Versão Inglês

Ano:  2000  Vol. 66   Ed. 1  - Janeiro - Fevereiro - (13º)

Seção: Relato de Casos

Páginas: 77 a 81

 

MANIFESTAÇÕES CARDIOVASCULARES DA HIPERTROFIA. ADENOAMIGDALIANA. RELATO DE CASO.

Cardiovascular Manifestation of Tonsils and Adenoids Hypertrophied. Case Report.

Autor(es): Lauro J. L. Alcântara*,
João G. S. Mira**,
Marcos Mocellin***,
Guilherme S. A. Catani****,
Luciana G. Stahlke****,
Caetano Sartori*****,
Andréia Kurahashi******

Palavras-chave: apnéia obstrutiva do sono, hipertensão pulmonar, cor pulmonale

Keywords: obstructive sleep apnea, cor pulmonale, pulmonary hypertension

Resumo:
Os autores relatam o caso de uma criança que apresentava hipertensão pulmonar e cor pulmonale secundários a apnéia obstrutiva do sono causada por severa hipertrofia adenoamigdaliana, na qual a desobstrução das vias aéreas resultou em importante melhora clínica com significativa redução da área cardíaca. O objetivo dos autores em relatar esse caso é alertar sobre o desenvolvimento de complicações cardiovasculares decorrentes da hipertrofia de amígdalas adenóides.

Abstract:
The authors describe a child's case that presented pulmonary hypertension and cor pulmonale secondary to an obstructive sleep apnea caused by severe hypertrophy of tonsils and adenoids, where the airways desobstruction resulted in a clinical improvement with a significant reduction of the cardiac area. Our objective by mentioning this case report is to alert the development of cardiovascular complications as a result of hypertrophied tonsil and adenoids.

INTRODUÇÃO

Cor pulmonale e hipertensão pulmonar (HP) devidos a obstrução crônica de vias aéreas foram descritos em 1965 por Menashe, e desde então muitos casos têm sido relatados. Dentre as muitas causas de obstrução respiratória crônica em crianças, a hipertrofia de amígdalas e adenóides destaca-se por ser a mais freqüente.

A hipoventilação alveolar causa hipoxelnia e hipercápnia, que produzem vasoconstrição pulmonar, com conseqüente HP e cor pulmonale. O desenvolvimento de HP é mais freqüente em crianças que apresentam cardiopatias congênitas, doenças do interstício pulmonar, em portadores de síndromes genéticas com anomalias cardiovasculares; por exemplo, síndrome de Down, distress respiratório neonatal em associação com complicações como a displasia broncopulmonar e em doenças crônicas pulmonares7. Na grande maioria dos casos, a HP apresenta-se com manifestações clínicas discretas, sendo com freqüência diagnosticada quando ocorre descompensação cardíaca, por vezes precipitada por infecções de vias aéres.

É relatado o caso de uma criança que foi encaminhada por apresentar aumento da aérea cardíaca associada a hipertrofia de amígdalas e adenóides severa.

APRESENTAÇÃO DE CASO CLÍNICO

Paciente E.F.M., com quatro anos e seis meses de idade, elo sexo feminino, foi internada em agosto de 1998 para investigação de cardiomegalia e obstrução respiratória por hipertrofia adenoamigdaliana. No momento da admissão, apresentava-se febril, com tosse produtiva e dificuldade respiratória acentuada. Referia obstrução nasal e respiração bucal de suplência desde o primeiro ano de vida e episódios de apnéia durante o sono. Queixava-se também de traqueobronquites de repetição desde os quatro meses de idade. Paciente nasceu a termo e não necessitou de oxigenioterapia pós-natal.

Encontrava-se acianótica, dispnéica. A oroscopia demonstrava hipertrofia de amígdalas palatinas acentuada; na ausculta pulmonar, havia roncos e estertores difusos. No exame de precórdio, freqüência cardíaca de 120 bpm, impulsão sistólica de ventrículo direito (VD) em região para-esternal à esquerda, B1 hipofonética em área mitral e tricúspide e 132 hiperfonética em foco pulmonar. Fígado palpável a 2 centímetros de rebordo costa l direito, sem esplenomegalia. Ausência de baqueteamento digital ou edema de membros.

O raio x de tórax demonstrou aumento de área cardíaca às custas de átrio e VD com índice cárdio-torácico (ICT) de 0,63; tronco e hilos pulmonares proeminentes e circulação pulmonar periférica diminuída (Figura 1). O eletrocardiograma revelou ritmo sinusal, com um eixo do QRS a + 90° (no limite superior normal ele desvio para a direita, podendo sugerir sobrecarga de (VD), provável sobrecarga de átrio direito (ondas P pontiagudas nas derivações periféricas e plus-minus em V1 e V2) é uma alteração da repolarização ventricular em parede ântero-Septal (V1-V4) (Figura 2).



Figura 1. Rx de tórax demonstrando aumento da área cardíaca às custas de átrio e ventrículo direitos, com índice cárdio-torácico de 0,63. Note-se também circulação pulmonar periférica diminuída.



Figura 2. Eletrocardiograma demonstrando desvio de eixo cola QRS a + 90°, sobrecarga de átrio direito e alteração da repolarização ventricular em parede ântero-septal.



O hemograma mostrava discreta leucocitose com desvio à esquerda. Exames de função renal estavam normais. Paciente evoluiu com piora cio estado geral, taquidispnéia, esforço respiratório, bradicardia e cianose perilabial. Foi encaminhada à unidade de terapia intensiva cardiológica sendo submetida à intubação orotraqueal com melhora imediata do quadro de insuficiência respiratória aguda. Novo raio x de tórax realizado após a intubação mostrou diminuição importante da área cardíaca, com ICT ele, 0,55(1 (Figura 3). O ECG demonstrou ritmo juncional prejudicando a análise das ondas P; porém, notou-se uma pequena diminuição das ondas S em D1, significando um menor desvio do eixo para a direita, podendo denotar uma diminuição da sobrecarga de VI).



Figura 3. Raio x de tórax realizado após a intubação oro-traqueal; pode se notar a acentuada diminuição da área cardíaca, com índice cardio-torácico de 0,556.



Figura 4. Raio x de cavum demonstrando redução ele coluna aérea decorrente da hipertrofia de adenóides.



Figura 5. Raio x de tórax realizado 10 meses após a cirurgia. Exaure normal.



Figura 6. Eletrocardiograma realizado 10 meses após a cirurgia. Exame normal.



Causas possíveis de obstrução respiratória em crianças foram pesquisadas, o raio x de cavum demonstrou hipertrofia de adenóides com obstrução acentuada de via aérea em rinofaringe (Figura 4) e a oroscopia, hipertrofia de amígdalas palatinas grau IV. Não foram encontradas outras causas de obstrução respiratória. A paciente foi submetida a adenoamigdactomia com melhora do quadro. O ecocardiograma foi realizado após melhora clínica e encontrava-se normal.

Em acompanhamento ambulatorial após 10 meses a paciente persistia assintomática, negando obstrução nasal, dispnéia ou episódios freqüentes de infecção de vias aéreas, com exame físico normal e importante ganho ponderal. Raio x de tórax (Figura 5) e ECG (Figura 6) realizados estavam normais.

COMENTÁRIOS

Tecido adenoideno e amigdaliano hipertróficos, levando a obstrução nasal e infecções de vias aéreas superiores de repetição, constitui umas das principais queixas em consultas de otorrinolaringologistas e pediatras. O tecido linfóide inicia seu desenvolvimento ao redor dos dois anos de idade, chegando a um limiar máximo aos doze anos, para regredir posteriormente. O tratamento cirúrgico com a retirada do tecido hipertrófico permanece assunto de discussão entre otorrinolaringologistas, pediatras e imunologistas; entretanto, há situações nas quais todos indicam a realização da cirurgia são as chamadas indicações absolutas. A apnéia obstrutiva do sono (AOS), caracterizada pela parada da respiração durante o sono por tempo superior a dez segundos, acompanhada de obstrução nasal, respiração bucal, roncos noturnos, sono agitado e sialorréia, enquadra-se nessa situação. A realização de tratamento cirúrgico com alívio dos sintomas já está bem documentada.

A AOS está associada com significativa morbidade e mortalidade. Além de produzir alterações na qualidade de vicia com hipersonolência diurna, irritabilidade e baixo rendimento nas atividades diárias, um aumento na freqüência de mortes durante o sono tem sido relatado, provavelmente devido a arritmias cardíacas fatais. O desenvolvimento de cor pulmonale e insuficiência cardíaca crônica foi relatado há mais de 30 anos. Muitos estudos foram realizados na tentativa de estabelecer a fisiopatologia que leva às alterações cardiovasculares agudas e crônicas na AOS; entretanto, permanecera muitas controvérsias.

