Versão Inglês

Ano:  1991  Vol. 57   Ed. 4  - Outubro - Dezembro - ()

Seção: Relato de Casos

Páginas: 218 a 223

 

Lipoidoproteinose-hialinose mucocutânea. Doença de Urbach-Wiethe (Apresentação de um caso e revisão da literatura)

Lipoid proteinosis-hyalinosis cutis et mucose. Urbach-Wiethe disease (Report of a case and review of the literature)

Autor(es): Marone, S. A. M.*
Fuess, V.**
Porta, G.***
Minili, A.****

Palavras-chave: Lipoidoproteinose, dermatopatia

Keywords: lipoidproteinosis, skin diseases

Resumo:
Os autores fazem a revisão bibliográfica e apresentam um caso de Lipoidoproteinose, ou hialinose cutâneo-mucosa ou Doença de Urbach-Wiethe. Trata-se de uma doença rara, que ocorre por acúmulo de material hialino de natureza bioquímica desconhecida, nas mucosas, pele, trato aéreo digestivo alto, sistema nervoso central, e em outros tecidos. São descritos as manifestações e os achados clínicos gerais e otorrinolaringológicos, os exames complementares, bem como a evolução clínica. Pela raridade e gravidade da doença que não tende a regredir seja espontaneamente ou com tratamento, levando ao êxito letal, o otorrinolaringologista deve ter conhecimento prévio desta doença.

Abstract:
The authors presente a review of the literature and a report of a Lipoid proteinoses case or Hyalinosis cutis et mucosae or Urbach-Weithe disease. This is a rare disease, that occurs by the deposit of hialin material of unknown bioquimic nature, in the mucose, skin, upper air-digestive way, central nervous system, and in others tissues. The clinicals and otolaryngologicals manifestations are described as well as the complementary tests and clinical evaluation. Because of the rareness and gravity of this disease that does not tend to retroage spontaneously or with treatment, carrying to death, the ENT specialist must previously recognize this disease.

INTRODUÇÃO

A lipoidoproteinose, ou hialinose cutâneo mucosa, ou Doença de Urbach-Wiethe é uma doença rara, de transmissão recessiva, sendo ainda controversa a exata natureza da alteração genética (1,2).

Foi descrita, inicialmente, clínica e histologicamente por Urbach e Wiethe em 1929 (3,4), que a denominaram de lipoidoproteinose, devido a uma perturbação hipotética do metabolismo lipoidoproteico, hoje totalmente afastada. Ainda hoje é chamada de lipoidoproteinose mucocutânea por deposição de material hialino de natureza bioquímica desconhecida que se acumula na pele e mucosas. Pode haver acúmulo de material glicoproteináceo em glândulas salivares, trato aero digestivo alto, olhos, sistema nervoso central, e em outros locais e tecidos (5).

O acometimento da laringe geralmente ocorre nas primeiras semanas de vida, sendo a rouquidão o primeiro sintoma da doença em 2/3 dos casos (1,6).

As manifestações clínicas caracterizam-se por: retardo pondoestatural, disfonia, disacusia de condução, pápulas cutâneas amareladas, cicatrizes atróficas, blefarose moniliforme e conjuntivite pseudo-membranosa (7). Não há casos descritos na literatura de comprometimento hepático.

Apresentaremos um caso de lipoidoproteinose com comprometimento hepático associado.

A hialinose mucocutânea não tende a regredir, seja espontaneamente ou com tratamento, levando a maioria das vezes, ao êxito letal (5,8).

O diagnóstico precoce depende de que o otorrinolaringologista tenha conhecimento da patologia (9).

Na literatura mundial encontram-se descritos 200 casos (10). No Brasil são relatados 7 casos (1).

APRESENTAÇÃO DO CASO

Trata-se de uma criança de 5 anos de idade, sexo masculino, admitido no Instituto da Criança do Hospital das Clinicas da FMUSP para investigação de hepatomegalia, achado clínico em consulta de rotina. Nega antecedentes de icterícia, cobria. Nega antecedentes de ter ingerido drogas hepatotóxicas, transfusões e história de hepatite anterior.

