdo do ouvido direito, surdez progressiva que fez com que considerasse este ouvido perdido para a recepção sonora. Três meses antes de ser, por nós, examinado, fôra obrigado a retirar-se do serviço, devido ao aparecimento de fortes vertigens, acompanhadas de surdez, tambem, do ouvido esquerdo, nauseas, perturbações acentuadas da marcha, que, no seu dizer, era como de um ébrio. Além destes fenomenos apareceram-lhe, conjuntamente, fortes dôres de cabeça. Estas sensações vertiginosas, assim como as perturbações na marcha, melhoraram bastante com o repouso no leito a que fôra forçado, persistindo, no entanto, as dôres de cabeça e certa instabilidade nos movimentos, bem como ligeiras vertigens quando da deslocação brusca da cabeça para um e outro lado.

Neurologicamente não apresentava, quanto ao exame geral, nada de importante, a não ser um carater ligeiramente psicastenico, marcha ligeiramente ébria e leves sinais de lues.

O primeiro exame do aparelho labirintico, feito por um de nós, revelou uma lesão completa do nervo coclear direito e do nervo vestibular esquerdo, cujas funções estavam anuladas em absoluto. O nervo coclear esquerdo reagia normalmente e o vestibular direito apresentava-se hipo-excitavel. As provas caloricas e as rotatorias deram resultados identicos e de acôrdo com o que ficou descrito. Estavamos, pois, em face de um caso curioso de afecção dissociativa bilateral do VIII.° par craneano, provavelmente de origem luetica.

As provas radiograficas vieram confirmar, com clareza, os resultados obtidos pelo exame neurologico do aparelho auditivo. Evidenciavam uma lesão destructiva, assestada sobre o labirinto esquerdo mais intensamente, e sobre o labirinto direito mais discretamente.

O exame do liquido cefalo-raquidiano, foi, no entanto, negativo em todas as provas. Reações de Pandy, Nonne, Weichbrodt negativas, assim como as do benjoin, Takata-Ara e Wassermann. Isto não infirma, como sabido, a justeza do diagnostico, pois como devemos ver mais adeante, ás vezes só muito tardiamente, e quando da ausencia de tratamento bem dirigido, as reações se tornam positivas. Mesmo a contagem celular não subira além de 0,8 p. mm3. muito embora a lesão radiografica demonstrasse a proximidade da dura-mater. Todos nós sabemos da resistencia que esta apresenta a não importa que processo infeccioso e da dificuldade que costuma opôr, a barreira por ela formada, á marcha das infecções que lhe são proximas. Só a invasão das meninges moles, pelo processo patologico, poderia trazer modificações no liquor.

O tratamento instituido - 914 e Bi - foi feito durante 3 meses, tendo o paciente melhorado acentuadamente sob o ponto de vista da audição e dos fenomenos subjetivos que o incomodavam, embora os vestibulares não hajam apresentado, objetivamente, as melhoras. Já quatro meses depois o coclear direito ouve a vóz falada a 0,10 e os vestibulares reagem: o direito com hiper-excitabilidade e o esquerdo, que não reagia com 500 cc3, no segundo exame apresenta-se hipo-excitavel neste momento.

Em Agosto de 1934, isto é, 2 meses depois, em razão da deficiencia de tratamento, ambos os cocleares apresentavam-se com reações auditivas fortemente abaixadas, sendo que tanto o
direito quanto o esquerdo ouviam e não distinguiam as palavras e, ainda mais, ambos nada ouviam da diapasão C 4. Reacção de Herxheimer? O vestibular direito funcionava bem e o esquerdo mal respondia ao estimulo de 400 cc3 de agua fria.

Aumentado e intensificado o tratamento pelo 914, que até aqui utilisavamos com cuidado, afim de sabermos, como o receberia o paciente, dada a sucetibilidade que os nervos, vestibulares sobretudo, têm por esta medicação, e acrescentado do auxilio importante do Bi, o paciente melhorou, de novo, como demonstrou o exame neurologico do aparelho labirintico, praticado em 9-12-1934, isto é, 4 meses após ao que denotára a peora mencionada. Neste exame o doente não se queixava de nenhum dos sintomas subjetivos que, primitivamente, o incomodavam. O nervo coclear direito não reage ao estimulo sonoro. 0 coclear esquerdo mostra-se normal. Os dois nervos vestibulares apresentavam-se hipo-excitaveis. Novas radiografias, tiradas em fins de Outubro de 1934, dão mostra das grandes melhoras obtidas pelo paciente, pois que o processo destructivo paralizou e regrediu mesmo no labirinto esquerdo e parece cicatrizado no direito.

