Versão Inglês

Ano:  1994  Vol. 60   Ed. 3  - Julho - Setembro - (13º)

Seção: Relato de Casos

Páginas: 236 a 239

 

Otite Média Supurativa e Tromboflebite do Seio Lateral: Relato de um Caso e Revisão Bibliográfica.

Suppurative Otitis Media and Lateral Sinus Thrombophlebitis: A Case Report and Literature Review.

Autor(es): José Faibes Lubianca Neto*,
Luiz Felipe Borba Vieira*,
Celso Dall'Iga**,
Arnaldo Linden***

Palavras-chave: Otite média supurativa, tromboflebite do seio lateral

Keywords: Suppurative otitis media, lateral sinus thrombophlebitis

Resumo:
Os autores descrevem um caso de tromboflebite do seio lateral secundária a uma otite média crônica colesteatomatosa. São discutidos, através de uma ampla revisão de literatura, fatores epidemiológicos, etiológicos e terapêuticos dessa complicação intracraniana do colesteatoma.

Abstract:
The authors report a case of lateral sinus thrombophlebitis associated to suppurative otitis media. Epidemiological, etiological and therapeutical aspects of this intracranial complication are discussed through literature review.

INTRODUÇÃO

As otites médias supurativas podem ser agudas ou crônicas. Dentro das crônicas, distingüem - se dois grupos: as não colesteatomatosas (mais comuns) e as colesteatornatosas. Embora menos freqüentes, as otites médias crônicas colesteatomatosas são normalmente as que trazem maior perigo, devido ao seu potencial destrutivo e invasivo. As complicações da otite média supurativa são classificadas em temporais e extratemporais. As extratemporais se subdividem em intracranianas e extracranianas. O presente artigo versará sobre as complicações intracranianas, com especial destaque para a tromboflebite do seio lateral.

A incidência das complicações intracranianas das otites médias supurativas diminuiu bastante com a introdução de agentes antimicrobianos eficazes nas décadas de 1930 e 1940. As taxas de incidência de 2,3% da era pré - antibiótica reduziram - se para 0,04% após a introdução dos antimicrobianos 1. No entanto, essas complicações continuam apresentando altas taxas de morbimortalidade, em alguns tipos atingindo até 36% de mortalidade 3 De acordo com os dados de uma série de 224 pacientes, as complicações mais comuns da otite média supurativa, em ordem decrescente de freqüência, são a meningite, o abscesso cerebral, o abscesso extradural e tromboflebite do seio lateral (TSL) 4. No entanto, Miniti e cols., relatando a experiência em complicações intracranianas das otomastoidites do Serviço de ORL da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, encontraram 14 casos de TSL, oito casos de meningite e 7 casos de abscesso cerebral 5. Ressalte - se a imensa discrepância entre os dois trabalhos, principalmente com relação à incidência de TSL.

Em uma estimativa média dos dados disponíveis da literatura, a TSL representa 5 a 17,4% das complicações intracranianas de otite'- e. Embora os antibióticos tenham reduzido drasticamente a freqüência da TSL como complicação otogênica, o mesmo não se observou comas taxas de mortalidade, que atualmente permanecem entre os índices de 10 a 36%'. O objetivo desta comunicação é chamar a atenção dos otorrinolaringologistas não familiarizados com essa complicação, para possibilitar um diagnóstico e tratamento precoces.

RELATO DE CASO

SPVR, 25a, masculino, branco, agricultor. Estava hospitalizado em sua cidade no interior do Rio Grande do Sul com queixas de otorréia de 15 anos de duração e cefaléia holocraniana intensa, parcial e transitoriamente aliviada por analgésicos comuns com 10 dias de evolução. Pelo agravamento da cefaléia e o aparecimento de náuseas e vômitos, veio transferido para a Emergência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, onde acrescentaram-se às queixas iniciais tontura não giratória, hipoacusia no ouvido direito (OD) e presença de alcoolismo (1 garrafa cachaça/dia) e tabagismo (6 cigarros tipo palheiroldia). Apresentava-se em regular estado geral, lúcido, orientado e coerente, desidratado, com conjuntiva ictérica e febril (38'C), com demais sinais vitais estáveis. Evidenciaram - se vômitos de pequeno volume, não precedidos por náuseas. O exame neurológico demonstrou rigidez de nuca e fundoscopia normal, sem outras alterações significativas. Na otoscopia, após aspiração de otorréia purulenta em pequena quantidade, individualizou-se pólipo aural, ocupando parte do conduto auditivo externo direito, protuindo através de provável perfuração da membrana timpânica. À esquerda, a otoscopia era normal.

