Versão Inglês

Ano:  1993  Vol. 59   Ed. 3  - Julho - Setembro - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 189 a 193

 

"Shunt" traqueoesofágio de Amatsu. Resultados Preliminares.

Amatsu tracheoesophageal shunt. Preliminary results.

Autor(es): Mauro Becker Martins Vieira *
Amélio Ferreira Mais **
Jaime Carlos Ribeiro *
Guilherme Santos Bernardes ***

Palavras-chave: laringectomia, reabilitação vocal, "shunt" traqueoesofágico

Keywords: laryngectomy, speech rehabilitation, tracheoesophageal shunt

Resumo:
Em 1980 Amatsu descreveu sua técnica de construção de "shunt" traqueoesofágico em um estágio, para reabilitação da voz do laringectomizado. No período de mamo de 1991 a março de 1992 seis pacientes foram submetidos ao procedimento em nosso serviço. Três pacientes apresentaram fistulas no pós-operatório sendo duas de pequeno calibre que fecharam apenas com tratamento conservador. Com um seguimento ainda curto, variando de doze a um mês, cinco pacientes estão vivos sem sinais de recidiva e um paciente faleceu devido a recidiva regional. Todos os pacientes desenvolveram voz de boa qualidade no pós-operatório. Dois pacientes apresentaram aspiração discreta durante a ingestão de água que foi controlada apenas com compressão digital do trajeto de "shunt". Concluímos que o "shunt" traqueoesofágico tipo Amatsu é uma técnica de grande potencial na reabilitação vocal e merece uma divulgação maior em nosso meio devido ao baixo custo, fácil aprendizado e qualidade da voz obtida.

Abstract:
In 1980 Amatsu reported his technic of one stage tracheoesophageal shunt for the vocal rehabilitation after laryngectomy. From march 1991 to march 1992, six patients were submitted to the procedure in our service. Three patients had postoperative cutaneous fistulae but two were of small caliber and closed only with conservative tare. With a follow-up still short, from one to twelve months, five patients are alive without signs of disease. One patient died of neck recurrence. All patients developed voice of good quality. Two patients showed slight aspiration, during water ingestion, that was controlled only with finger compression of the shunt during ingestion. We concluded that the Amatsu tracheoesophageal shunt is a technic of great potential for the vocal rehabilitation and deserve a greater divulgation in our country because of its low cost, the facility to be learned and the good quality of voice obtained.

INTRODUÇÃO

O tratamento clássico de tumores malignos avançados de laringe e hipofaringe envolve o sacrifício da laringe criando a necessidade de reabilitação vocal destes pacientes para sua reintegração ao convívio social. Na maioria destes casos a reabilitação é realizada pelo aprendizado da voz esofágica ou pela utilização de aparelhos produtores de vibrações denominados laringes eletrônicas. A voz esofágica apresenta um índice de sucesso variável, muitas vezes insatisfatório, principalmente se levarmos em conta o número de pacientes operados e não o número de pacientes que fizeram o treinamento (por motivos sócio-econômicos ou geográficos muitos pacientes abandonam o treinamento). O paciente que vocaliza com o uso da laringe eletrônica apresenta sonoridade artificial fazendo lembrar um robô, além de ficar dependente do aparelho.