A curiosidade de nosso caso reside em muitos pontos, dentre os quais destacaremos, preferencialmente, alguns mais interessantes:

l.º - Dissociação da afecção neuro-labirintica - Afectados o nervo coclear direito e o nervo vestibular esquerdo que estão, praticamente, fóra de função: o nervo coclear esquerdo está integro e o nervo vestibular direito ligeiramente hipo-excitavel.

Dentro os autores, GUSTAV ALEXANDER, que, com mais minucias, e com maior abundancia de casos observados, estudou a nervo-labirintite luetica, em todos os estadios da molestia, não se refere á fórma curiosa que o nosso caso apresenta. Assim acha, este autor, que os casos de afecções labirinticas de gráu leve (ruidos subjetivos, ligeira diminuição da audição, ligeiras vertigens labirinticas), são de observação frequente na lues tardia. Raros, no entanto, são os de afecções graves com grau de abaixamento da audição ou mesmo surdez completa, acompanhados de violentos ataques vertiginosos.

Na maioria dos casos o comprometimento do ouvido interno, na lues antiga, se processa em todo o labirinto e, raramente, ataca o coclear isoladamente. O ataque isolado dos vestibulares, tem sido observado com extrema raridade. Este autor menciona, dentre os numerosos casos que estudou, afecções unilaterais totais: coclear e vestibular, ou bilaterais, totais, com combinações de casos afectados de um lado totalmente e de outro um dos ramos do 8.° par mais doente que o outro. Não apresenta, no entanto, nem ALEXANDER, nem outro qualquer autor, dos quais compulsamos trabalhos exaustivos, dentre estes OSCAR BECK, que mais particularmente estudou a sifilis do ouvido, caso algum em que a molestia tivesse dissociado, tão nitidamente, os dois nervos, de que se compõe o 8.° par craneano, tanto de um como de outro lado.

2.º - Lesão ossea destructiva de ambos os labirintos provavelmente gomosa, lesando mais profundamente a região do canal semi-circular vertical anterior esquerdo, e a mesma região do rochedo direito, porém, em gráu menor.

Estas lesões, claramente demonstradas pelas chapas radiograficas, explicam bem a sintomatologia apresentada pelo doente. Na maioria dos casos, dizem os autores, as molestias do 8.° par craneano, são ocasionadas, na sifilis, por uma endarterite luetica regional, e, sómente excepcionalmente, por uma formação gomosa. As alterações arteriais ocasionam perturbações de nutrição do nervo e produzem, assim, sua atrofia degenerativa, bem como do nervo-epitelio.

HABERMANN menciona um certo numero de observações nas quais o nervo acustico apresentava-se atrofiado devido a um estreitamento do conduto auditivo interno (otite sifilitica hiperplastica, periostite sifilitica-ossificante), ou por uma goma da base do craneo.

3.° - Negatividade de todas as reações do liquido cefalo raquidiano - O fáto de serem normais as pesquizas de rotina praticadas no liquido cefalo-raquidiano de nosso paciente, não infirma a etiologia sifilitica da lesão ossea. Embora as radiografias mostrassem que a osteíte se assestava em região muito proxima das meninges, o resultado normal das pesquizas liquoricas mostra cabalmente que o processo não tinha ainda invadido as meninges moles, constituidas pelo conjunto pia-aracnoide, nem mesmo produzido alterações na ecto-meninge, dura-mater, cuja constituição fibrosa opõe, como é sabido, grande resistencia á propagação, de processos flogisticos para o interior da cavidade craniana. Sómente quando, progredindo sucessivamente, o processo osseo alcança a dura-mater, alterando-a mais ou menos profundamente, se dá o aparecimento de modificações liquoricas indicadoras do acometimento das meningeas moles. Nestas condições surgem primeiramente alterações banais, comuns a todos os processos inflamatorios: hipertensão, hipercitose com predominancia de linfocitos e hiperalbuminose com discreta hiperglobulinose.

Sómente mais tarde ainda, quando o processo inflamatorio das lepto-meninges adquire as caracteristicas anatomo-patologicas das meningites sifiliticas, com invasão secundaria do parenquima nervoso visinho (encefalite proximal) as alterações liquoricas tomam aspeto mais tipico. Encontraremos então: hipercitose com predominancia de celulas mononucleares e de plasmocitos, hiperalbuminose com predominancia da fração globulina sobre a serina, positividade das reações coloidais com as curvas tipicas das afecções lueticas (floculação nas zonas situadas á esquerda), e por ultimo, positividade das reações de floculação e de desvio de complemento (reações de Kahn e de Wassermann).