Apresentava desde os 7 meses de idade lesões cutâneas pruriginosas, com formação de vesículas e bolhas, tendo sido submetida a vários tratamentos para dermatite atópica.

Foi realizada uma biópsia de pele que revelou focos de deposição de material hialino no derma, ectasias vasculares e reação inflamatória crônica inespecífica.

Aos 3 anos começou a apresentar sudorese intensa, fotossensibilidade e rouquidão que inicialmente era leve, tornandose progressivamente intensa. Apresentou várias infecções: broncopneumonia (4 vezes), otite média aguda de repetição, sinusite, gastroenterocolite aguda, varicela, sarampo e caxumba. Nega transfusões sanguíneas e doenças semelhantes na família. Pais não eram consangüíneos.

Durante o seguimento ambulatorial, feito durante 18 meses, no Ambulatório de ORL e de Pediatria do Hospital das Clínicas da FMUSP, o paciente apresentou várias crises de otite média, sinusite, broncopneumonia, tendo sido diagnostica das bronquiectasias infectadas.

Em vigência de tratamento de sinusite com antibioticoterapia, 4 meses antes de falecer, apresentou hemiparesia esquerda, que reverteu completa e espontaneamente após 15 dias. Exames realizados na época, como L.C.R., fundo de olho e tomografia computadorizada de crânio, revelaram-se normais. Permaneceu assintomático, do ponto de vista neurológico, durante 4 meses quando, na vigência de broncopneumonia, otite média supurada, abscesso submandibular e poliadenopatia generalizada, apresentou quadro convulsivo que evoluiu rapidamente para coma aperceptivo. A carotidoangiografia observou-se obstrução completa da carótida interna à esquerda sendo indicada craniotomia descompressiva. Evoluiu em coma profundo, falecendo uma semana após a cirurgia.

O exame físico de entrada para investigação diagnóstica de hepatomegalia revelou:

Peso: 16.800, Estatura = 98 em. (P menor 1,5)

Bom estado geral, anictérico, acianótico, hidratado, eupneico.

Pulmões limpos, Coração: BRNF sem sopros.

Abdomen: flácido, fígado palpável a 4,5 em do apêndice xifóide, de consistência endurecida, superfície lisa. Sem esplenomegalia.

Genitais: sem alterações.

Pele e anexos: pápulas, máculas e placas papulosas. amareladas, algumas atróficas, principalmente em dobras de pescoço e antecubitais.

Lesões hipocrômicas em face, pescoço, ombro, dorso, tronco e abdômen (Fotos).

Pápulas com crostas melicéricas em couro cabeludo, face e MMSS.

Unhas em "vidro de relógio" e descarnação periungueal dos quirodáctilos.

Oroscopia - edema e congestão da mucosa faríngea.

Laringoscopia Direta- epiglote edemaciada e aspiração das aritenóides à inspiração. Espessamento irregular das cordas vocais verdadeiras e falsas.

Rinoscopia - rinonrréia catarral abundante.

Otoscopia - MTD - Opacificada

MTE - Pequena perfuração central com otorréia mucóide espessa.

Exames complementares:

Hb- 10,9 g/dI, Ht- 36,9%, Leucócitos- 13.700/ml, Tp- 13 seg., T.Tromboplastina parcial ativado- 45 seg (nl 40 seg).

Proteínas totais- 7,2 g/dl, Albumina- 3,52 g/dl, Alfa 1 - 0,24 g/dl, Alfa 2 - 0,95 g/dl, Beta- 01 g/dI, Gama- 1,48 g/dl.

Bilirrubina total- 0,6 mg/dl, AST-10 U/1, ALT-17 U/1, GGT108 U/I, FA-1116 UII. Marcadores do VHA, VHB, EB, HIV, negativos.

