Ano: 1998 Vol. 64 Ed. 2 - Março - Abril - (9º)
Seção: Relato de Casos
Páginas: 159 a 162
Esfenoidite Micótica Crônica em Paciente Imunocompetente: Perda Visual como Sintoma Inicial.
Chronic Sphenoidal Mycotlc Sinusitis in a Imunocompetent Patient: Unilateral Visual Loss as the Initial Symptom.
Autor(es):
Marcelo M. Hueb *,**,***
Júlio Cláudio Sousa **** ;
Gemer Pereira Lopes ****;
Jorge Felipe Abud ******,
José Alexandre Médicis da Silveira *******.
Palavras-chave: esfenoidite micótica, imunocompetente, perda visual
Keywords: mycotic sphenoiditis, immunocompetent, visual loss
Resumo:
Os autores apresentam uma manifestação de um caso de sinusite fúngicas em uma paciente imunocompetente, não diabética, com 46 anos de idade. A paciente apresentou como manifestação inicial perda súbita da acuidade visual à esquerda, sem associação com proptose, sintomas nasais ou sinusais. O exame tomográfico mostrou aspecto compatível com sinusite crônica e redução das dimensões do canal do nervo óptico , por esclerose óssea (periostite) , à esquerda. O exame fibroscópico revelou abaulamento da parede anterior do seio esfenoidal esquerdo. Tratamento clínico com antibióticos e corticóides não resultou em melhora da visão. Foi realizado tratamento cirúrgico com retirada de micetoma e aeração do seio esfenoidal esquerdo. Não houve complicação pós-operatória, sendo a paciente tratada com Cetoconazol e Prednisona. O exame histopatológico foi sugestivo de Aspergillus. Follow-up clínico, tomográfico e endoscópico foi realizado e após dois anos não se observou doença residual, com melhora visual de aproximadamente 70%.
Abstract:
The authors present an unusual presentation of a case of mycotic sphenoidal sinusitis in a 46 years old immunocompetent non-diabetic female. The initial symptom of sudden total visual loss on the left was not associated with proptosis, nasal or sinusal complaints. C.T. scan demonstrated narrowing of the optic nerve canal due to periosteal thickening, caused by an isolated left sphenoid sinusitis, suggestive of chronic fungal disease. Protrusion of the anterior wall of the left sphenoid sinus was observed on fiberoptic examination. Clinicai courses of antibiotics and steroids showed no visual improvement. Functional endoscopic sphenoidotomy was performed and a black mass was retrieved from the sinus. Histopathological specimem examination was suggestive of Aspergillosis. No surgical complication were observed; Ketoconazole and Predinisone were used post-operatively. Clinical, C. T. and endoscopic follow-up were performed and after two years no residual disease was noticed; visual improvement was close to 70%.
INTRODUÇÃO
A sinusite fúngica foi pela primeira vez relatada em 1791 por Plaignaud (Waitzman & Birt, 1994) e, até recentemente, pensava-se ser uma entidade rara. Entretanto, com o avanço dos métodos de diagnóstico e o aumento de pacientes imunocomprometidos, o conhecimento e o entendimento- a respeito da sinusite fúngicas têm crescido significativamente. Duas categorias são reconhecidas: a não invasiva e a invasiva. A primeira é uma condição relativamente benigna, que se apresenta como duas entidades: micetoma e sinusite fúngicas alérgica.
O micetoma, também conhecido como as pergiloma, habitualmente acomete indivíduos saudáveis e não atópicos. Os sintomas são unilaterais e os exames radiográficos demonstram opacificação do seio paranasal com espessamento das paredes. A sinusite fúngica alérgica usualmente acomete adultos jovens com história de atopia e está associada com polipose nasal e asma em 66% e 32% dos casos, respectivamente. As investigações radiográficas geralmente revelam opacificação homogênea bilateral ou de múltiplos seios nasais.
A patogênese da sinusite fúngicas alérgica está relacionada às reações tipo 1 é tipo 111 de hiper-sensibilidade ao fungo. Histologicamente, o exame revela grande quantidade de eosinófilos, assim como produtos de sua degradação conhecidos como cristais de Charcot-Leyden (Katzensyein et al., 1983), reação granulomatosa e invasão estão ausentes.
Ao contrário, a forma invasiva inclui sinusite fúngicas rapidamente progressiva e freqüentemente fatal, encontrada preferencialmente em pacientes imunocomprometidos, e a sinusite fúngicas lentamente progressiva. Em ambos os casos, há uma tendência do fungo de se estender às estruturas adjacentes. Histologicamente, na forma rapidamente progressiva, as hifas são vistas invadindo diretamente os tecidos, ao passo que, na forma lentamente progressiva, vê-se uma resposta granulomatosa tecidual (Jonathan et al., 1989).
Quando em contato com o fungo, a manifestação de uma das formas citadas está na dependência de alguns fatores; entre eles, merece destaque o estado imune do hospedeiro, sendo comum a associação da forma invasiva fulminante com a imunossupressão (Saeed & Brookes, 1995).
Entre as micoses que acometem os seios paranasais, o gênero Aspergillus é o - mais comum, sendo a espécie Aspergillus fumigatus o patogeno principal (Brandwein, 1993). Este é um fungo que se apresenta sob a forma de esporo e que se encontra distribuído no solo decompondo a matéria vegetal. Usualmente, ganha o hospedeiro pela via inalatória e com freqüência habita o trato respiratório superior, sendo potencialmente patogênico (Meikle & Yarington, 1985).
A sintomatologia visual em pacientes com sinusite micótica pode variar desde a associação com sintomas nasossinusais, até a perda visual e proptose como manifestações isoladas, geralmente decorrentes de invasão da cavidade orbitária (Heier et al., 1995). Neste artigo apresentamos um caso de sinusite micótica em uma paciente imunocompetente e não diabética, cujo único sintoma foi perda visual súbita à esquerda.
APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO:
Paciente do sexo feminino, com 46 anos de idade, branca, fazendeira, previamente sadia, apresentou-se ao Serviço de Oftalmologia do Hospital Santa Lúcia, em maio de 1994, com perda súbita da visão no olho esquerdo, negando à anamnese qualquer trauma ou outras alterações. Ao exame oftalmológico, mostrava acuidade visual de 20/20 à direita e nula à esquerda; fundo de olho normal à direita e papila com bordos nítidos e elevados à esquerda. O exame tomográfico, que inicialmente tinha como intuito investigar a região encefálica, mostrou velamento homogêneo com densidade celular e esclerose óssea (periostite) importante no seio esfenoidal à esquerda, compatível com sinusopatia crônica e redução das dimensões do canal do nervo óptico esquerdo (Figura 1). Foi realizado tratamento- clínico com antibióticos e asteróides, sem melhora significativa do quadro.
Posteriormente, a paciente foi avaliada pelo Serviço de Otorrinolaringologia do mesmo Hospital, apresentando o mesmo quadro clínico à esquerda e dores nasogenianas deste lado. O exame fibroscópico revelou abaulamento discreto da parede anterior do seio esfenoidal esquerdo. A avaliação clínica pré-operatória, inclusive com estudos imunológicos, sorológicos e curva glicêmica, não demonstrou qualquer alteração ou deficiência. Foi então realizada esfenoidotomia funcional transnasal à esquerda com retirada de aglomerado necrótico (micetoma) e aeração da cavidade. Ao exame histopatológico, houve predomínio de material necrótico com hifas distribuídas no meio e na periferia deste (Figura 2), sendo a cultura positiva para Aspergillus fumigatus . Uma reavaliação no trigésimo dia do pós-operatório revelou melhora da acuidade visual à esquerda (20/100). A tomografia computadorizada mostrava seio esfenoidal esquerdo aerado com presença de abertura cirúrgica (Figura 3) e a fibroscopia não apresentou alterações significativas. Nenhuma evidência de recorrência clínica ou tomográfica foi encontrada após dois anos do tratamento cirúrgico, sendo que o último exame oftalmológico revelou acuidade de 30/40 à esquerda.
Figura 1. CT em corte axial mostrando velamento homogêneo com esclerose óssea nas paredes do seio esfenoidal esquerdo (seta preta curta). Há também sinais de redução das dimensões do canal do nervo óptico deste lado (seta preta longa).
Figura 2. Microfotografia do espécime demonstrando material necrótico com fungos filamentosos, prata positivos, septados, de contorno e espessura regulares e dicotomizados em ângulo menor que 90=, caracterizando o gênero Aspergillus (Grott, original 300x).
COMENTÁRIOS
Figura 3. CT em corte coronal pós-operatório mostrando abertura cirúrgica com aeração do seio esfenoidal esquerdo (seta preta).
