Versão Inglês

Ano:  2000  Vol. 66   Ed. 5  - Setembro - Outubro - (15º)

Seção: Artigo de Revisão

Páginas: 521 a 526

 

IMPLICAÇÕES DO FUMO NA GUSTAÇÃO E NA OLFAÇÃO - REVISANDO O TEMA.

Implications of Smoke Habit in Gustation and in Olfaction - Reviewing the Theme.

Autor(es): Alexandre A. Henriques*;
André D. Furtado André F. Vargas*;
Cristiano B. Martins Dalva A. do Prado*;
Sérgio S. M. Barreto***.

Palavras-chave: olfação, gustação, fumo, tabagismo, órgãos dos sentidos

Keywords: olfaction, gustation, smoke, tobaccoism, sense organs

Resumo:
Entre os diversos malefícios causados pelo tabagismo, os efeitos na gustação e na olfação não têm sido abordados pela literatura especializada nacional. Realizou-se um estudo de revisão sobre o tema. Há um predomínio de estudos que se dedicam à investigação da gustação. A exposição ao fumo parece alterar significativamente os dois sistemas quimiorreceptores. A capacidade gustativa está comprometida, quanto à percepção de substâncias salgadas, amargas e doces-principalmente as duas últimas -, bem como à impressão hedônica global (prazer). Dessa forma, a preferência alimentar pode variar. Já na olfação, há alterações ultraestruturais no epitélio, perda na habilidade de identificação de odores (hiposmia) e sensação de queimação e dor na mucosa. Talvez com o esclarecimento da importância desses dois sistemas sensórios e de suas patologias, possam ser efetuados novas revisões e estudos sobre o tema em nosso meio.

Abstract:
Among the variety of general health smoking habit consequences, the effects on gustation and on olfacion have not been reported in the national specialized literature. We did a review study about the issue. There is a predominance of study inquirements on gustation. The smoking habit seems to affect both sensory systems. The gustatory capacity is compromised by a reduction in taste sensibility to salty, bitter and sweet substances (specially the last two), as well by a diminish global hedonic impression (pleasure). Therefore, alimentary preferences may change in smokers. The olfaction is compromised by ultra-estrucutral epithelial alterations. The smell identification ability is reduced (hyposmia), and a sensation of burn and pain on the mucosa is also established. The importance of understanding both sensory systems and their pathology suggests new study requirements among our academic staff.

INTRODUÇÂO

Entre os diversos malefícios causados pelo hábito de fumar, há uma espécie de hierarquização quanto à importância para a promoção e prevenção da saúde, de cada uni deles, baseada na sua morbimortalidade. Os efeitos cardiovasculares e oncogênicos costumam ser os de maior relevo15. Estudos sobre os efeitos do fumo na gustação e na olfação não parecem despertar, de um modo geral, semelhante interesse em pesquisadores, uma vez que a sua sintomatologia seria, relativamente, discreta e não caracterizaria um problema de saúde pública. Do mesmo modo, poucas profissões seriam diretamente dependentes da intactibilidade das funções da gustação e da olfação, como enólogos ou perfumistas.

São variados, e por vezes não complementares, os métodos de investigação entre os estudos, dificultando uma padronização mínima. Tanto animais quanto humanos são usados como sujeitos, o não pareamento entre os sexos nos grupos em estudo4, 18, a análise de amostras de pequena monta1, 10, 15, diferentes formas (sessões diárias ou em bolo), vias de administração (subcutânea ou malatória) e diferentes dosagens das substâncias a serem percebidas e o emprego de fumo3, 4, 15, 15 ou somente de alguns de seus constituintes (nicotina, por exemplo) são variáveis que dificultaram uma padronização mínima1, 5, 8, 10, 13, 16, 17.

Não existem estudos que abordem, concomitantemente, os efeitos nos dois sistemas sensórios, sem falar na desproporcionalidade do volume de publicações, observando um predomínio na investigação dos aspectos gustativos. Desse modo, para fins didáticos, optou-se por uma abordagem revisional das conseqüências do fumo em separado nos dois sistemas.

