Versão Inglês

Ano:  1990  Vol. 56   Ed. 4  - Outubro - Dezembro - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 155 a 158

 

Estudo das alterações cocleovestibulares após cirurgias cardíacas com circulação extracorpórea

Cochleo-vestibular alterations after bypass cardiac surgeries*

Autor(es): Ricardo Ferreira Bento**
Silvio da Silva Caldas Neto***
Priscila Bogar***
Aroldo Miniti****

Palavras-chave:

Keywords: neuro senrial deafness, vestibular disorders cardiac surgery

Introdução

Algumas cirurgias necessitam, para uma boa executabilidade, que o coração do paciente esteja imóvel e vazio, uma vez que envolvem procedimentos cirúrgicos de extrema delicadeza e precisão e/ou manipulação das estruturas internas deste órgão. Para obterem tal condição, os cirurgiões torácicos lançam mão da circulação extracorpórea (CEC), que consiste em fazer o sangue desviar-se inteiramente do coração por meio de tubos conectados ás veias cavas e pulmonares, retomando aos tecidos através de tubos conectados às artérias pulmonar e aorta, após passar por um sistema de bombeamento, filtração e oxigenação. Desse modo, é possível que sejam injetadas drogas cardioplégicas no coração, ficando este absolutamente imóvel.

Este procedimento pode, entretanto, causar. distúrbios metabólicos e/ou hemodinâmicos variados, podendo comprometer a função de outros órgãos. São descritas complicações renais, pulmonares, neurológicas, etc.(1) Aremberg e col (2) em 1971 foram os primeiros a relatar surdez súbita após cirurgia de prótese valvular. Please e col.(3), em 1981, estudou sete casos de surdez súbita em sete mil cirurgias cardíacas cem CEC. Escarcega e col (4)descreveram, em 1988, 11 casos entre 5.957 intervencões e atribuíram esta complicação a três possíveis mecanismos: micrombolismos, micro-hemorragias e/ou déficit de perfusão. Em 1971, Brownson e col (5) já haviam estudado o comportamento audiométrico de 50 pacientes submetidos a cirurgias cardíacas com CEC e não perceberam alterações importantes. São muitos os relatos pessoais de otorrinolaringologistas de pacientes que, após serem submetidos a cirurgias cardíacas em que foi usada CEC, referiram hipoacusia e, por vezes zumbido e/ou vertigem. O objetivo deste trabalho é estudar doente submetidos a cirurgias cardíacas com CEC do ponto,de vista audiológico e de queixas subjetivas relacionada, com o aparelho cocleovestibular.

Casuística e Metodologia

Foram estudados 40 paciente, submetidos à cirurgia cardíaca sol CEC, entre maio e julho de 1983, no Hospital São Joaquim da Real e Benemérita Sociedade de Beneficência Portuguesa de São Paulo. Não foram incluídos no estudo aqueles caso: que fizeram uso de antibióticos aminoglicosídeos durante ou após o ato cirúrgico. As cirurgias realizadas foram de revascularização miocárdica valvuloplastia e troca valvular Trinta e cinco pacientes eram do sexo masculino e cinco do sexo feminino. A idade variou de 17 a 68 anos, com uma média de 55,15.

Todos os pacientes foram submetidos à anamnese, segundo ficha padrão (Figura 1), onde foram pesquisados sintomas vestíbulo-cocleare; prévios como zumbido, tontura, hipoacusia e outros. Medicamentos em uso (e por quanto tempo) foram anotados. Foi também realizado exame físico otorrinolaringológico. Em todos os pacientes foram obtidos no pré-operatório:
- curva audiométrica tonal com discriminação;
- timpanometria e reflexo estapediano.

No 10°- dia após a cirurgia (tempo médio de alta hospitalar), o doente era submetido à nova anamnese e novo exame físico otorrinolaringológico. Em seguida realizavam-se novas audiometria tonal e impedanciometria. Eram ainda relacionadas a partir do prontuário cirúrgico:

- drogas usadas no trans-operatório;
- intercorrências e complicações trans e pós-operatórias;
- tempo de duração da parada cardíaca (PC) e possíveis alterações.

Para analisarmos as alterações da audiometria tonal, obtivemos o limiar médio entre as freqüências 250, 500, 1000, 2000, 4000 e 6000 Hz.

