Versão Inglês

Ano:  1990  Vol. 56   Ed. 4  - Outubro - Dezembro - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 151 a 154

 

Complicações otológicas em crianças fissuradas

Otological complication in cleft palate

Autor(es): Ariovaldo Armando da Silva*
Oscar Antonio Queiroz Maudonnet**

Palavras-chave:

Keywords: cleft palate; middle ear

Resumo:
Os autores relatam as principais causas das otites freqüentes em fissurados e fazem considerações sobre o uso de tubos de ventilação.

Introdução

As deformidades palatinas freqüentemente são acompanhadas de manifestações clínicas associadas e distantes da cavidade oral. As crianças fissurados apresentam distúrbios no desenvolvimento da fala, alterações da deglutição, doenças do ouvido médio e dificuldades adaptativas-sociais. É estimada em 1:500 e 1:750(1) a incidência de fissura palatina em nascidos vivos, tanto em sua forma isolada como associada a outras malformações. Em crianças com fissura palatina, a incidência de otite média varia entre 50% e 90% dos casos, conforme o estudo realizado(2,3,4,5,6), o que é 30 vezes mais freqüente que nas populações normais(7) e de fissurados labiais unicamente(1,5). Geralmente as otites são decorrentes de alterações tubárias e da mucosa nasal. Mesmo em populações assintomáticas é de 37% a incidência silenciosa de otite(s), demonstrada por exames timpanométricos(6). Existe déficit auditivo conjuntivo em 90% das crianças fissuradas com otite média(9,10), sendo geralmente de intensidade leve ou moderada(7). Observa-se em pouco mais da metade dos casos, escassa pneumatização bilateral das mastóides(7). As otites freqüentes na infância podem provocar lesões neurossensoriais(13,14), assim também outras seqüelas otológicas como retração e perfuração do tímpano(11 ). A incidência de otites diminui após a correção cirúrgica do palato e também com o avançar da idade do paciente(11). Este déficit auditivo contribui para comprometer o desenvolvimento da fala na criança fissurada(12).

As malformações crânio-faciais e as fissuras palatinas têm origem congênita de base genética (síndrome cromossômicas) ou adquiridas (por drogas, infecções na gravidez, etc...). As malformações faciais que atingem o primeiro e - segundo arcos branquiais são freqüentemente acompanhadas de lesões no ouvido médio, especialmente com alterações da cadeia ossicular e atresia de condutos e, conseqüente, hipoacusia condutiva. Ocasionalmente ocorrem malformações do ouvido interno, por comprometimento do folheto ectodérmico, resultando em surdez neurossensorial(13,14). Poucas malformações têm surdez mista e de caráter progressivo(14), como é a displasia crânio-metafiseal. Genericamente, a surdez está presente em mais de 50% dos pacientes com malformações faciais. Nos estados associados de fissura palatina e malformações faciais a incidência de surdez aumenta n razão direta do número de outras malformações presentes(13,14). Ressalta-se que nos fissurados, em s maioria, as alterações anatômicas buco-naso-faríngeas são as responsáveis pelas otites médias e conseqüentemente hipoacusia condutiva.

Linguagem e Audição - Aspectos gerais e no fissurado

A aquisição normal da linguagem depende de um sistema sensorial auditivo normal, do sistema perceptivo - integrador central amadurecido estruturado (áreas corticais e sub- corticais cerebrais) e de um sistema expressivo motor perfeito. É um pr cesso dependente de aprendizado constante, do estado emociona equilibrado, estimulante e da realimentação própria do sistema (15). sistema auditivo compreende o ouvi do, o nervo auditivo, em suas porções e conexões tronculares, sub- corticais, corticais e em especial lobo temporal.

O sistema auditivo atua como exteroceptor sonoro e na realimentação acústica das emissões orais, desenvolvendo e aperfeiçoando a fala. Interessa-nos discutir a porção periférica. O ouvido possui três porções (externa, média e interna) anatomicamente situadas em escavações do osso temporal (Fig. 1) e revestidas por tecidos específicos. O ouvido externo tem função de condução do som do exterior para a membrana timpânica. O ouvido médio amplifica e conduz o som em direção ao ouvido interno, utilizando, para isto, a cadeia ossicular. O ouvido médio possui comunicação com a rinofaringe através da tuba de Eustáquio e tem por função igualar a pressão entre o ouvido médio e o ambiente. Fisiologicamente a mucosa da caixa timpânica absorve 1 ml de gás por dia, determinando queda da pressão do ar interno, que se não reposto pela tuba, acarretará retração da membrana timpânica até sua total aderência ao fundo da cavidade(1). A obstrução tubária prolongada provoca secreção serosa no ouvido médio, fenômeno que é observado experimentalmente após 25 horas de ligação cirúrgica da tuba, sendo observada após 60 horas uma metaplasia da mucosa da caixa timpânica(16). A timpanometria é o exame utilizado para estudar a função tubária e consiste em medir a mobilidade da membrana timpânica e da cadeia ossicular, revelando alteração da impedância local (resistência). às pressões externas (positivas ou negativas), quando existir efusão na caixa e/ou retração timpânica ). No ouvido interno está o região neurossensorial, responsável pela transdução da mensagem sonora, fenômeno no qual a energia acústica mecânica é transformada em estímulo neuroelétrico (Fig. 1).