REVISÃO DA LITERATURA

a) Efeitos do fumo na gustação

Quando o sistema gustativo está sob avaliação, os fatores principais em estudo costumam ser o limiar para que determinado estímulo seja percebido, a caracterização de cada uma dos quatro tipos de sensações gustativas (SG) fundamentais (ácido - azedo -, doce, salgado e amargo)11 e a impressão hedônica global do estímulo.

Nos estudos com animais, a distinção entre as SG é de difícil abordagem. Entretanto, Parker e colaboradores "investigaram o efeito da nicotina (através da via subcutânea) na modificação do paladar para uma solução saborosa (sacarose) e uma não saborosa-amarga-(quinina) em ratos. As reações comportamentais dos animais às soluções foram filmadas e analisadas, sugerindo-se que a nicotina suprimia reações aversivas aos dois tipos de solução, ou seja, ela dificultaria (ou inibiria) a percepção sensorial. No mesmo experimento, outro achado significativo foi o aumento da avaliação prazerosa na solução de sacarose, após a interrupção dos 21 dias de administração de nicotina. Também com o objetivo de caraterizar a aversão gustativa condicionada produzida pela nicotina em ratos, Kumar e colaboradores12 propõem que a nicotina seja unia potente produtora de aversão gustativa, claramente relacionada com a dosagem, tendo, predominantemente, um efeito central e associado a estímulos na área postrema (efeito emético).

Em humanos, os estudos apresentam uma certa disparidade de achados. Quanto à determinação do limiar de percepção, já em 1961 Krut e colaboradores12 reportaram que o limiar para o amargor seria maior em fumantes, se comparados a não fumantes. Tal efeito estaria relacionado com a quantidade e duração do hábito de fumar, e não após um único cigarro. Em um estudo de coorte de 18 meses com quatro momentos de acompanhamento, entre fumantes e não fumantes, Peterson e colaboradores18 também identificaram um aumento no limiar para o sabor amargo em fumantes em relação aos controles; porém, sem diferenças significativas nos outros três sabores fundamentais (doce, salgado e ácido). Há a ressalva de que os grupos em estudo não foram pareados por sexo nem idade. Coats3 investigou os efeitos concomitantes de três variáveis no limiar elétrico da gustação, através de um eletrogustômetro (EGM). Ele acredita que os valores do EGM possam apresentar-se em função da idade, sexo e hábito de fumar, se o estímulo for o mesmo para todos os indivíduos. Aproximadamente, 250 pacientes foram avaliados. As mulheres apresentaram limiares mais baixos que os dos homens, desconsiderando a idade e o fumo. O efeito isolado da idade não se mostrou significativo; porém, no grupo dos homens com mais de 60 anos o limiar gustativo está algo aumentado. Nas mulheres, essa deteriorização do limiar do gosto não parece ocorrer com a idade, pelo menos não em grau tão significativo.

Comparando fumantes (n=8) com não fumantes (n=9) pareados quanto às condições de saúde e às características demográficas, Mela15 observou, em fumantes abstinentes há 12 horas, limiares de reconhecimento duas a quatro vezes maiores para sabores doce (sacarose), salgado (cloreto de sódio) e amargo (cafeína) - através de soluções - do que em não fumantes. Já após cinco minutos de uso de fumo, em ambos os grupos, os resultados foram os seguintes: na análise intragrupal, ausência de diferença no limiar de reconhecimento dos fumantes e; nos não fumantes, dificuldade de percepção de todas as soluções; porém, só a de cafeína com significância estatística; intergrupalmente, as taxas não diferiram significativamente. A partir de tais dados, o desenvolvimento de tolerância em usuários crônicos pode ser sugerido, uma vez que a exposição aguda não promoveu alterações na percepção desse grupo. Ademais, os fumantes apresentaram uma diminuição para a percepção gustativa.