Alterações da freqüência cardíaca (FC) relacionadas à AOS são freqüentemente encontradas e são muito características, podendo inclusive ser de auxílio diagnóstico. A FC diminui durante a apnéia e aumenta de forma abrupta imediatamente após a apnéia. Zwillich e colaboradores15 compararam a FC imediatamente antes e depois da apnéia e concluíram que o desenvolvimento de bradicardia está diretamente relacionado cora o tempo de duração da apnéia e a desaturação arterial de oxigênio, ambos contribuindo para o seu desenvolvimento. Esse resultado é compatível com outros estudos clássicos sobre o reflexo da insuflação pulmonar, o qual demonstra que a hipóxia causa tanto bradicardia quanto taquicardia, na ausência ou na presença de ventilação, respectivamente. Connolly defende um aumento no tônus parassimpático durante a AOS que pode contribuir para a diminuição da FC; realizou um estudo utilizando atropina e, como resultado, obteve a prevenção do desenvolvimento de bradicardia4.

A obstrução crônica das vias aéreas leva a HP por causar hipoventilação com hipoxemia e hipercapnia, produzindo vasoconstrição e aumento da resistência vascular pulmonar (RVP). O mecanismo de vasoconstrição pulmonar aguda que ocorre em resposta a hipóxia é incerto. Existem algumas evidências de que a baixa tensão de oxigênio induza a liberação local de histamina, que, no nível de leito vascular pulmonar, possui ação vasoconstritora, através da estimulação de receptores H-1 de sua vasculatura . A ação do endotélio vascular como mediador de vasoconstrição hipóxica-induzida tem sido descrita e baseia-se em achados recentes da função do endotélio vascular na regulação da contração e relaxamento cio músculo liso. A liberação balanceada do fator de relaxamento derivado do endotélio (EDRF-NO) e da endotelina, um peptídeo vasoconstritor, pelas células endoteliais, possui importante função na regulação do tônus em vasos de resistência vascular sistêmica, podendo ser de considerável importância na circulação pulmonar. Outros estudos citam que a entrada de íon cálcio ou mesmo uma mobilização do cálcio intracelular, com aumento de seus níveis intracitoplasmáticos, produziria constrição vascular; entretanto, o mecanismo responsável por essa mobilização intracelular de cálcio permanece desconhecido. A acidemia parece potencializar os efeitos da hipoxemia, enquanto a alcalemia pode ter ação protetora2.

De acordo com os achados de exame físico, raio x de tórax e ECG anteriores à intubação encontrados na paciente desse relato de caso, podemos fazer o diagnóstico de HP com comprometimento de câmaras cardíacas direitas, sendo que as melhoras ocorridas posteriormente nestes parâmetros corroboram para esse diagnóstico. O ecocardiograma não demonstrou hipertrofia de câmaras direitas ou HP; porém, isto não exclui o diagnóstico firmado, pois são descritas dificuldades na detecção destes parâmetros por esse método complementar2.

O mecanismo fisiopatológico que explicaria a diminuição da área cardíaca encontrada após a desobstrução da via aérea permanece pouco esclarecido. Quando ocorre hipoxemia, a circulação pulmonar apresenta vasoconstrição, impondo maior resistência ao esvaziamento de VD, levando a um aumento do volume diastólico final dessa câmara. No caso da paciente em discussão, o que ocorreu foi o oposto, a melhora súbita da saturação arterial propiciada pela intubação levou a uma vasodilatação pulmonar facilitando o esvaziamento do VD e, consequentemente, diminuindo seu volume diastólico final. Tal hipótese procura explicar a diminuição da área cardíaca devido a uma menor distensão das fibras miocárdicas.

O objetivo dos autores era relatar esse caso é alertar sobre a importância do diagnóstico precoce das manifestações cardiovasculares decorrentes da obstrução crônica das vias aéreas, que, se diagnosticadas de forma precoce e adequadamente tratadas pela retirada do fator causal, podem ser, na sua grande maioria, revertidas completamente.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