Para tentar relacionar as possíveis alterações com o uso de CEC, dividimos os pacientes em três grupos, de acordo com o tempo de duração da PC. Assim, temos:

- Grupo I - tempo de duração de PC até 1 hora;
- Grupo II - PC com duração de 1 a 1,5 hora;
- Grupo III - duração acima de 1,5 hora.





Resultados

Tempo de parada cardíaca

O tempo de duração da PC variou de 21 minutos a duas horas. No grupo I, tivemos 23 pacientes (57%), enquanto que nos grupos II e III incluíram-se, respectivamente, 9 (23%) e 8 (20%) casos (Tabela 1).

















Intercorrências

Aconteceram dois casos trans-operatórios (dificuldade de reanimação cardíaca). Em ambos, houve piora discreta da audiometria, não percebida por parte do paciente. Não houve alteração quanto ao zumbido, tontura e timpanometria.

Houve dois casos de intercorrências pós-operatórias: um de hematúria traumática por cateter e o outro de obstrução nasal e rinorréia aquosa. No primeiro caso, a única alteração foi uma melhora no limiar audiométrico, discreta, não percebida pelo paciente. No segundo caso, a queda audiométrica foi percebida pelo doente. Não houve mudança quanto ao zumbido e tontura.

Zumbido (Tabela 2)

- Apareceu /piorou: 7 doentes (17% do total de 40).
- Melhorou / desapareceu: nenhum.
- Inalterado: 33 doentes.
No grupo I de pacientes, houve quatro casos de aparecimento ou piora deste último sintoma, o que correspondeu a 17% do total do grupo. Tivemos apenas um caso no grupo H (11% deste grupo). No grupo III, houve 25% (dois casos).

Tontura (Tabela 3)

- Apareceu /piorou: 4 doentes (10% do total).
- Melhorou /desapareceu: 4 doentes.
- Inalterado: 32 doentes.
Ao relacionarmos os casos de aparecimento ou piora com o tempo de parada cardíaca, observamos que eles apareceram em 13% (três casos) dos pacientes do grupo I, em 11% (um caso) do grupo II e em nenhum caso do grupo III.


Hipoacusia (Tabela 4)

- Apareceu / piorou: 7 doentes.
- Melhorou / desapareceu: 1 doente.
- Inalterado: 33 doentes.

Entre os sete casos de piora auditiva, encontra-se aquele com evidências de disfunção tubária no pós-operatório (já comentado), a qual não pode ser atribuída a alterações inerentes à CEC. Os outros seis casos (15% do total de 40) foram responsáveis por 13%. (três pacientes) dos casos do grupo I, 22% (dois casos) do grupo II e 12% (um caso) do grupo III.

Audiometria tonal (Tabela 5) Houve no total 28 casos (70%) piora na curva audiométrica de um ou outro ouvido. Percebemos ainda 20 casos (50%) de melhora da curva em pelo menos um dos lados. Os 2 casos de piora foram responsáveis por 61 % entre os pacientes do grupo 1 (14 casos), 67% entre os do grupo H (seis casos) e 100% dos casos d grupo III.

Do grupo I, 52% (12 casos) apresentaram melhora, enquanto que este índice foi de 67% para o grupo I (seis pacientes) e de 25% (dois pacientes) para o grupo III.

Impedanciometria

Não houve alterações em número apreciável na timpanometria ou no reflexo estapediana. Um dos casos apresentou mudança na timpanometria do tipo As de Jerger(e) para o tipo C, associada à obstrução nasal e rinorréia aquosa, indicando disfunção tubária.

DISCUSSÃO

A rede vascular que nutre o ouvido interno é formada por vasos de extrema delicadeza. Por este motivo, inúmeros casos de disacusia neurossensorial (incluindo principalmente a presbiacusia e grande parte dos casos de surdez súbita), assim como outros sintomas vestíbulo-coleares são atribuídos a alguma alteração, ainda que discreta, do fluxo sangüíneo labiríntico ou do metabolismo.
Seria natural, portanto, pensar que um procedimento com as implicações hemodinâmicas e metabólicas de uma cirurgia cardíaca associada a um "bypass" cardiopulmonar levaria a um prejuízo funcional do labirinto.

Na casuística apresentada, houve piora da curva audiométrica em 70% dos casos. Isto associado ao fato de haver relação diretamente proporcional com o tempo de duração da CEC poderia ser considerado como conseqüência direta do procedimento cirúrgico. No entanto, a grande maioria destes pacientes não notou variação alguma, o que não nos surpreende, haja vista que só oito casos (20%) apresentaram queda acima de 5 dB após a cirurgia. Variações tão pequenas como estas podem facilmente ocorrer devido à subjetividade do teste sem sugerir qualquer anormalidade na função auditiva. Cabe ressaltar que os pacientes eram submetidos a testes audiométricos dez dias após a cirurgia, estando ainda sob efeito tensional do procedimento. Além disso, 50% dos pacientes apresentaram melhora audiométrica em um dos ouvidos, também muito discreta, o que reforça o que acabamos de dizer. Teoricamente, um possível aumento do fluxo sangüíneo promovido pela CEC poderia ter trazida benefícios à irrigação da cóclea, entretanto achamos esta hipótese muito improvável.

Em relação ao zumbido e tontura, não observamos um número apreciável de alterações. Nos poucos casos em que elas ocorreram, não houve qualquer relação com o tempo de duração da PC.

A impedanciometria também não forneceu dados que pudessem sugerir implicações da CEC nas condições do ouvido médio ou interno.

O número de intercorrências durante ou após o ato cirúrgico foi insuficiente para uma análise confiável.

As drogas utilizadas durante ou depois das cirurgias foram muito variadas em tipo e dosagem, não permitindo assim uma boa apreciação dos seus efeitos sobre a função vestíbulo-coclear. Aquelas que vinham sendo usadas antes do ato cirúrgico o eram de forma crônica, não podendo ser responsabilizadas por alterações agudas observadas no pós-operatório imediato.

A CEC é um procedimento cirúrgico com implicações hemodinâmicas importantes, mas com nenhuma alteração significativa na função auditiva ou vestibular, embora possa haver, em raros casos de pacientes talvez com alguma predisposição mal conhecida, comprometimento agudo considerável da audição de forma permanente ou temporária, o que explicaria tal ocorrência relatada na literatura. Possivelmente, o ouvido interno tem a sua integridade funcional protegida, no decorrer do "bypass", pelas técnicas avançadas de hemodiluição e perfusão de alto fluxo, bem como por uso de materiais cada vez mais biocompatíveis e equipamentos cada vez mais precisos(1).

Conclusões

O presente estudo conclui que nos 40 casos estudados não houve alterações significativas do aparelho cocleovestibular no pós-operatório imediato de cirurgias cardíacas com CEC.

Bibliografia

1. Clark, R.E.; Weldon, C.S. - Metabolic Responses to Extracorporeal Circulation. Cardiac Surgery. 2nd edition. Appleton-Century-Crofts, New York,1972.
2. Aremberg, K.; Alleg, G.; De Boer, A. - Sudden deafness following cardiopulmonary bypass. J. Laryngo186:73-77, 1972.
3.Please, H.; Mittlelman, Y.; Frost, O. - Unilateral sudden hearing loss after open heart surgery: a detailed study of seven cases. Laryngoscope 91:101-109,1981.
4.Escarcega, J.L.C. e col. - Sordera subita en enfermos sometidos a cirurgia cardiaca con circulacion extracorporea. Arch. Inst. Cardiol. Mex. 58:447-451,1988.
5.Browsou, RJ.; Stroud, M.H.; Carver, W.F. - Extracorporeal cardiopulmonary bypass and hearing. Arch. Otolaryngol 93:179-182, 1971.
6.Jerger, J.; Northen, J.L. - Clinical Impedance Audiometry. American Electromedics Corporation - Acton, Massachusetts, USA, 1980.




Agradecemos à Equipe de Cirurgia de Tórax do Prof. Dr. Euclides de Jesus Zerbini pela possibilidade da observação destes casos operados.

* Trabalho realizado pela Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Apresentado no XXX Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, Rio de Janeiro, RJ. 1990.
** Professor Livre-Docente da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
*** Médicos Residentes da Divisão de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.
**** Professor Titular da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Endereço dos autores: Ricardo Ferreira Bento -Rua Dr. Eneas de Carvalho Aguiar, 255, Sala 6021, São Paulo, SP, CEP 05403.

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