Como tais alterações nas SG foram objetivamente de monstradas, a influência do fumo na preferência alimentar dos fumantes começa a ser esclarecida. O hábito de fumar está associado a médias de peso corporal inferiores à média da população não fumante pareada para idade, sexo e altura2. O ganho de peso após parar de fumar é um dos efeitos freqüentemente observados nos ex-fumantes20. A relação está clara; contudo, as causas ainda não. Grunberg8 realizou um estudo com dois diferentes experimentos: um em ratos e outro em humanos. No primeiro, havia quatro grupos: um controle e outros três submetidos a doses crescentes de nicotina. Os animais expostos reduziram a ingestão total de calorias, às custas de uma importante redução no aporte de uma solução doce, mas não à quantidade total de comida, durante o período de exposição. Quando foi interrompida a administração de nicotina, houve um aumento na ingestão de calorias nos grupos antes expostos, em relação aos controles. A segunda parte do estudo envolveu humanos divididos em três grupos: fumantes, fumantes em abstinência temporária e não fumantes. Diversos tipos de alimentos (doces, salgados e suaves) foram oferecidos aos indivíduos. A avaliação do consumo de alimento foi feita através da medida do peso consumido. Semelhantemente ao ocorrido no estudo experimental, o consumo de alimentos doces foi reduzido entre os grupos de fumantes e de abstinentes temporários, se comparados aos não fumantes. O consumo de outros alimentos não demonstrou modificações. Os autores consideram que ocorra uma alteração, tanto pelo cigarro (nos humanos) quanto pela nicotina (nos animais), no consumo de alimentos de sabor doce. Assim sendo, as mudanças de peso corporal relacionados ao uso de cigarros podem também ser atribuídas a uma alteração no paladar e conseqüente perturbação na preferência por alimentos doces e de alto valor calórico.

Na mesma linha de pesquisa, porém, considerando também a percepção de sabores da gordura, e não somente a concentração de sacarose, Perkins e colaboradores" administraram ou nicotina, via inalatória, ou placebo em 20 indivíduos - 10 fumantes e 10 não fumantes - e apresentaram-lhes, ao acaso, 16 amostras de leite, diferindo entre si quanto à proporção de sacarose e gordura, em duas sessões diferentes. Deparam-se com os seguintes achados: agudamente, a nicotina reduziu a percepção do sabor gorduroso em fumantes e não fumantes, mas não teve efeito algum na percepção do sabor doce e não provocou alterações no prazer da gustação; e cronicamente, a nicotina desencadeou alterações no prazer da gustação, mas não alterou a percepção das substâncias. Os autores pensam que, pela falta de diferença entre os efeitos do placebo e da nicotina nas SG, -não haveria efeitos crônicos da nicotina na percepção (intensidade); mas, na impressão hedônica, sim. A explicação, para tal ocorrência, encontra-se nos constituintes não nicotinicos do tabaco, que seriam os desarmonizadores do prazer gustativo. Ademais, o prazer gustativo estaria mais relacionado aos compostos doces do que os gordurosos.



TABELA 1 - Principais Efeitos do Fumo na Gustação.

- Aumento do limiar de percepção a substâncias amargas, salgadas e doces (diminuição da percepção).
- Aversão a substâncias doces (alteração na preferência alimentar).
- Diminuição da impressão hedônica global (prazer).



A importância desse estudo está no fator de grande parte dos alimentos doces possuir em sua composição consideráveis níveis de gordura.

Redington19 realizou uma série de testes em fumantes, fumantes em abstinência de 12 horas e não fumantes, a fim de investigar se níveis séricos elevados de glicose influenciariam a intensidade da percepção gustativa frente aos sabores doce, salgado e amargo, bem como o prazer da gustação. Uma solução de glicose a 25% era consumida, procurando mimetizar parcialmente um dos efeitos relacionados à nicotina - a elevação da glicemia, que por sua vez arrefeceria a procura por alimentos com sabores doces. Anteriormente à administração de glicose, os indivíduos avaliaram de modo similar as soluções, sem diferenças significativas entre os grupos. Após a ingestão da solução, os fumantes acharam menos agradáveis as soluções muito doces e diminuíram significativamente os escores de teste de paladar (prazer) para essas soluções, em relação aos não fumantes. Enquanto isso, fumantes em abstinência e não fumantes não diminuíram significativamente seu paladar para soluções doces. Após a solução de glicose, nenhum dos indivíduos testados modificou significativamente sua intensidade de percepção, nem o teste de paladar para os sabores salgado e amargo. A combinação fumo-consumo de glicose causou queda dramática no prazer propiciado pelas SG.