As deficiências auditivas são divididas em três grupos:
1. Condutivas - quando existe comprometimento do ouvido externo e/ou médio;
2. Neurossensoriais - quando existe comprometimento das funções do ouvido interno;
3. Mistas - associação de perda condutiva e neurossensorial.

O exame audiométrico subjetivo tonal permite identificar os diferentes tipo de surdez. O teste audiométríco é aplicado através da estimulação sonora sobre o conduto auditivo externo (via aérea) e sobre a região mastóidea (via 6ssea) (Fig. 2). No caso das patologias Condutivas a transmissão por via aérea está prejudicada, enquanto a transmissão por via 6ssea mantém-se inalterada. Nas lesões neurossensoriais, tanto a via aérea como a via óssea estão igualmente prejudicadas. Os limiares das intensidades sonoras percebidas são determinados em diferentes freqüências e registrados em gráfico adequado.

A classificação das intensidades das perdas auditivas é suas conseqüências sobre a recepção dos sons da fala são analisadas no esquema n°1.

Nos casos das otites em fissurados, a surdez geralmente é condutiva, de intensidade leve a moderada e devido à disfunção tubária. Está caracterizada na fala dos pacientes, por substituição de consoantes (especialmente as surdas-sonoras), alterações da emissão de vogais, nasalidade e sigmatismo(7). A linguagem como processo mais amplo, dependente do pensamento, não é alterada por este déficit auditivo(17).



Fig. 1



Fig. 2 - Transmissão do som por via óssea (V.O.) e via aérea (V.A.)





Fisiopatologenia

As complicações do ouvido médio dependem de três fatores, todos envolvendo basicamente a função tubária, e são eles:

A) Fator mecânico - compreende os itens:

1) existe desequilíbrio muscular faríngeo devido à fenda. A falta de apoio mediano inferior do periestafilino interno e, em menor grau, do periestafilino externo, compromete a função muscular tubária08).

2) existem perturbações funcionais tubárias decorrentes das manobras cirúrgicas no periestafilino externo(18);

3) durante o ato cirúrgico a não-preservação do humulus pterigóideo (estrutura que serve de apoio à musculatura tubária), provoca disfunção tubária(17); outros autores(5), entretanto, não observaram este aspecto;

4) existem distúrbios relacionados com a pressão negativa que é criada no cavum pelos movimentos de deglutição e respiração, que, transmitidos diretamente pela fissura à tuba e ao. ouvido médio, provocam colapsos e insufléncia de aeração na caixa timpânica(5);

5) observa-se diminuta inclinação tubária no recém-nato, favorecendo a entrada de líquidos do cavum à caixa timpânica. Somente aos seis anos de idade, a tuba adquire a inclinação normal observada no adulto(5.20);

6) existe pequena capacidade no ouvido médio em crianças (0,3 cc de água) para a acomodação de líquidos. Aos seis anos a caixa timpânica atinge o volume de 0,6 a 0,8 cc de água, comum ao adulto(19,20).

B) Fator inflamatório - compreende os itens:

1) a hipertrofia e a infecção adenoideana, impedem a aeração e o fluxo normal das secreções do cavum, contaminando a tuba e o ouvido médio(5);

2) as alterações da mucosa nasal e da função ciliar, ocasionadas pelo refluxo buco-nasal, levam ao aparecimento de hipertrofia e granulação inflamatória local, ocasionando edema peritubário(5);

3) a reação vasomotora do cavum, devido ao contato com ar frio e seco aspirado pela boca, evolui com edema tubário(s);

4) a alteração da viscosidade nasal e tubária, com colapsos freqüentes da tuba, compromete a aeração da caixa timpânica.