Procurando melhorar a qualidade da reabilitação do paciente laringectomizado, vários pesquisadores desenvolvem diferentes e engenhosas técnicas cirúrgicas8. Basicamente estas técnicas estabelecem uma comunicação entre o trato respiratório e o trato digestivo para que o paciente possa utilizar seu pulmão como fonte de vibração na produção da voz. Podem ser divididas em três grupos8. No primeiro estão aqueles procedimentos que modificam a técnica da laringectomia total, conservando uma parte da laringe de tal modo a preservar a voz do paciente. Citamos a Cricohioideoipigloteopexia2, as técnicas de Staffieri8, Iwai8, Rush8, Kambic8 , Mozolewske8, e Pearson6. A principal desvantagem destes métodos é sua indicação limitada apenas a casos selecionados sob pena de comprometermos nossos resultados em termos de sobrevida9. O segundo grupo utiliza prótese valvular no shunt traqueoesofágico após a laringectomia total convencional e é defendido por Blom-Singer8 e Panje3. Estas técnicas exigem cuidados específicos com a prótese e a troca periódica da mesma. No terceiro grupo estão os "shunts" traqueoesofágicos sem o uso de prótese. Os principais exemplos são as técnicas de Briani8, Conley8, Asai8 e Amatsu1. Os inconvenientes seriam: necessidade de procedimentos estadiados ou o alto risco de aspiração com pneumonia secundária. A técnica de Amatsu descrita inicialmente em 19801 como um procedimento realizado no mesmo tempo cirúrgico da laringectomia, em estado único, sofreu modificações posteriores visando principalmente diminuir o risco de aspiração. Destacamos a construção de um neoesfincter com retalhos de musculatura esofágica proposta em 198610. Devido ao baixo custo, ampla indicação, e relatos de boa qualidade de voz11 com poucas complicações, iniciamos a realização da técnica em nosso serviço. Este trabalho mostra a nossa experiência, em especial os resultados com a reabilitação, tipos e incidência de complicações, e aspectos da técnica cirúrgica.

MATERIAL

No período de março de 1991 e abril de 1992, seis pacientes, todos do sexo masculino, leucodermas, de idade variando de 30 a 78 anos, média de 59 anos, portadores de carcinoma espinocelular do trato aéreo digestivo superior foram submetidos, no Serviço de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Felício Rocho, à técnica de reabilitação vocal de Amatsu, imediatamente após a cirurgia ablativa.

Em dois casos a lesão primária era originária de seio piriforme e nos outros quatro casos a lesão era endolaríngea. Segundo o estagiamento de A.J.C. de 1983 tivemos um caso estagio II, três casos estagio III e dois casos estadio IV. Metade dos pacientes apresentavam linfonodos cervicais clinicamente suspeitos quando do diagnóstico. Um paciente apresentava recidiva locoregional após radioterapia associada a quimioterapia realizada em outro serviço. Os outros cinco pacientes eram virgens de tratamento. Quatro pacientes foram submetidos a laringectomia e dois a faringolaringectomia. Cinco pacientes foram submetidos a esvaziamento cervical radical unilateral sendo que dois esvaziamentos foram clássicos e três foram funcionais. Dois pacientes fizeram radioterapia pós-operatória complementar.

MÉTODOS

A técnica consiste de seis etapas básicas: Criação do retalho traqueal posterior, anastomose traqueoesofágica laterolateral, elevação de retalho de parede muscular de esôfago bilateralmente, fechamento do hipofaringe, formação do "shunt" traqueoesofágico, e aproximação dos retalhos musculares de esôfago.

Criação do retalho traqueal posterior. Após a cirurgia ablativa, é preservada a parede posterior da traquéia (correspondente a sua porção membranosa) desde a cricóide até o quarto anel traqueal, tendo o cuidado de manter este retalho traqueal posterior aderido ao esôfago. As dimensões deste retalho devem ser de aproximadamente 2,5 em de largura por 4 cm de comprimento. A circunferência inferior do traqueostoma é suturada à pele neste tempo.

Anastomose traqueoesofágica laterolateral. Com o dedo indicador colocado contra a parede posterior do retalho traqueal através da faringotomia, é realizada uma incisão longitudinal a 8 mm de extensão iniciando a 3 mm da borda superior do retalho. A mucosa do esôfago é fracionada através desta incisão, aberta e suturada com fio catgut simples 5-0 à mucosa traqueal.

Elevação de retalho bilateral de parede muscular de esôfago. Exposição da parede lateral do esôfago por dissecção romba dos lobos tireoideanos. Criação de retalho muscular englobando tanto a camada longitudinal quanto a circular do esôfago, com o cuidado de não violar a mucosa. Este retalho deve ter 5 mm de largura por 15 mm de comprimento com pedículo inferior.

