Versão Inglês

Ano:  1991  Vol. 57   Ed. 2  - Abril - Junho - ()

Seção: Homenagem

Páginas: 59 a 60

 

Meu caro Rudolf Lang; querido amigo e mestre,

Autor(es): MÁRIO GENTIL COSTA, O MAJENKO *

Esta é a última carta que te escrevo. Todas as outras, que foram muitas ao longo de 27 anos, tiveram resposta imediata e atenciosa. Esta, infelizmente, ficará sem retorno, a exemplo da penúltima, escrita não faz 15 dias, na qual te mandei a fotografia que tiramos juntos na praia de Canasvieiras no verão passado. Parece que foi ontem e, no entanto, lá se vão três meses. Talvez nem tenhas tido tempo de lê-la, pois estavas de partida para a Alemanha, numa derradeira e heróica tentativa de derrubar o mais terrível dos obstáculos que um ser humano está fadado a enfrentar, esse maldito tenaz que já ceifou tantos valentes e que nem mesmo um vencedor, com a excelência do teu porte, saberia subjugar. Tu sabias que seria assim. Contudo, por ti mesmo e por todos os que se acostumaram a te olhar com admiração, respeito e não raro assombro, te dispuseste a desafiá-lo com a garra que punhas em campo na hora das tuas grandes batalhas.

Lembro o dia em que te conheci, no Congresso Brasileiro em 1964, em Curitiba. Foi ali, numa espécie de repente incontrolável, que arranjei coragem para me aproximar e pronunciar meu nome. Acabavas de te anunciar no palco da Otorrino brasileira como um novo líder que tinha vindo para ficar. Dali nasceu o assombro de que falei acima. Com quê determinação te impuseste naquele pódio, onde só figuravam as mais luzidias estrelas! Tu, um gaúcho jovem e até então meio desconhecido, abrindo no peito, na raça e no brilho do teu talento, um espaço imenso e exclusivo que ninguém mais ousaria questionar. Com quê simpatia me recebeste, logo pronto a me ajudar e a me passar generosamente o muito que já sabias.

Logo em seguida, fiz as malas e corri para Porto Alegre, o porto seguro da tua hospitalidade, onde desenvolvias, com trabalho, seriedade e a mais extrema confiança em ti mesmo, uma incomparável habilidade na cirurgia do ouvido, que, se não era automaticamente transferível - já que isso dependia dos dotes de cada um dos teus ansiosos aprendizes -, era oferecida com isenção e fartura, pela delicadeza das manobras e os sábios conselhos técnicos de como fazer e, sobretudo, de como não fazer. Já estava ali, plasmada e madura, a figura do genuíno mestre.

Aprendi muito contigo e se também não cheguei lá, no mesmo pódio, a culpa é toda minha. Talvez nem desejasse tanto, já que não sou dono dos mesmos limites e as nossas cabeças, embora solidárias e coerentes em tantos pontos de vista, não coincidiam, malgrado meu, nas mesmas metas de vida, exceto aquelas da ética e da seriedade que devem, a todo custo, acompanhar o médico no seu dia-a-dia.

Um sem-número de vezes estivemos juntos a partir de então, ora em estágios rápidos no Hospital Ernesto Dornelles, aonde me dirigia toda vez que me sabia incompetente para solucionar a contento os crescentes desafios que era obrigado a enfrentar, ora em congressos e jornadas em que consolidávamos, de maneira inconsciente e espontânea, uma amizade mútua e salutar, vazada, até mesmo, nas nossas insondáveis diferenças individuais.

De uma forma impensada, sabíamos que cada vez seria mais uma e, ao mesmo tempo, menos uma oportunidade de desfrutar essa proveitosa convivência. Só não sabíamos, nem imaginávamos, que a mesma seria interrompida tão cedo. Estranhamente, entretanto, como se já estivesses adivinhando que não te restava muito tempo, passaste a dedicar mais espaço aos amigos, procurando-os mais amiúde, por visitas ou mesmo ao telefone, como se alguma esquisita espécie de intuição te prevenisse de que era chegado o momento de dar mais atenção àqueles valores de natureza mais inferior que, até então, sufocavas no pragmatismo do trabalho incansável. Notei logo, não sei como nem por quê, uma mudança sutil e inesperada na tua atitude diante da vida. Ainda não sabias nada da sombria e devastadora tempestade que escurecia de forma intransponível o teu horizonte mais imediato. Contudo estavas diferente, mais sentimental, diria até, mais suave e mais receptivo a indagações e questionamentos de ordem afetiva e emocional, como se, de repente, tudo isso tivesse que ser desenterrado do fundo da tua contida e controlada sensibilidade. Planos e sonhos de curtir a vida de jeito mais romântico ou, num certo sentido, mais contemplativo e menos vertiginoso passaram a ocupar em teus anseios, uma perspectiva mais prioritária. Tu estavas mudado e eu não cogitava por quê.

Eis que, logo após uma temporada especialmente bem curtida de verão aqui na ilha, desaba, com toda a sua maligna força destrutiva, o imprevisto e repentino vendaval, o teu vendaval pessoal e particular, inelutável e cruel, acima de tudo imerecido, por todos os títulos ao alcance do conhecimento humano, se a escolha das suas vitimas não for puramente uma questão de acaso.

Mesmo assim, sabendo-te perdido, ainda tiveste a fibra é o destemor de enfrentá-lo, de início fazendo um inaudito esforço para vergar a rigidez do primeiro impacto e, logo adiante, armazenando a tua inesgotável capacidade de resposta a tão tamanha desgraça, procurando convencer-te, com argumentos carregados de esperança auto-sugestiva, de que serias capaz de submeter o terrível flagelo à tua vontade, e de transformares no tão sonhado e excepcional ganhador desse tipo de batalha inglória. Mas, infelizmente, não conseguiste.

Deixas, no seio da Otorrino brasileira e estrangeira, uma inumerável legião de antigos e admiradores, muitos deles teus discípulos, entre os quais, eu e todos os catarinenses a quem estendeste a mão ou ajudaste a curar.

Que a tua breve e fecunda estada entre nós todos possa servir de exemplo e de estímulo a atuais e futuras gerações, pois agora, elevado d galeria dos imortais, terás deixado impressa a marca profunda e inapagável da tua passagem e da tua extrema grandeza como médico e mestre indiscutível e, acima de tudo, como um dos seres humanos mais extraordinários que tive a felicidade, a sorte e o privilégio de conhecer.

Ter sido teu amigo e aluno constitui um dos mais preciosos títulos a compor e a enriquecer o currículo da minha vida como pessoa e como médico.

Aqui fico, por enquanto, sentindo uma imensa pena e uma tremenda saudade, uma saudade daquelas que só poderá ser compensada se algum dia, em algum lugar do espaço e do tempo, viermos a nos encontrar de novo.




* Florianópolis, maio de 1991

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