C) Fator imunitário - vasomotor: As rinites alérgicas, as vasomotoras e as deficiências imunitárias, evoluem com edema e hiperplasia da mucosa nasal e tubária, favorecendo o aparecimento das otites(18). Supõe-se que as alterações morfológicas do fissurado modificam as taxas de imunoglobulinas específicas da região, ocasionando queda da resistência às infecções(18).

Quadro clínico das otites médias

O quadro agudo das otites em crianças, caracteriza-se por otalgia febre, às vezes diarréia, queda do estado geral e meningismo. Pelo exame, observamos o tímpano abaulado, hiperemiado, com exsudato purulento ou micro-hemorrágico(18). O
processo crônico, originado de otite aguda não resolvida ou de disfunção tubária persistente, caracteriza-se por apresentar tímpanos róseo-alaranjados, espessados, vascularizado abaulados ou retraídos. Este quadro crônico evolui em surtos de reagudização, quando volta a apresentar otalgia e febre(21). Ocasionalmente ocorre perfuração espontânea da membrana timpânica, devido ao aumento da pressão local pelo líquido acumulado, com aparecimento da otorréia purulenta. As perfurações timpânicas no quadrante superior podem complicar com o desenvolvi mento de colesteatoma, que é massa epitelial crescendo para dentro da caixa timpânica, erodindo ossículo: e mastóide. Os quadros agudos ( crônicos, mal resolvidos, podendo evoluir para meningite, abscesso cerebral e trombose vascular cerebral Freqüentemente, o caráter espoliativo de infecções repetidas na infância pode ocasionar déficit do desenvolvimento pôndero-estrutural( 1,3,5,17,21).

Tratamento

A correção da fissura palatina reduz sensivelmente, em até 80% do: casos, o aparecimento de otites(e).

A curetagem exclusivamente na região peritubária da adenóide hipertrofiada favorece a aeração, reduzindo o refluxo de secreção purulenta do cavum para a caixa timpânica(18).

A correção clinica dos quadros de rinites alérgica e vasomotora (cor utilização de vacinas, corticóides cromoglicato dissódico, anti-histaminicos, esportes, etc.) permite melhorar a função nasal e tubária(5).

A correção das otites médias baseia-se clinicamente na utilização de medicamentos como antibióticos, fluidificantes e antinflamatórios. Os casos crônicos são resolvidos cirurgicamente pela inserção de drenos transtimpânicos (1 ,18,22). Como os quadros de otite têm aparecimento precoce, muitas vezes ainda no período neo-natal, e são persistentes, muito se discute sobre a melhor época para a colocação do dreno. Alguns autores(5,8) propõem inserção precoce do dreno já aos três meses de idade e, em caso de expulsão, tomam a reinseri-lo quantas vezes for necessário. Justificam este comportamento em função das complicações otológicas tardias que possam ocorrer, como a otite adesiva, o tolesteatoma e a timpanosclerose. Outros autores (20.23) acreditam que a inserção do dreno deve ocorrer, se necessário, somente no momento da correção do palato. Argumentam que a inserção precoce favorece o aparecimento de otorréia persistente, superinfecção e perfuração residual. Outros(18), consideram que a retração timpânica não é tão significativa e pode ser controlada unicamente por medicamentos, sendo resolvida espontaneamente aos seis anos de idade, não indicando cirurgia.

Entretanto, é conveniente analisar cada paciente particularmente, não esquecendo que é mais fácil ventilar um ouvido pela drenagem do que corrigir eventual otite adesiva ou colesteatoma secundário.

As complicações otológicas, como perfurações e colesteatomas, implicam em correção cirúrgica apropriada e, às vezes, urgente.

Exercícios fonoterápicos de deglutição, respiração e massagens no véu palatino podem ajudar a reconduzir a tuba de Eustáquio à função normal, reduzindo as recorrências de otites médias(s).

As malformações do ouvido externo de origem genética, como atresia ou agenesia, requerem cirurgia plástica corretiva para alargamento do conduto, na idade apropriada. As malformações da cadeia ossicular podem ser amenizadas com a implantação de enxertos totais do ouvido médio (membrana timpânica e ossículos de um doador).

A deficiência auditiva neurossensorial ou condutiva, de intensidade não compatível com a comunicação normal, pode ser beneficiada com o uso de aparelho de amplificação sonora individual. Neste caso, achamos conveniente apoio fonoaudiológico específico.

Devido à complexidade dos quadros otológicos em fissurados, como também a gravidade do prejuízo funcional que podem representar na comunicação humana, achamos conveniente o acompanhamento por médico otologista.

Summary

The authors related the principals causes of the otological complications en cleft palatal and, the use of ventilation's tubes in the therapy.