No caso presente entretanto, a normalidade do liquor indica a integridade da dura-mater e, com maior razão, a integridade das leptomeninges e do encefalo. Limitado como estava o processo ás partes osseas, era natural a normalidade do liquido cefalo-raquidiano.

Sintomas - A capacidade auditiva apresenta-se diminuida em grãos diversos, alcançando, em alguns casos, a surdez completa unilateral, como em nosso caso, ou bilateral como já varias
vezes foi observado. Pequeno grau de surdez pôde escapar á atenção do paciente. A dureza do ouvido póde ser progressiva, agúda, com ataques de peora ou apopletiforme. Os ruidos subjetivos existem em quasi todos os casos e ás vezes são continuos, outras vezes intermitentes, podendo desaparecer por muitos meses.

Os sintomas vestibulares consistem em ataques vertiginosos, leves ou fortes, com sensação de rotação dos objetos envolventes, nauseas, vomitos, e ás vezes, convulsões. Em alguns casos os sintomas labirinticos podem ser fracamente progressivos ou mesmo podem estar ausentes. O grau das perturbações vestibulares é diverso, não possuindo, no entanto, caracteristica alguma que faça pensar em sifilis. Geralmente os sintomas decorrentes da coclea precedem as provenientes do vestibulo. Em alguns casos a ataxia pôde estar presente e em muitos, como no de nossa observação, os pacientes queixam-se de fortes dôres de cabeça.

Exame: - As provas funcionais do coclear revelam uma afecção do ouvido interno. Fenomeno caracteristico, porém, de uma etiologia luetica, é o constituido pelo grande encurtamento da condução ossea (Schwabach encurtado), sintoma de O. Beck. Nos casos de grande dureza do ouvido (vós conversação 5 m. e abaixo), a percepção de sons pela via ossea póde apresentar-se completamente abolida. Os tons altos são, quasi que sem excepção, mais ou menos diminuidos.

O grau da audição, pelas provas funcionais póde ir desde uma pequena diminuição até a surdez completa. As alterações patologicas do labirinto estatico são caracterizadas pelo nistagmo espontaneo. Nos casos benignos este sintoma existirá quando do olhar para ambos os lados (á direita quando do olhar á direita e á esquerda quando do olhar á esquerda). Existam fortes sensações vertiginosas, então o componente breve do nistagmo será sempre dirigido para o lado doente, durando tanto quanto durar a irritabilidade reflexa do aparelho vestibular. Desaparecida esta, dirigir-se-á ele para o lado aposto. As perturbações do equilibrio, de origem labirintica, existirão, sobretudo, no inicio da molestia. Estas podem ser tão fortes que cheguem a impedir a marcha e mesmo a posição em pé do paciente; este terá que deitar-se e procurar uma posição em que as vertigens não se manifestam. Uma das caracteristicas da lues labirintica é a que se refere ás respostas dadas ás provas funcionais; ao lado de uma hipo-irritabilidade á prova rotatoria, podemos encontrar uma hiper-irritabilidade á prova calorica, assim como uma excitabilidade normal á prova galvanica. Estes factos, ou casos de aspeto contrario, são quasi que propriedade da lues labirintica, muito emobra, uma ou outra vez, possam, tambem, ser encontrados em outras afecções do labirinto, mas não com a insistencia com que são observados na sifilis do ouvido interno.

Decurso e prognostico: - A melhoria da audição tanto póde ser observada nos casos ligeiros, quanto nos graves. O "restitutio", porém, da audição normal, tem sido observado raramente. "Quanto peor fôr a capacidade auditiva no acmé dos sintomas, tanto maior será o perigo de que a molestia decorra com grande abaixamento da audição, quiçá, mesmo, com surdez completa" (Alexander). Os casos que dentro das 2 primeiras semanas não demonstrem abaixamento notavel da audição, raramente peorarão nos periodos tardios da molestia. GRADENIGO distingue 3 tipos de casos de comprometimento do coclear: os de inicio vagaroso, rapido e apoplectiforme. "Obturação repentina ou ruptura de uma arteria labirintica, póde produzir uma surdez apoplectiforme: estes casos são observados, particularmente na lues inveterada, raramente na lues recente. O decurso varia, sendo que nos casos de surdez de inicio apoplectiforme ou ela é imediata, ou de curso rapido, e em tais casos é, comumente, unilateral. O outro ouvido adoecerá anos depois, da mesma fórma". No territorio do labirinto estatico a molestia póde conduzir, nos casos graves, á incapacidade funcional definitiva. Nos casos benignos restarão, durante semanas ou meses, maior ou menor irritabilidade do labirinto, com conservação, porém, de sua reflexibilidade.