As diferenças encontradas nos estudos, chegando a resultados contraditórios em alguns momentos, têm como provável causa a própria variabilidade dos fatores relacionados às SG entre os indivíduos, como idade, sexo, genética e preferência alimentar, entre outros. A atenção e ponderação de variáveis das próprias substâncias a serem avalizadas, como a solubilidade, a textura, o odor e a temperatura, é primordial (Tabela 1).

b) Efeitos do fumo na olfação

A quantidade de artigos que se propõem a investigar as associações entre o hábito tabágico e as sensações olfativas (SO) é pequena. Talvez, seja pelo fato de a olfação ainda estar relegada a um segundo plano entre os órgãos dos sentidos. No campo da olfação, estudos experimentais em animais também coexistem com estudos em humanos.

Matulions14 investigou em nível ultraestrutural, através de microscopia eletrônica, o estado do epitélio olfatério de camundongos, após a exposição de fumo por uma ou duas vezes ao dia durante seis a nove dias em três grupos de animais das linhagens C57B1/6J e SWR/J. Os camundongos SWR/J em experimento não foram afetados pelo fumo. Entretanto, nos camundongos C57B1/6J, houve alterações epiteliais proeminentes, incluindo uma redução no tamanho e no número de vesículas olfatórias e no número de cílios sensórios (principais responsáveis pela olfação), dificultando a protusão dessas vesículas acima da superfície do epitélio. A região basal do epitélio ainda estaria pérvia, em oposição á região apical. Na população de células de manutenção, um tipo anormal de células eletro-lucentes foi verificado entre as células usualmente pretas, provavelmente pelo acelerado processo de turnover a que esse epitélio está exposto. Nos animais afetados, o grau de alterações morfológicas sugere que a função olfatória normal foi comprometida. Observou-se ainda que o epitélio olfatório de todos os animais de uma mesma linhagem em experimento não reagiram da mesma maneira às exposições realizadas, indicando que a suscetibilidade ao fumo também seria determinada geneticamente.

Através de mensurações realizadas por um eletroolfatograma (EOG), Edwards e colaboradores5 sugerem que a nicotina tem características similares aos EOG produzidos por odores conhecidos; porém, por vezes, com uma duração um pouco maior. Além disso, ficou caracterizada a necessidade de um tempo acima do esperado para que a solução, contendo nicotina, se diluísse pelo muco olfatório. A molécula de nicotina acumula-se no citoplasma, acarretando efeitos citotóxicos, e os seus metabólitos afetam o equilíbrio intracelular. Algo ainda não investigado por pesquisadores é se o ato continuado de fumar altera as características físico-químicas do muco. Para as moléculas chegarem aos quimiorrecepetores da olfação, elas devem estar em solução no muco nasal7. Hall9 avaliou a atividade elétrica no bulbo olfatório de 20 gatos durante a inalação de fumaça de cigarro. Em três dos 20 experimentos apresentaram períodos transitórios de dessincronização na região bulbar. Em um dos três, houve dessincronização cortical associada. Repetiu-se a experiência com uma cânula; porém, introduziu-se a fumaça mais profundamente, local onde a maior parte do epitélio olfatório se encontra. Em nove casos, constatou-se dessincronização bulbar. Essas são ondas rítmicas de ampla oscilação (ondas induzidas) - por vezes associadas à dessincronização cortical temporal-, diferentes das ondas de oscilação de baixa amplitude (ondas intrínsecas) que caracterizam a atividade espontânea do bulbo olfatório, na ausência de estímulo olfativo. Estudos como esse instigaram o interesse por incluir um grupo de fumantes passivos nas pesquisas1, haja vista a que as SO desses também poderiam estar comprometidas.

Hummel e colaboradores10 investigaram a distribuição topográfica dos potenciais quimiossensórios em relação à estimulação com nicotina, que não produziria somente SO, mas também sensações de queimação e de dor (em ferroada): Essa sensação de queimor seria decorrente da elevada temperatura dos gases inalados21. Três grupos de pacientes foram constituídos, cada um com seu respectivo tipo de sensação. Os indivíduos classificaram a intensidade e o tempo de cada sensação. Todas elas tiveram limiares de reconhecimento e tempos de percepção distintos. As SO foram imediatamente seguidas pela sensação dolorosa e, alguns segundos após, pela sensação de queimação. As taxas de percepção indicam que enquanto o queimor e a dor aumentam com concentrações maiores de nicotina, a SO aumenta até concentrações intermediárias, diminuindo com o aumento da concentração á partir daí. Em outras palavras, a percepção das SO não é linearmente relacionada com a concentração do estímulo. Isso sugere uma supressão das SO pelo sistema trigeminal com altas concentrações de nicotina.

Um dos estudos6 com maior amostra analisada (638 indivíduos: 262 não fumantes, 197 fumantes passados e 179 fumantes atuais) dispôs-se a determinar os efeitos do fumo, conforme a dose em uso. Os sujeitos submeteram-se ao Teste de identificação de 40 odores da Universidade da Pensilvânia (UPSIT). O hábito tabágico mostrou estar associado à perda de habilidade de identificar odores de modo dose-dependente em fumantes passados e atuais, sugerindo mudanças a longo prazo na olfação. Análise por regressão logística demonstrou que fumantes atuais têm aproximadamente duas vezes mais déficit olfativo do que pessoas que nunca fumaram [RC=1,9 (1,0-3,8)]. Tal déficit não seria específico a determinadas substâncias. Uma melhora na função olfativa ocorreria com a interrupção do uso de fumo; porém, não é rápida (para cada ano fumando dois maços por dia seria necessário um ano de interrupção).

Os fumantes passivos não costumam constituir grupos de comparação, quanto à caracterização de suas habilidades na discriminação olfativa. Ahlstrom e colaboradores1 foram inovadores nesse direcionamento investigativo. Eles compararam, em três grupos (fumantes, não fumantes e fumantes passivos), a percepção do odor de duas substâncias constituintes do cigarro (piridina e n-butano), pois há sugestões de que ocorreria uma diminuição seletiva na percepção do odor das substâncias provenientes do cigarro. Esse fenômeno seria semelhante à perda de audição denominada "recrutamento pelo ruído", que é estabelecida por uma sensibilidade pobre a estímulos relativamente fracos e audição normal para estímulos mais fortes. Os testes com a piridina demonstraram que os fumantes tinham um comportamento semelhante aos descritos no "recrutamento pelo ruído". No grupo de fumantes passivos (n=15) observou-se que, assim como os fumantes (n=26), os estímulos com n-butano foram considerados mais fracos do que descreviam os não-fumantes (n=26). A causa de tal alteração seria a de que os fumantes apresentam uma maior familiaridade com o odor e, por conseqüência, uma habituação (ou ajustamento aprendido / adaptação) e não propriamente um déficit olfatório. Enquanto a habituação se apresenta sob controle de fatores cerebrais centrais, o déficit sensorial é resultante de alterações neuronais periféricas. Como o comportamento frente aos diferentes estímulos (piridina e n-butano) foi semelhante, a redução do olfato dos fumantes não seria específica. Tal especulação devese a presença importante da piridina e restrita do n-butano no tabaco e que deveria, conseqüentemente, mostrar um comportamento proporcional e não semelhante. A partir dessa observação, é sugerido que o fenômeno não deveria ser descrito como uma anosmia preferencial (específica), mas que o termo hiposmia generalizada fosse mais adequado.