Frente à hipótese diagnóstica de otite média crônica colesteatomatosa complicada, decidiu-se pelo uso de cefalotina intravenosa e indicou-se cirurgia após estabilização clínica do paciente.

Dois dias após, iniciou com quadro de febre (41° C), sudorese, taquipnéia, taquicardia, hipotensão e obnubilação transitória. Exames solicitados demonstraram anemia (hemoglobina=9,5 mg/dl), leucocitose com desvio à esquerda, hipo - albuminemia, tempo de protrombina de 50%, hiperbilirrubinemia direta, com outras provas de função hepática e renal normais, e gasometria com aeidose (pH=7,25) e PO2 de 59 mmHg. Após avaliação da neurologia, que constatou meningismo, decidiu-se por não realizar a PL pelo baixo TP, e iniciou-se com esquema antibiótico de ceftazidima lg IV 8/8 horas, vancomicina lg IV 12/12 horas e metronidazo1500 mg 6/ 6 horas. Instituídas as medidas cabíveis de controle da sépsis, foi realizada tomografia computadorizada de urgência, que demonstrou ausência de lesões cerebrais, porém presença de impregnação anômala de contraste em topografia de seio sigmóide D, com material denso ocupando parcialmente a sua luz. Havia erosão óssea, estabelecendo a continuidade da mastóide com o seio sigmóide. A pneumatização da mastóide direita era bem menor do que a da contralateral (Figura 1).

Excluída a presença de abscesso cerebral, foi estabelecido o diagnóstico de tromboflebite do seio sigmóide, complicando uma otite média crônica colesteatomatosa.

No 4°dia de internação, o paciente entrou em insuficiência respiratória e foi transferido para o Centro de Tratamento Intensivo. Com a estabilização do quadro sistêmico, foi submetido à timpanomastoidectomia aberta ("canal wall down") no 7° dia de internação, na qual visualizou-se exposição pela doença da dura-máter da fossa média, do seio sigmóide, do nervo facial e erosão do canal semicircular lateral e da parede óssea da fossa posterior. Não houve intercorrências cirúrgicas. Retornou ao CTI, onde se iniciaram alterações pulmonares, inicialmente sugestivas de Síndrome da Angústia Respiratória do Adulto e, após, compatíveis com pneumonia, permanecendo por todo o período febril. Obteve-se resultado negativo no antiHIV. Hemoculturas e cultura da ponta de cateter venoso subcláveo foram negativas. Por falta de expectoração, não se obteve material para cultura de escarro. No 2° pós-operatório, retirou-se o curativo auricular e iniciou-se com gotas otológicas contendo antibióticos.

No 9°dia de internação, foi feita a 2" TC, que demonstrou a mastóide e ouvido médio preenchidos por material denso (gelfoam), com surgimento de adensamento de meninges em nível parietal posterior à D. No 13° dia de internação, com a melhora do quadro geral, porém ainda com febre, recebeu alta do CTI, sendo encaminhado à enfermaria, onde permaneceu febril (38,5 - 39,5 C). No mesmo dia, foi realizada nova TC de controle, que demonstrou coleção a nível parietal posterior, compatível com abscesso extradural pequeno (Figura 2).

A consultoria neurocirúrgica indicou a manutenção do esquema antibiótico utilizado, sem necessidade de intervenção cirúrgica.