Ceruloplasmina- 103 mg/dl, cobre urinário de 24 horas - 38 mg/24 hs. Cloro no suor- 6,5 ~g, Alfa 1 Antitripsina - 372 mg/dl, IgE sériea- maior que 650 UI (nl= 90UI).

Biópsia de pele:

Hiperqueratose e atrofia irregular dos cones epiteliais. Derme espessada com infiltrado inflamatório linfohístiocitário que invade e agride os vasos e perianexial. Capilares e parede do dueto espessados com deposição de material fibrinóide. Pesquisa de BAAR negativa. Deposição de substância PAS positiva em parede de vasos, de duetos excretores de glândulas sudoríparas e na derme média de permeio às fibras colágenas. Compatível com hialinose cutânea mucosa.

Biópsia de epiglote - quadro inflamatório compatível com hialinose cutâneo mucosa.

Biópsia de língua - Depósitos hialinos em tecido conjuntivo com padrão lamelar em tomo dos vasos sanguíneos.

Biópsia de fígado - Hepatite crônica com baixo grau de atividade.

Audiometria - disacusia de condução bilateral.

Rx Seios paranasais. Pan sinusopatia.

DISCUSSÃO

A doença de Urbach-Wiethe ou lipoidoproteinose cutâneo mucosa caracteriza-se por múltiplas manifestações sistêmicas devido a deposição de material hialino de natureza bioquímica desconhecida que acumula na pele e mucosas, sistemas nervoso central, periférico, olhos e outros locais e tecidos.

As manifestações iniciais do caso relatado iniciaram-se ainda no primeiro ano de vida com prurido intenso e rouquidão progressiva a partir do quarto ano de vida. Chama atenção neste caso, outra manifestação clínica que era a hepatomegalia, motivo da consulta ao Instituto da Criança. Não há casos descritos na literatura de comprometimento hepático nesta doença. O diagnóstico histopatológico foi de uma hepatite crônica ativa debaixo grau de atividade, cuja etiologia não foi encontrada, portanto sendo criptogenética. As drogas que o paciente ingeriu nos 5 anos de vida não eram hepatotóxicos. A etiologia não-A não-13 deve ser cogitada, dado as inúmeras manipulações que o paciente foi submetido desde o início de sua vida. Chama ainda atenção os níveis elevados das enzimas canaliculares que não aparece em etiologia viral, porém quando há comprometimento de vias biliares. Apesar de não ter-se estudado as vias biliares e de não haver relatos da literatura pode-se inferir depósitos deste material hialino em vias biliares.

Lesões vesiculosas, bolhosas e papulares em região facial e cervical.


 



As lesões cutâneas que nosso paciente apresentava, assim como o resultado da biópsia de pele com depósitos de substâncias hialinas são características desta doença. Parece que o defeito primário desta doença seja uma alteração lisossômica cuja natureza bioquímica ainda não foi definida. Harper e cols., descreveram que o material hialino depositado na derme contém excesso de matrix de glicoproteinas e menor quantidade de fibras colágenas. Estes autores aferiram ainda que esta doença não pode ser vista como um defeito genético do colágeno, mas também de alterações da atividade celular (fibroblastos, epitélio, endotélio) ou seja haveria pouca produção de colágeno fibroso e super produção de colágeno de membrana basal.

As alterações do trato aerodigestivo alto, podem se manifestar no primeiro ano de vida. O acometimento laríngeo geralmente ocorre nas primeiras semanas de vida, sendo a rouquidão o primeiro sintoma da doença em 2/3 dos casos. O diagnóstico definitivo é feito pela biópsia de epiglote. Nesta, observa-se espessamento da epiglote, aritenoides e pregas ariepiglóticas edemaciadas, espessamento irregular de cordas vocais verdadeiras e falsas, com aumento da rigidez de cordas vocais verdadeiras. Em biópsia de língua observa-se depósitos hialinos em tecido conjuntivo em padrão lamelar em torno dos vasos sanguíneos. Há relatos de sinusopatia, fato observado em nosso paciente. O nosso paciente apresentou também quadro de otite média crônica simples, repetidas vezes. O diagnóstico, precoce depende de que o otorrinolaringologista tenha conhecimento da patologia.

As manifestações para sistema nervoso são freqüentes, fato também observado em nosso paciente, que o levou a falecer. Em muitos casos há calcificações intracranianas para selares, em forma de vírgula em 50% dos pacientes. Nosso paciente não apresentava calcificações, e seu quadro inicial clínico foi isquêmico. Posteriormente teve quadro de acidente vascular cerebral hemorrágico vindo a falecer. São descritos material hialino em vasos cerebrais, com obstrução dos mesmos. Classicamente o paciente pode apresentar convulsões, crises epilépticas do tipo "deja vacu", psicose alucinatória paranóica.

A hialinose mucocutânea não tende a regredir, seja espontaneamente ou com tratamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Savage M.M.; Crockett D.M.; McCabe B.F.- "Lipoid proteinosis of the larynx: A cause of voice change in the infant and young child". International Journal of Pediatria Otorhinolaryngology, Feb.15(1):33-8, 1988.
2. Leheup B.P.; Jeandel C.; Guedenet J.C.; Mandon G.; Macquart F.X.; Kieffer B.; Weber M.; Vidailhet M. - " Hyalinosis sutis and mucusae. Ultrastructural histochemical aspects indicating intracecullar acumulation of glycosaminoglycans". Annales de Pathologie, 6(1):53-9, 1986.
3. Urbach E.; Wiethe C. - "Lipoidosis sutis mucosae". Virshow Arch.Path.Anat., 27:295, 1929.
4. Sangueza P.; Bellido H.; Pinto A. - "Lipoidoproteinosis" Med.Cul.I.L.A., voLIX:211-216, 1981.
5. Finkelstein M. W.; Hammond H.L; Jonas RB. - "Hyalinosis sutis et mucosae". Oral Surgery, Oral Medicine, Oral Pathology, ju154(1): 49-58, 1982.
6. Bergenholtz A.; Hofer P.A.; Olman J. -"Oral, Pharyngeal and Laringeal Manifestations in Urbach-Wiethe Disease". Annal of Clinica! Research, Feb. 9(1): t-7, 1977.
7. Barthelemy H.; Mauduit G.; Kaniwkis J.; Cambazard F.; Thivolet J. "Lipoid proteinosis with Pseudomembrancus conjunctivitis". Joumal of the American Academy of Dermatology. Feb. 14(2 Pt 2): 367-71, 1986.
8. Gruntzig J. - "Hyalinosis sutis et mucosae". Fortschritte der Medizin, Apr. 21, 101(15):690-6,1983.
9. Aziz M.T.; Mandous M.A.; El Ghazzawi LF.; Belal A.; Tahaat A.M. - "UrbachWiethe disease in ORL practice". Joumal of Laryngology and Otology, nov., 94(11): 1309-19, 1980.
10. Meenan F.O.; Bowe S.D.; Dinn JJ.; Mc Cabe M.; Mc Culleno; Masterson J.G.; Towers R.P. - "Lipoid proteinosis: a clinicai, pathological and genetic study". Quartely Journal of Medicine, Oct., 47(188): 549-61, 1978.
11. Asseis RA.; Mattos RA. - "Hyalinose cutâneo mucosa - relato de um caso". Arqu. Neuro Psiquiatria (São Paulo), vol.42, n4, dezembro, 1994.




* Professor Assistente Doutor da Clínica ORL da Faculdade de Medicina da USP.
** Médica Assistente e Pós-Graduanda da Clínica ORL da Faculdade de Medicina da USP.
*** Médica Assistente Doutor do Departamento de pediatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
**** Professor Titular de Clínica ORL da Faculdade de Medicina da USP.

Trabalho realizado no Departamento de Otorrinolaringologia e no Departamento de Pediatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Endereço doas autores: Av. Prof. Eneas de Carvalho Aguiar, 255 - 6° andar, sala 6021 - São Paulo - Brasil - CEP 05403

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