1. BAKEHE, J. L.; MIRAMAND, B. C.; GAULTIER, C, L-; ESCOURROU, P. -Cardiovascular changes during acute episodic repetitive hypoxic and hypercapnic bresthing rats. Eur. Respi, J. 1995, 8, 1675-1980
2. BERMAN, E. J.; DIBENEDETTO, R J.; CAUSEY, D. E. - Right Ventricular Hypertrophy Detect by Echocardiography in Patients with Newly Diagnosed Obstructive Sleep Apnea. Chest, 991, 100, 2, pag 347-350.
3. BRAUNWALD, E; RICH, S; GROSSMAN, W. BRAUNWALD, E. - Heart Diseases. A Textbook of Cardiovascular Medicine. 5th Ed. Pennsylvania, Philadelphia. Ed. W. B. Saunders Company, ,1997, page 780- 806.
4. CONNOLY, C.G.,WINKLE,M. R.,TILKIAN,A. - Cyclical variation of the heart rate in sleep apnoea syndrome. Lancet, 1984; 1:12631
5. HUNGRIA, H., el cols. - Otorrinolaringologia. Ed. Guanabara Koogan. 7° Edição 1995 Rio de Janeiro
6. JACOBS, 1. N.; TEAGUE, W. G.; BLAND. J. W. - Pulmonary Vascular Complications of Chronic Airway obstruction in Children. Arch, Otolaryngol Head and Neck Surg., 123, July, 1997.700704
7. KATHLEEN, C.,Y., PERKINS, J., A., CLARK, W., R., - Acute right heart failure due to adenotonsillar hypertrophy. International Journal of Pediatric Otorhinolaryngology. 41, 1997.53-58
8. KESSLER, R. A.; CHAOUAT, E.; WEITZEMBLUN, E.; OSWALD, M. - Pulmonary hypertension in the obstructive sleep apnoea syndrome: prevalence, causes and therapeutic consequences. Eur. Respir. J. 1996, 9, 787-794
9. LAKS, L. LEHRHAFT, R.,R., GRUNSTEIN, SULLIVAN, C J. - Pulmonary hypertension in obstructive sleep apnoea. Eur. Respir. J. 1995, 8, 537-541
10. LEVIN, D. L.; MUSTER, A.; PACHMAN, L. M. - Cor pulmonale Secondary to Upper Airway Obstruction. Chest, 68:2, August, 1975.
11. MASSUMI, R. A.; POOYA. M.; REICHELDERFER, T. R. - Tonsilar hypertrophy, Airways obstruction, alveolar hypoventilation, and cor pulmonale in twin brothers. Dis. Chest, vol, 55, no.2, Febrtlary, 1969.
12. MENASHE, V. D.; FARREHI,.C.; MILLER, M. - Hypoventilation and cor pulmonale due to chronic upper airway obstruction. The Journal of Pediatrics. 67(2) August, 1965.198-203
13. NOONAN, J., - Reversible cor pulmonale due to hypertrophied tonsil sand adenoids: Studies in two cases. Suppl, 11 to Circulation, vol XXXI and XXXII, October, 1965.
14. RUOYIANES, J.,CRUZ,R,M. - Pediatric Adenotonsillectomy for Obstructive Sleep apnea. Far, Nose and Throat, july 1996, vol. 75, no. 7. 430-433
15. ZWILLICH C., DEVLIN,T., WHITE,D., DOUGLAS,N.,WEIL M.J. - Bradycardia during sleep apnea. Characteristics and mechanisms. J Clin. Invest., 1982; 69: 1286-1292.




* Médico do Serviço de Otorrinopediatria do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (HC - UFPR) e do Hospital Pequeno Príncipe, de Curitiba.
** Médico do Serviço de Otorrinopediatria do HC-UFPR.
*** Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia do HC-UFPR.
**** Residente de Otorrinolaringologia do HC-UFPR.
***** Residente de Cardiologia do HC-UFPR.
****** Acadêmica do 6°Ano de Medicina na Universidade Federal do Paraná.

Este trabalho encontra-se vinculado ao Serviço de Otorrinopediatria do Hospital Pequeno Príncipe e Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná. Este trabalho foi apresentado no Congresso Científico do Hospital de Clínicas e do Setor de Ciências da Saúde da UFPR, realizado em abril de 1999, e na IX Jornada Sul-Brasileira de Otorrinolaringologia, em Blumenau/ SC, realizada em abril ele 1999.

Endereço para correspondência: Andréia Kurahashi - Avenida Munhoz da Rocha, 931 - Cabral - 80030-000 - Curitiba/ PR - Telefone: (0xx41) 253-0451 - (0XX41) 997-8172 - Fax: (0xx41)253-6341 - e-mail: akurahashi@hotmail.com

Artigo recebido em 24 de junho de 1999. Artigo aceito em 2 de setembro de 1999.

Imprimir:

BJORL

 

 

 

 

Voltar Voltar      Topo Topo

 

GN1
All rights reserved - 1933 / 2024 © - Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial