Versão Inglês

Ano:  2000  Vol. 66   Ed. 6  - Novembro - Dezembro - (10º)

Seção: Artigos Originais

Páginas: 638 a 642

 

A Acuidade Auditiva na Insuficiência. Renal Crônica.

Hearing Acuity in Chronic Renal Failure.

Autor(es): Rita C. C. G. Mendes*,
Marcos Mocellin**,
Fabiano B. Gavazoni***,
Guilherme L. Trevizan****,
Frida Block*****,
Gislaine R. M. Wiemes*****.

Palavras-chave: surdez neurossensorial, insuficiência renal crônica, hemodiálise, audiometria

Keywords: sensorineural hearing loss, chronic renal failure, haemodialysis, audiometry

Resumo:
Introdução: O conceito de que as células do ouvido interno são suscetíveis a diversos distúrbios metabólicos e hormonais é assunto bastante estudado. Entretanto, a associação entre perda auditiva neurossensorial e insuficiência renal crônica permanece controversa na literatura mundial. Objetivos: Os objetivos deste trabalho foram verificar a presença de perda auditiva neurossensorial em indivíduos com insuficiência renal crônica com e sem tratamento hemodialítico, comparando com um grupo controle, e pesquisar a associação de tais condições na gênese do comprometimento auditivo. Material e métodos: Foram estudados dezesseis indivíduos com insuficiência renal crônica (IRC) sem tratamento hemodialítico, dezessete com IRC em hemodiálise e dezesseis controles. Excluíram-se outras causas de perdas auditivas neurossensoriais. Os pacientes foram estudados através de exame clínico minucioso, audiometria tonal limiar e imitância acústica. Resultados: A acuidade auditiva de pacientes com insuficiência renal crônica mostrou-se estatisticamente diferente dos controles, notadamente nas freqüências de 4, 6 e 8 KHz. Em todas freqüências estudadas, a hemodiálise não foi estatisticamente significativa na determinação do aumento dos limiares auditivos. Conclusão: Concluiu-se existir associação direta entre insuficiência renal crônica e perdas auditivas neurossensoriais, principalmente nas freqüências agudas. A hemodiálise não foi um fator gerador de perda auditiva neurossensorial em pacientes com insuficiência renal crônica.

Abstract:
Introduction: The concept that inner ear cells are sensitive to several metabolic and hormonal disorders is a well studied issue. But, the relationship between chronic renal failure and sensorineural hearing loss is still a debatable issue by the scientific community. Purpose: The goals of this paper were to verify the presence of sensorineural hearing loss in either in haemodialysis chronic renal failure people or still out of haemodialysis ones and compare their results to normal controls. Material and methods: Therefore we studied the genesis of chronic renal failure in hearing impairment. Sixteen chronic renal failure, seventeen in haemodialysis chronic renal failure individuals and sixteen controls were studied by judicious clinical exam, pure tone and impedance audiometry. Results: The hearing acuity in the chronic renal failure groups showed impaired results when compared to normal individuals, mainly in 4,6 and 8 KHz. The haemodialysis was not statistic significant in the genesis of hearing impairment. Conclusion: We concluded that there was a direct relationship between chronic renal failure and sensorineural hearing loss, mainly in high frequencies. We also concluded that haemodialysis was not a causative agent of hearing loss in chronic renal failure individuals.

INTRODUÇÃO

A insuficiência renal crônica (IRC) é uma síndrome decorrente de diversas etiologias, como doenças renais intersticiais, glomerulares, hereditárias, obstrutivas e vasculares2. As principais doenças associadas à IRC são a hipertensão arterial sistêmica, o diabetes melito e as glomerulonefrites3.

A IRC tem evolução progressiva e insidiosa, dividida em quatro estágios2, reserva renal diminuída (taxa de filtração glomerular em cerca de 50% do normal), insuficiência renal (filtração de 20 a 50% do normal), falência renal (filtração menor que 25% do normal) e doença renal terminal (filtração menor que 5% do normal).

O diagnóstico de insuficiência renal crônica baseia-se na documentação de níveis séricos elevados de creatinina e/ou uréia desde longa data, anemia, imagem radiológica de rins diminuídos de volume e presença de osteodistrofia aos raios-x4. O tratamento, inicialmente conservador, visa a controlar os sintomas, minimizar as complicações e retardar a progressão da doença, o que pode ser obtido revertendo-se as causas precipitantes e utilizando-se medidas dietéticas e medicamentosas específicas. O tratamento através da hemodiálise e do transplante renal reserva-se aos casos de insucesso com o tratamento conservador, o que geralmente ocorre na doença avançada4.

É bastante conhecido o fato de a cóclea ser extremamente suscetível1 aos mais variados desequilíbrios metabólicos, hidroeletrolíticos e hormonais, os quais são alterações sistêmicas sem dúvida encontradas em indivíduos com a função renal comprometida. Assim, é plausível que indivíduos com IRC desenvolvam disfunção coclear, que poderia se manifestar clinicamente por perda auditiva neurossensorial.

Hutchinson10 observou, em seu estudo, a existência de relação direta entre a IRC e a perda auditiva neurossensorial.

Oda15 descreveu alterações histológicas em ossos temporais de pacientes renais em hemodiálise e/ou pós-transplante7, sugerindo lesão das células cocleares do órgão de Corti.

Hutchinson10 encontrou alta prevalência de perda auditiva neurossensorial nas freqüências agudas a audiometria tonal limiar de pacientes com IRC. Entretanto, não observou alterações no índice de reconhecimento da fala10. Já, Isselbacher11, Kligerman12 e Mancini13 relataram perdas auditivas com repercussão clínica importante.

Nikopoulos14, Oda15 e Shvili16 observaram alterações nos potenciais evocados do tronco cerebral em pacientes renais crônicos, como aumento das latências das ondas III e V, sugerindo a existência de lesões neurais, além das sensoriais (neuropatia urêmica).

Todavia, a relação direta entre IRC e perda auditiva neurossensorial não é considerada verdadeira de forma unânime na literatura mundial. Alguns autores como Mancini13 e Gafter6 discordam de que a IRC seja realmente um fator etiológico de perda auditiva neurossensorial.

Os objetivos do presente trabalho foram: 1) verificar a existência de diferença entre os limiares de audibilidade mínima entre pacientes hígidos e aqueles com insuficiência renal crônica, 2) observar a influência da hemodiálise nos limiares de audibilidade mínima, 3) pesquisar se a insuficiência renal crônica pode ser considerada causa direta de perdas auditivas neurossensoriais e 4) avaliar o valor do exame audiométrico no diagnóstico de deficiência auditiva em pacientes com IRC.

MATERIAL E MÉTODO

A população estudada compreendeu indivíduos com 15 a 60 anos de idade, portadores de insuficiência renal nos estágios de insuficiência, falência ou doença renal terminal, ou seja, aqueles com pelo menos 40 a 50% da função renal comprometida. Dezesseis pacientes com insuficiência renal em tratamento conservador formaram o grupo A, dezessete com insuficiência renal sob hemodiálise compuseram o grupo B e dezesseis outros, da mesma faixa etária e sem doença renal ou queixa auditiva, formaram o grupo controle (grupo C). Os limites de idade foram estipulados visando-se obter uma população homogênea e normouvinte, do ponto de vista científico.9

Foram excluídos os indivíduos que apresentaram: história de perda auditiva prévia à IRC, risco para doença otológica ocupacional (exposição a ruídos e solventes), diabetes melito ou outras doenças metabólicas, síndrome de Alport ou história familiar de baixa acuidade auditiva primária, doença do ouvido externo ou médio ao exame físico, intervalo aeroósseo entre as curvas audiométricas, timpanograma B ou C7, 7, 10, 13. Excluíram-se, ainda, os pacientes que haviam usado antibiótico aminoglicosídeo por mais de sete dias ou que estivessem- usando furosemida em dose superior a 1mg/kg/dia13.

Os pacientes candidatos ao estudo procederam do ambulatório de nefrologia do Hospital de Clínicas da UFPR, sendo o diagnóstico de IRC firmado pelos registros de prontuário, de acordo com os critérios já apresentados na introdução deste trabalho, principalmente valores de clearance de cretinina inferiores a 60m1/min/1,73m2 por tempo superior a três meses11. Tais indivíduos foram submetidos à anamnese, exame otorrinolaringológico e audiometria tonal limiar com índice de reconhecimento da fala, para verificação da eligibilidade ao estudo. Os dados foram anotados em protocolos padronizados, que compuseram o material analisado.

A imitância acústica constou da pesquisa da complacência estática e dinâmica da unidade timpanoossicular e pesquisa dos reflexos acústicos, tendo sido realizada em todos pacientes. Este exame foi realizado com o propósito de afastar doenças do ouvido médio em estágio subclínico e observar a presença ou não de recrutamento, que é sabidamente indicativo de cortipatia.



Gráfico 1. Média dos limiares auditivos em 0,5; 1 e 2 KHz no ouvido direito.



Gráfico 2. Média dos limiares auditivos em 0,5; 1 e 2 KHz no ouvido esquerdo.



Gráfico 3. Média dos limiares auditivos em 4 KHz no ouvido direito.



Gráfico 4. Média dos limiares auditivos em 4 KHz no ouvido esquerdo.



Gráfico 5. Média dos limiares auditivos em 6 KHz no ouvido direito.



Gráfico 6. Média dos limiares auditivos em 6 KHz no ouvido esquerdo.



A análise estatística compreendeu o estudo das diferenças das médias dos limiares de audibilidade mínima dos diversos grupos, através do teste t de Student. O estudo foi desenvolvido com um intervalo de confiança de 95%.

Este estudo foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná.

RESULTADOS

A média das idades dos pacientes do grupo A foi de 33,69 ± 10,45 anos; do grupo B foi de 36,65 ± 10,63 anos; e do grupo controle, C, foi de 44,94 ± 11,72 anos. Estes resultados não foram estatisticamente diferentes. As médias dos clearance de creatinina foram: 32,64 ± 13,64; 14,59 ±11,58; e 117,94 ± 13,23 - respectivamente.

As médias dos limiares de audibilidade mínima em 0,5, 1 e 2 KHz foram 15,9; 15 e 9,9 (no ouvido direito) e 12,09; 14,71; e 8,43 (no ouvido esquerdo) - respectivamente. Estes resultados não apresentaram diferença estatística.

As médias dos limiares auditivos em 4 KHz foram de 19,37; 23,23 e 5,31 (no ouvido direito) e 17,19, 22,05 e 3,75 (no ouvido esquerdo) - para os grupos A, B e C, respectivamente. Observou-se diferença estatística na comparação do grupo controle e grupos de estudo, mas não entre os grupos de estudo entre si. Estes resultados foram bastante semelhantes aos obtidos na freqüência de 6 KHz, como pode ser observado nos gráficos apresentados.

As médias dos limiares auditivos em 8 KHz foram de 16,9, 25,88 e 8,12 (no ouvido direito) e de 24,06; 24,12 e 9, 35 (no ouvido esquerdo)- para os grupos A, B e C, respectivamente.



Gráfico 7. Média dos limiares auditivos em 8 KHz no ouvido direito.



Gráfico 8. Média dos limiares auditivos em 8 KHz no ouvido esquerdo,



Para o ouvido direito, obteve-se diferença entre o grupo controle e o grupo B, mas não entre o grupo controle e o grupo A. Já à esquerda, observou-se diferença estatisticamente significativa entre o grupo controle, C, e os grupos de estudo (A e B), mas não entre os grupos de estudo entre si.

DISCUSSÃO

Analisando-se apenas as freqüências graves (0,5, 1 e 2 KHz), não se observa déficit auditivo neurossensorial em pacientes com insuficiência renal crônica, quer seja em tratamento hemodialítico ou não.

Entretanto, nas freqüências de 4, 6 e 8 KHz, a acuidade auditiva dos pacientes renais mostrou-se estatisticamente diferente do grupo controle, com pequenas perdas auditivas neurossensoriais. Nestas freqüências, o resultado foi bem semelhante aos observados por Kligerman e colaboradores12, que encontraram grande incidência de perdas auditivas nas freqüências agudas. Gatland7 e Nikolopoulos14 obtiveram resultados que mostraram déficits auditivos neurossensoriais com repercussão clínica importante. Já Facharzt4 encontrou perdas neurossensoriais consideráveis, mas reversíveis após correção da anemia (própria da IRC) com o uso de eritropoetina na dose de 120U/kg por semana, por cerca de seis meses.

A literatura refere que cerca de 80% dos casos de perda auditiva neurossensorial em pacientes com insuficiência renal crônica seriam devidos a causas que já sabidamente levam a perdas deste tipo, como uso de aminoglicosídeos ou exposição ocupacional a ruídos10, 13. Os 20% restantes seriam diretamente devidos à IRC. Entretanto, por ser condição clínica complexa, que demanda o uso de várias drogas, que têm múltiplas etiologias e atingem sobremaneira idosos, torna-se difícil o estudo da sua correlação com a acuidade auditiva. Daí surgem as numerosas controvérsias sobre este assunto.

Pelos resultados obtidos, sugere-se a existência de relação direta da IRC como causa de perda auditiva neurossensorial, notadamente nas freqüências agudas.

Considerando a inexistência de diferença significativa entre o grupo com IRC em tratamento conservador e aquele em tratamento hemodialítico, pode se afirmar que tal terapêutica não se relaciona à perda auditiva, o que também é sustentado por outros trabalhos citados.

Na verdade, a hemodiálise, por corrigir grande parte dos distúrbios hidroeletrolíticos e metabólicos, tende a diminuir os riscos para a ocorrência de perdas auditivas, já que promove a estabilização e correção das alterações metabólicas ocasionadas pela doença renal crônica. Desta forma, o tratamento correto da IRC deve ser instituído o mais precocemente possível, evitando lesões ao organismo, inclusive à cóclea e vias auditivas.

CONCLUSÕES

Os limiares de audibilidade mínima foram piores nos pacientes com insuficiência renal crônica, notadamente nas freqüências agudas.

A hemodiálise não é fator gerador de perda auditiva neurossensorial em pacientes renais crônicos sob tratamento dialítico.

Observou-se relação direta entre insuficiência renal crônica e perdas auditivas neurossensoriais em freqüências agudas.

O exame audiométrico revelou-se fidedigno no diagnóstico de doença auditiva nos indivíduos portadores de IRC.

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* Médica do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná - UFPR.
** Professor Titular e Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da UFPR.
*** Médico do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da UFPR.
**** Médico Residente de 1°. Ano do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da UFPR.
***** Fonoaudióloga do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da UFPR.

Departamento de Otorrinolaringologia e Oftalmologia do Hospital de Clínicas da UFPR.
Endereço para correspondência: Guilherme L. Trevizan - Rua Menezes Dória, 184 - Hugo Lange - 80040-350 Curitiba /PR - Telefone/Fax: (0xx41) 254-2767.
Artigo recebido em 11 de agosto de 2000. Artigo aceito em 28 de setembro de 2000.

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