O reflexo de apnéia, um mecanismo de defesa do sistema respiratório, também está alterado em fumantes. Cometto-Muniz e Cain4 obtiveram resultados que demonstraram que os fumantes são 29% menos sensíveis do que os não fumantes, quanto às concentrações de disparo do reflexo. Esse talvez seja a mais clara evidência da diferença quimiossensitiva entre fumantes e não fumantes para um agente inalante. Tal fato pode ser conseqüência da alteração da motilidade ciliar, bastante comum em fumantes, pelo aumento da viscosidade do muco, atuando como uma barreira à percepção das moléculas irritantes. Há uma causa anátomofisiológica concorrente: O sítio dos receptores da olfação é, basicamente, na região superior das fossas nasais, protegendo as células olfatórias de insultos. Como se sabe, o melhor modo de obter as SO é através da inalação profunda, que cria uma turbulência capaz de locomover as moléculas aos sítios da olfação. No ato de fumar a inalação não é comum.

Um aspecto importante que não parece ser adequadamente ponderado, com exceção de um estudo6, e que pode explicar a não unanimidade dos achados é a dose tabágica acumulada. A dicotomia entre fumantes atuais e controles acaba por incluir, nesse segundo grupo, fumantes pesados prévios que interromperam o uso de cigarra até aqueles que só recentemente podem ser considerados entre os ex-fumantes. O pareamento, quanto a sexo, idade e estado de saúde, também ainda não é uma constante nos estudos.

Há um potencial viés de análise nos dados relativos à intensidade dos estímulos, que pode subestimar alterações na discriminação da olfação. Via de regra, uma mudança de 30% na concentração de urna substância é necessária para que uma diferença de intensidade seja percebida pela mucosa olfatória. Na discriminação gustativa, a diferença de 30% também é requerida. Para efeitos de comparação, uma diferença de 1% na intensidade da luz costuma ser detectada pela visão7.

Pesquisas com amostras mais robustas talvez possam indicar diferenças mais sutis, na atribuição das SG e SO, e incrementar a significância estatística envolvida, assim como o encadeamento e aprofundamento entre diferentes estudos (Tabela 2).


TABELA 2 - Principais efeitos do fumo na olfação.

- Alteração ultraestrutural do epitélio olfatório (redução no tamanho e no número de vesículas olfatórias e no número de cílios).
- Desenvolvimento de sensações dolorosa e de quermação na mucosa olfatória.
- Diminuição na habilidade de identificar odores (hiposmia), não específica, de modo dose-dependente.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Além das complexas dificuldades intrínsecas aos dois sistemas quimiorreceptores, o contexto não estimula a busca por resultados, ou por não se tratar de uma situação de morbidade explícita, ou por falta de interesse financeiro de laboratórios e dos próprios médicos.

Espera-se que o estágio de escassa literatura científica nacional, concernente ao tema, se modifique com o tempo, através da realização de estudos, tanto experimentais quanto clínicos. Em nível internacional, a situação é outra, além de publicações dedicadas exclusivamente a assuntos das ciências dos sistemas sensoriais, como Perception & Psychophysics, Chemical Senses e Perception, centros estruturados com dedicação primordial ao estudo desses sistemas sensoriais também já foram instituídos, como o Smell and Taste Center da Universidade da Pensilvânia, o Clinical Olfactory Research Center da Universidade do Estado de Nova Iorque e o Monell Chemical Senses Center da Filadélfia - um dos primeiros institutos científicos de pesquisa multidisciplinar em olfação, gustação e irritação quimiossensitiva.

AGRADECIMENTOS

Agradecimentos, in memoriam, ao professor e mestre Mário Rigatto - defensor incansável na batalha contra o fumo, pelo incentivo e pelos esclarecimentos nas idéias fundamentais deste trabalho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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* Acadêmicos da Faculdade de Medicina (FAMED) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
** Otorrinolaringologista; Professora Adjunta do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia e da FAMED/ UFRGS.
*** Pneumologista; Professor Titular do Departamento de Medicina Interna da FAMED/ UFRGS.

Instituições Envolvidas: Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Hospital de Clínicas de Porto Alegre/ RS.
Endereço para correspondência: Alexandre Armes Henriques - Av. General Barreto Viana, 547 - Chácara das Pedras - 91330-630 Porto Alegre/ RS. Telefone: (0xx51) 334-5530 - Fax: (0xx51) 338-1535 - E-mail: aannesh@zaz.com.br
Artigo recebido em 8 de junho de 2000. Artigo aceito em 17 de agosto de 2000.

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