No 14° dia de internação, apresentou dor ventilatória dependente em hemitórax D, tosse não produtiva e aumento da febre (39 C a 40 C). Radiografia de tórax demonstrou áreas de consolidação e atelectasia, além de derrame pleural em lobos médio e inferior direitos. Radiografia em decúbito lateral direito não mostrou mobilização do derrame. Foi realizada então toracocentese, com drenagem de 150 ml de derrame,cujo exame bioquímico demonstrou características de exsudato com pH menor do que 6,8. O exame citológico evidenciou predomínio de neutrófilos com alguns linfócitos, e foi negativo para células malignas e bacilos álcool - ácido resistentes.

Frente à hipótese de complicação embólica séptica pulmonar, realizou-se ultra-sonografia de região cervical, sendo evidenciada perda da distensibilidade, irregularidade das paredes e alargamento da luz da veia jugular interna direita, com presença de material hiperecogênico no seu lume, compatível com trombos. Tal material estendia-se desde a base do crânio até a desembocadura da jugular na veia subclávea, o que descartou a possibilidade de ligadura da veia jugular (Figura 3).

Realizou-se, no mesmo dia (14° dia de internação), cintilografia pulmonar, que foi compatível com embolia pulmonar direita.

No 15° dia de internação, foi realizada drenagem de tórax, porém o exame radiográfico de tórax realizado logo em seguida demonstrou loculação remanescente. Como o paciente permanecia febril e com alguns sinais sépticos, resolveu-se trocar o esquema antibiótico para imipenem 1 g IV 6/6 horas, vancomicina 500 mg IV 6/6 horas e amicacina 500 mg IV 12/12 horas.

A equipe da cirurgia torácica decidiu realizar toracotomia com decorticação pulmonar no 16° dia. Foi encontrada grande quantidade de fibrina recobrindo lobos médios e inferior direitos, com pequena quantidade de derrame pleural remanescente, o qual foi mandado para estudo bacteriológico. No 18° dia de internação, o paciente apresentava-se afebril, com melhora considerável doestado geral, sem dispnéia. Quatro dias após, foram retirados drenos de tórax. O exame bacteriológico da fibrina e do derrame pleurais obtidos na cirurgia evidenciou o crescimento de Scherichia coli, Streptococcus alfa-hemolítico e StaphyIococcus epidermidis, todos sensíveis aos antibióticos em uso.

No 20°dia de internação, o paciente recebeu alta hospitalar em bom estado geral, apirético e assintomático do ponto de vista respiratório, com prescrição de ampicilina e cloranfenicol via oral. O exame otoscópico do ouvido direito demonstrava uma cavidade sem secreção e início de epítelização. Em duas visitas ambulatoriais (5 e 30 dias após a alta hospitalar), a cavidade cirúrgica da timpanomastoidectomia apresentava uma epitelização progressiva normal. Do ponto de vista pulmonar, também não apresentava alterações, e não mais utilizava medicações.



Figura IA - Tomografia computadorizada demonstrando a otite média crônica colesteatomatosa e a tromboflebite do seio lateral à direita (seta).



Figura 1 B - Mesma imagem em maior detalhe, notando-se a impregnação do contraste nos tecidos perisinusais, com adensamento da parede do seio (seta).



Figura 2 A - Tomografia computadorizada demonstrando coleção extradural em nível parietal posterior direito (seta).



Figura 2B - Mesma imagem em maior detalhe (seta).



Figura 3A - Ultra-sonografia de região cervical, demonstrando alargamento da jugular interna direita, em comparação com a esquerda, e material hiperecogênico em seu interior (entre as setas).



Figura 3 B - Montagem do trajeto da jugular interna direita da base do crânio até a sua desembocadura na veia subclávea, demonstrando os trombos em toda a sua extensão (seta maior indicando os trombos próximos à desembocadura da veia).



DISCUSSÃO

Embora o paciente relatado tenha apresentado o quadro clínico clássico da TSL, com mau estado geral, cefaléia, meningismo, febre em picos, náuseas e vômitos, após a introdução dos antimicrobianos verificou-se uma alteração da apresentação da doença. Nas séries relatadas, muitos pacientes não mais exibem o caráter típico da febre, com picos atingindo temperaturas extremas de até 41°,C como foi descrita.

Os antibióticos também provocaram alterações nas características epidemiológicas e etiológicas da doença. Atualmente, a TSL representa uma complicação otológica de adolescentes e de adultos jovens, enquanto antigamente era restrita às crianças 4,7. Geralmente, a TSL era secundária a uma otite média aguda, sendo hoje mais comumente complicação de uma otite média crônica, seja colesteatomatosa ou não 3.

O estreptococo beta-hemolítico era antigamente o agente causal quase que universal'. Atualmente, não existe mais preponderância, sendo que as séries relatadas têm isolado vários patógenos, entre eles Pseudomonas aeruginosa, Proteus mirabilis, Scherichia coli, Staphylococcus aureus, Streptococcus pneumoniae e anaeróbios 3,8,9. Logo, estão indicados antibióticos de largo espectro, como os utilizados nesse caso, como os agentes iniciais na suspeita de TSL.

O diagnóstico clínico deve sempre ser confirmado com imagens. A tomografia computadorizada ainda é o método de escolha para a demonstração da TSL. Estudo recente demonstrou valor especial da ressonância nuclear magnética com contraste na confirmação diagnóstica e delineamento da extensão dessa doença 10. O achado característico da TC e da ressonância magnética com contraste é o "Sinal Delta", que consiste em uma imagem triangular com luz central". Representa a inflamação dos tecidos moles circunjacentes à dura que resveste o seio lateral, que se impregna pelo contraste utilizado. O procedimento cirúrgico otológico deve ser realizado assim que o paciente apresentar condições clínicas para se submeter à anestesia geral. A técnica adotada preferencialmente é a mastoidectomia aberta ("wall-down") com limpeza de toda a patologia existente e liberando totalmente o seio lateral para a cavidade mastoídea 7,11. Alguns autores recomendam intervir sobre o seio lateral, seja com sua ligadura, seja com a sua abertura para a remoção dos trombos' 1. A nossa opção foi não atuar sobre o seio lateral, principalmente devido ao mau estado do paciente durante a cirurgia.

Por fim, duas decisões terapêuticas são difíceis: a heparinização e a ligadura cirúrgica da veia jugular interna. A maioria dos autores não indica a heparinização em casos de trombose isolada da porção sigmóide do seio lateral, temendo uma quebra do trombo e conseqüente disseminação séptica, assim como sangramento incoercível na mastóide operada 4. Outro argumento contra o uso dos anticoagulantes é que a trombose venosa produz tecido cerebral hemorrágico 12. No entanto, muito pouca discussão existe na literatura sobre o papel dos anticoagulantes, quando existe extensão maciça do trombo para a veia jugular interna, como no caso aqui relatado. A ligadura da veia jugular interna é outrot6pico altamente controverso, existindo defensores e opositores. As indicações atuais de tal procedimento recaem sobre os casos de sépsis não responsiva a esquema antibiótico adequado e sobre as complicações tromboembólicas pulmonares 3. No caso, houve programação da ligadura devido à existência das duas condições acima citadas. No entanto, essa tomou-se inexeqüível pela extensão da trombose.

CONCLUSÕES

Embora atualmente raras, as complicações intracranianas da otite média supurativa ainda existem, persistindo com altas taxas de mortalidade. Entre essas, a tromboflebite do seio lateral é uma das mais mórbidas. O método diagnóstico de escolha é a tomografia computadorizada. No manejo, inicialmente devem-se utilizar antibióticos intravenosos de largo espectro e, assim que possível, procedera cirurgia otológica (timpanomastoidectomia nos casos de otite média crônica supurativa). A heparinização e a ligadura da veia jugular interna são assuntos controvertidos.

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* Médicos Residentes do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
** Médico Contratado do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
*** Professor de Otorrinolaringologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Trabalho realizado no Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Endereço para correspondências: José Faibes Lubianca Neto. Rua Felipe Camarão, 386122, Porto Alegre - RS.

Artigo recebido em 14 de julho de 1993. Artigo aceito em 24 de fevereiro de 1994.

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