A incidência de micetomas nos seios paranasais é desconhecida (Corey et al., 1990). As manifestações iniciais podem mimetizar uma sinusite crônica simples ou uma sinusite recorrente, caracterizadas por sintomas unilaterais, tais como obstrução nasal e rinorréia, acompanhados de cefaléia, voz denasal e tosse. Entretanto, têm sido relatados casos de sinusite fúngicas em que os pacientes não apresentavam história prévia de doença sinusal (Heier et al., 1995). Ainda, alguns trabalhos têm apresentado casos de sinusite fúngicas cuja manifestação clínica inicial é comprometimento ocular (Heier et al., 1995; Khaitrine et al., 1993). Com relação aos aspectos radiográficos, a tomografia computadorizada e a ressonância magnética são métodos importantes de investigação, permitindo determinar a extensão do envolvimento sinusal, assim como indicar espessamento periosteal, destruição óssea e comprometimento intracraneano, fatores que caracterizam a lesão (Centeno et al., 1982; Gilain et al., 1994). Histologicamente, a infecção por Aspergillus é marcada por grande quantidade de hifas com ramificação aguda, sendo que a ausência desta característica tende a dificultar a caracterização do Aspergillus. As hifas são finas (2 a 5 pm), regulares, com freqüente septação e refratárias à hematoxilina e eosina, sendo melhores as colorações especiais (e.g. Grott) (Brandwein, 1993). O diagnóstico diferencial de infecção micótica crônica de seios paranasais inclui outras granulomatoses e entidades inflamatórias, tais como tuberculose, sífilis, sarcoidose, granulomatose de Wegener, rinoscleroma e pseudotumor inflamatório (Brandwein, 1993). O tratamento do Aspergiloma consiste em cirurgia e aeração, com acesso via fossa canina ou preferencialmente por técnicas endoscópicas funcionais para remoção da massa. Tais técnicas têm se mostrado um excelente método no tratamento de doenças do seio esfenoidal, garantindo uma rápida recuperação pós-operatória com baixíssima morbidade (Gilain et al., 1994). A terapia pós-operatória, na dependência da manifestação clínica inicial, pode incluir ou não a necessidade de terapia suplementar com antifúngicos ou outras medicações sistêmicas, nas formas não invasiva (Corey et al., 1990; Saeed e Brookes, 1995).
A paciente por nós tratada, sem imunodeficiência ou diabetes, com manifestação visual isolada, é um exemplo de grande variabilidade das manifestações das sinusites fúngicas, sejam elas invasiva ou não, alérgicas ou não. A avaliação de pacientes como estas características deve sempre envolver um estudo tomográfico, ou até mesmo de ressonância magnética em casos de comprometimento oftalmológico, quando não há melhora do quadro com o tratamento clínico de uma sinusopatia. Um estreito relacionamento profissional entre os otorrinolaringologistas e os oftalmologistas, entre outros, e um conhecimento da variabilidade das manifestações clínicas das sinusites fúngicas deve estar sempre presente na mente do especialista.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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11. GILAIN, L.; AIDAN, D.; COSTE, A.; PEYNEGRE, R. - Functional endoscopic sinus surgery for isolated sphenoid sinus disease. Head Neck, 16. 433-437, 1994.
* Chefe da Disciplina de Otorrinolaringologia e Setor de Fonoaudiologia, Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro e Hospital Santa Lúcia, Uberaba /MG.
** Diretor da Faculdade de Fonoaudiologia da Universidade de Uberaba /MG.
*** Mestrado e Doutorado em Otorrinolaringologia pela Universidade de São Paulo /SP.
*** Aluno do Curso de Graduação em Medicina, da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, Uberaba /MG.
***** Professor da Disciplina de Imagenologia, Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro e Clínica Radiológica de Uberaba,/MG.
***** Professor da Disciplina de Oftalmologia, da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro e Hospital Santa Lúcia, Uberaba /MG.
******* Assistente Doutor da Disciplina ele Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo /SP.
Tema Livre apresentado no 33-° Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, realizado em Recife, PE, 2 a 6 de novembro de 1996. Endereço para correspondência: Dr. Marcelo M. Hueb, Hospital Santa Lúcia, Av. Santos Dumont 409, 38060-600, Uberaba /MG. Artigo recebido em 8 de janeiro de 1998. Artigo aceito em 12 de fevereiro de 1998.