O prognostico para os casos que não foram tratados, ou o foram de modo defeituoso, durante o periodo inicial da molestia, é peor que para os que receberam tratamento completo. O prognostico será influenciado, tambem, pela época em que foi iniciado o tratamento: ele será tanto melhor quanto mais proximo do aparecimento dos sintomas labirinticos, tiver inicio o tratamento (ALEXANDER-O. BECK, RUTTIN, GENNERICH, ROOSA, etc.)

Não falaremos do modo porque deva ser instituido o tratamento, pois, já, nos referimos a ele. A aplicação dos sáis arsenicais deverá ser reservada aos casos, como os de nossa observação; em que o paciente haja ingressado no terceiro periodo da molestia. Mesmo nestes casos será o cuidado a base do proseguimento neste caminho, pois que sabido é o modo sensivel com que costuma o nervo oitavo, receber tal medicação. Muitas vezes uma surdez definitiva correrá por conta mais do agente medicamentoso que pela molestia. O Bismuto constituirá auxiliar precioso, bem assim o Hg. e, nos casos como o nosso, o iodureto de potassio, dado internamente, acudirá, com vantagem, a cicatrização do processo luetico.

Deixamos, aqui, consignados os nossos agradecimentos á nimia gentileza do Dr. Cassio Villaça, que nos proporcionou, em seu escritorio particular, as magnificas radiografias apresentadas
e ao Dr. Oswaldo Lange que, com a proficiencia costumeira, examinou o liquido cefalo-raquidiano do paciente.

RESUMÉ:

DRS. MARIO OTTONI DE REZENDE et ADERBAL TOLOSA - "Syndrome de dissociation alterne de la huitième paire crânienue".

Les AA. s'occupent minutieusement d'un cas de dissociation alterne de la huitième paire crânienne, consecutive - selon les radiographies prises, le traitement ex-juvantibus et les réactions sérologiques du sang - à des altérations osseuses (osteite d'origine syphilitique) du rocher, au niveau du canal semi_circulaire vertical antérieur.

Les épreuves pour l'examen de l'oreille interne ont permis de décèler l'existence d'une dissociation alterne des deux branches (cochleaire et vestibulaire) qui constituent la huitième paire.

Le traitément spécifique achève la guérison, avec disparition de l'ataxie et des vertiges, qui empêchaient le malade de travailler.

L'audition a été très amelioré et aussi on a observé radiographiquement, une reconstitution eles altérations osseuses, observées auparavant.

BIBLIOGRAFIA

1) - ALEXANDER, G. - Die Syphilis des Gehoerorgans - Wien - A. Holder.
2) - BECK, O. - Ueber Erkrankungen des inneren Ohres und deren Beziehung zur Wassermannschen Reaktion. Monatschr. f. Ohren-heilk. 1910 - Pag. 28.
3) - BECK, O. - Oesterreich. Otol. Ges. 31-10-1910 - 28-11-1910 - 27-2-931 - 26-5-1911 -
22-6-1914 - 26-10-1914.
4) - BECK, O. - Syphilis als Ursache isolierter retrolabyrinthaerer vestibularerkrankungen. Monats. f. Ohrenheilk., 1914 - Pag. 514.
5) - BECK, O. - Ueber Knochenleitung bei Lues. Monats. f. Ohrenheilk. 1913.
6) - BECK, 0. - Allgemeine Pathologie des Lues des Ohres. DenkerKahler - Vol. 6.° - Pag. 724.
7) - KOBRAK - Untersuchungen des Nervus octavus usw. PassowSchaefers Beit. Vol. 14 - 1920.
8) - ROOSA - Syphilitische Erprankungen des inneren Ohres - Zeitschr. f. Ohrenheilk. usw. - Vol. 9.
9) - RUTTIN, E. - Zur differentialdiagnose der Labyrinth und Hoernervenerkrankungen. Zeitschr. f. Ohrenheilk. Vol. 57 - 1908.
10) - WANNER - Der Schwabachsche Versuch bei Erkrankungen des inneren Ohres auf luetischer Grundlage. Zeitschr. f. Ohrenheilk. - Vol. 75 - Pag. 150.
11) - BECK, O. - Syphilis des Ohres und seiner zentralen Bahnen - Denker-Kahler - Vol. 7.° - Pag. 650.
12) - HAUG - Gumma des Warzenfortsatzes - Arch. f. Ohren-, Nasenusw. Vol. 36 - Pag. 201.
13) - GENNERICH, W. - Die Syphilis des Zetttralnerven-systems - usw. - Berlin 1921 - Verlag Julius - Springer.

(1) Comunicação apresentada á Secção de Oto-rino-laringologia da Associação Paulista de Medicina, em 17 de Dezembro de 1934.

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