Fechamento da hipofaringe. A hipofaringe é fechada neste tempo, da maneira usual, após a colocação de sonda nasogástrica. Formação do "shunt" traqueoesofágico. As bordas laterais do retalho posterior da traquéia são suturadas entre si em sentido súpero-inferior criando um tubo recoberto de mucosa entre a anastomose traqueo esofágica e a traqueostomia.

Aproximação dos retalhos musculares do esôfago. Os retalhos musculares de esôfago são suturados por sobre o "shunt" numa posição inferior a anastomose traqueoesofágica criando um mecanismo esfincteriano. Usa de três a quatro suturas com fio mono nylon 3-0 sendo que a primeira sutura deve fixar-se ao "shunt". A circunferência superior do retalho é então suturada à pele.

RESULTADOS

Três pacientes apresentaram fístulas faringocutâneas pós-operatórias, sendo que duas fecharam espontaneamente e uma necessitou de rotação de retalho miocutâneo. Dois destes pacientes eram portadores de tumores de seio piriforme. Um deles desenvolveu tardiamente estenose de faringe com disfagia para sólidos.

Todos os pacientes adquiriram a habilidade de vocalização através do uso do" shunt" traqueoesofágico.

A qualidade de voz obtida foi considerada boa, superior à voz esofágica e à laringe eletrônica. A fonação inicia-se entre o vigésimo e trigésimo dia de pós-operatório quando os pacientes são estimulados e orientados para tal. Em pacientes submetidos a radioterapia pós-operatória a orientação para fonação é retardada até o fim da radioterapia.

O paciente submetido a cirurgia de resgate após radioterapia associada a quimioterapia apresentou doença regional, perdendo a habilidade de vocalização e vindo a falecer com dois meses de pós-operatório.

Os outros cinco pacientes estão vivos sem sinais de doença com um seguimento que varia de dois a quinze meses, média de 9,4 meses.

Um paciente não apresenta motivação para utilizar a vocalização pelo " shunt", que é funcionante, porque a sua família entende seus gestos e movimentos labiais.

Dois pacientes apresentaram aspiração discreta durante a ingestão de água que foi controlada apenas com a recomendação de deglutição de líquidos em pequenos volumes e compressão digital do trajeto do shunt. Não houve comprometimento do estado nutricional de nenhum paciente nem complicações pulmonares.

DISCUSSÃO

Apesar de termos em nosso serviço uma experiência satisfatória com a técnica de laringectomia near total proposta por Pearson9, muitos pacientes apresentavam contraindicações ao procedimento ficando privados de uma reabilitação vocal mais elaborada. A técnica proposta por Amatsu preenche esta lacuna pois é realizável em praticamente todo o paciente candidato a laringectomia. Sua contraindicação absoluta é o acometimento da traquéia por extensão subglótica da neoplasia1. Contraindicações relativas seriam: reserva pulmonar diminuída aponto de não haver pressão aérea suficiente para a produção da voz: e paciente desmotivado para a utilização da voz; que é de difícil identificação no pré-operatório. O nosso material demonstra a versatilidade da técnica, utilizada em pacientes idosos, de diversos estadiamentos clínicos, já submetidos a radioterapia, candidatos a esvaziamento cervical e ou radioterapia pós-operatória complementar.



FIGURA 1 - A) Após a laringectomia, é preservado retalho traqueal posterior, feita a anastomose traqueoesofágica laterolateral e elevados os retalhos de parede muscular de esôfago, bilateralmente. B) Construção do Shunt traqueoesofúgico e aproximação mediana dos retalhos musculares de esôfago constituindo mecanismo esfencteriano.



Dois tempos da técnica cirúrgica devem ser ressaltados devido a sua dificuldade. O primeiro é a elevação do retalho muscular de parede lateral de esôfago que deve ser realizado com toda a delicadeza para não perfurar a mucosa esofágica. O segundo é a identificação e abertura da mucosa esofágica que vai ser anastomo sadacoma mucosa traqueal. Esta pode ser facilmente confundida com camada muscular de esôfago.

A engenhosa criação do mecanismo valvular com os retalhos musculares do esôfago diminui o risco de aspiração. Durante a deglutição, a dilatação esofágica puxa os retalhos em sentido posterior, comprimindo e ocluindo o shunt.

Tivemos três casos de fistulas faringocutâneas. Destes, dois ocorreram em pacientes submetidos a faringolaringectomias que têm risco aumentado para tal complicação. Apenas uma fistula necessitou cirurgia para seu fechamento.

Todos os pacientes desenvolveram fonação, incluindo aqueles submetidos a radioterapia pós-operatória, demonstrando um alto índice de sucesso da técnica e compatibilidade com tratamento combinado.

Tivemos dois casos de aspiração, mesmo assim só durante a ingestão de água. Foram facilmente controlados com orientação, não havendo necessidade de revisão cirúrgica do shunt.

Sendo nosso seguimento curto, não podemos tecer maiores comentários a respeito da sobreviria. Nossa expectativa é que apresente os índices usuais visto que não houve alteração da técnica cirúrgica ablativa.

Ao nosso ver as principais vantagens demonstradas pela técnica foram: indicação ampla, voz de boa qualidade, alta incidência de sucesso, baixa incidência de aspiração, compatível com radioterapia complementar, desnecessário o uso de prótese e aprendizado fácil.

As principais desvantagens foram: a necessidade do uso de urna das mãos para vocalização, um aumento ligeiro do tempo cirúrgico, e o traqueostoma tem que ser menor para proporcionar sua oclusão e pressão aérea suficiente para a fonação.

CONCLUSÃO

O shunt traqueoesofágico tipo Amatsu é uma técnica de grande potencial na reabilitação vocal e merece um divulgação maior em nosso meio devido ao baixo custo, fácil aprendizado e boa qualidade da voz obtida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. SINGER, M.: Vocal rehabilitation following laryngeal cancer. In COMMINGS, C.: FREDRICKSON, J.: HARKER, L.; KRAUSE, C.; SHULLER, D.: editors: Otolaryngology-Head and Neck Surgery, St. Louis, 1986, The C.V. Mosby Company.
2. LACCOURREYE, H.; LACCOURREYE, O.; WEINSTEIN, G.; MENARD, M., BRASNU, D.: Supracricoid Laryngectomy with cricohyoidopexy: a partial laryngeal procedure for selected supraglottic and transglottic carcinomas. Laryngoscope 100: 735, 1990.
3. PEARSON, B.W.; WOODS, R.D.; and HARTMAN, D.E.: Extendend hemilaryngectomy for T3 glottic carcinoma with preservation of speech and swallowing. Laryngoscope 90: 1904, 1980.
4. VIEIRA, M.B.M.; MAIA, A.F.; RIBEIRO, J.C.: Reabilitação Vocal Após Laringectomia Near Total. Aceito para publicação pela Revista Brasileira de Otorrinolaringologia.
5. PANJE, W.R.: Prosthetic vocal rehabilitation following laryngectomy. Ann Otol 90: 116, 1981
6. AMAM. M.: A one stage surgical technique for postlaryngectomy voice rehabilitation. Laryngoscope 90: 1378, 1980.
7. AMATSU, M.; MAKINO, K.; TANI, M.; KINISHI, M., KOKUBUM, M.: Primary Tracheoesophageal Shunt Operation for Postlaryngectomy Speech with Sphincter Mechanism. Ann Otol 95. 373, 1986.
8. AMATSU, M.; KINISHI, M.; JAMIR, J.: Evaluation of Speech of Laryngectomies after the Amatsu Tracheoesophageal Shunt Operation. laryngoscope, 94: 696, 1984.




* Médico assistente.
** Chefe do Serviço.
*** Residente.

Endereço para correspondência: Dr, Mauro Becker Martins Vieira- Rua Corinto, 430 - Bairro da Serra - Belo Horizonte - Minas Gerais - CEP 30210. Telefone: (031) 221-6523.

Trabalho realizado no Serviço de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Felício Rocho, Avenida do Contorno, 9530, Belo Horizonte, Minas Gerais.

Trabalho apresentado como tema livre no XXXI Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia de 15 a 20 de agosto de 1992 em São Paulo, Capital.

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