Agradecimentos

Dra. Ana Maria F. Simões Bianchi
Revisão Bibliográfica

Dr. Dallas Irany De Conti
Desenho

Fundação Affonso Ferreira


Bibliografia

01. STEWART RR & STOOL SE - Current Concepts of the Etiology, Diagnosis and Management of cleft palate related Otopathologic Disease. Otolaryngologic Clinical of North America. Vol. 14, n- 4, november, pg: 865-884, 1981.
02. PARADISE JL, BLUESTONE CD & FELDER H - The unreversability of otitis media in 50 infants with cleft palate. Pediatrics, 44: 35-42, 1969.
03. POTSIC WP, COHEN M, RANDALL P & WINSCHESTER R - A retrospective study of hearing impairment in three groups of cleft palate patients. Cleft Palate J, Vol 16, 56-58,1979.
04. STOOL SE & RANDALL P - Unexpected on disease in infants with cleft palate. Cleft Palate J, 4:99-103,1968.
O5. CHAUDHURI PK & BOWEN JONES E - An Otorhinological study of children with
cleft palates. MANCHESTER (1970).
06. ANNFRABLE M, BRANDON GF, THEOGARJ DS - Velar closure and ear tubings as a primary procedure in the repair of cleft palates. Laryngoscope. September 95: 1044-46,1985,
07. PERELLO J, VERDE PJ, L'AURADO TL - Trastomos del habla tercera edicion. Audiofonologia y Logopedia VIII - Editorial Científico-Médico, pg. 383-7,1977.
08. ARORA MML, SHARME VL, GUDI SP & KRISHNAN CB - Acoustic impedance measurements and their important in cleft palate patients. The Journal of Laryngology and Otology, May, Vol 93, 443-445, 1979.
09. NORTHERN J & DOWNES M - Hearing in children. Baltimore. The Williams & Wilkin Co., 1974.
10. SPRIESTERSBACH DC, DICKSON DR & FRASER FC - Clinical research in cleft lip and cleft palate: The state of the art. Cleft Palate J, 10: 113-165,1973.
11. BENNET M'- The old cleft palate patient: a clinical otologic - sudiologic study. Laryngoscope, 82: 1217-1225, 1972.
12. MUSTAIN W - Linguistic and educational implications of recurrent otites media. Ear Nose Throat J, 58: 62-67, 1979.
13. LaVONE B - Congenital and Acquired deafness in clefting and craniofacial syndromes. Cleft Palam J, July, Vol 15 n°3, 254-261,1978.
14. STOOL SE & MOULIHAN R - Otolaryngologic Management of craniofacial Anomalies. Otolaryngologic Clinica of North America, Vol 10, n° 1, Febtuary, 4144, 1977.
15. MYSAK ED - Patologia dos Sistemas da Fala. Livraria Atheneu, Rio de Janeiro - RJ, 1984.
16. CURTIS A & CLEMIS J - Middle ear effusions Part I. Pathophysiology JCE - ORL - Allergy, 41: 13-25, 1979.
17. FREELAND AP & EVANS DM - Middle ear disease in the cleft palate infant: its effect on speech and language development. British Journal of Plastic Surgery, 34: 142143,1981.
18. STRICKER M, JAcQUOT M, CHASSAGNE JF - Woreille Moyenne dans les fentes. A propos Xuae statistique de 230 cas. ANN. CHIR. PLAST. Vol. XXIV n2 3. 225-253,1979.
19. GOPALAKRISHMA A, GOLERIA KS & RAJE A - Middle ear bunction in cleft palate. British Journal of Plastic Surgery, 37: 558-565,1984.
20. MOLLER P - Hearing, middle ear pressure and otopathoiogy in a cleft population. Acta Otolaryngo192:521-528,1981.
21. Adams GI, Boies LR, Paparella M - Fundamentais of Otolaryngology, fifth edition. W: B: Saunders Company 1978.
22. Hubbard TW, Paradise JL, McWilliams, BJ Elster B, Taylor FH - Consequentes oremitting middle ear disease In early life. New Eng J Med 1985; 312:1529-1534.
23. Crysdale WS - Rational management of middle in effusions in the cleft palate patient. J Otolaryngol 1976; 5: 463-467.




* Médico ORL e Foniatra do Instituto Penido Burnier
** Médico ORL do Instituto Penido Burnier
Endereço para correspondência: Av. Andrade Neves, 511- CEP 13020 -Campinas -SP - Fone: (0192) 2-1027

Imprimir:

BJORL

 

 

 

 

Voltar Voltar      Topo Topo

 

GN1
All rights reserved - 1933 / 2024 © - Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial