Versão Inglês

Ano:  1990  Vol. 56   Ed. 2  - Abril - Junho - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 76 a 79

 

Deficientes auditivos severos e profundos: um estudo retrospectivo e uma análise prospectiva*

Severe and profound deafness: a retrospective study and a prospective analysis

Autor(es): Arnaldo Linden**
Deise Costa***
Celso Dall Igna****
Maxiza Mainardi*****
Maria Elza Dorfmann******
Ceri Abelin*******
Adriana P. Miranda********

Palavras-chave: surdez, educação de deficientes auditivos

Keywords: deafness, hearing impaired people education

Resumo:
Foi feito um estudo de 178 deficientes auditivos severos profundos atendidos no Hospital de Clínicas de Porto Alegre por um grupo multidisciplinar, onde o otologista desempenha o papel de membro chave. Estabeleceu- se a etiologia da surdez, a idade de suspeita ou diagnóstico, grau de deficiência, procedência do paciente, elementos sobre protetização e tipos de linguagem. As corretas indicações do uso binaural de potentes próteses auditivas e os implantes cocleares faz com que o grupo se posicione favoravelmente à linguagem auditivo-oral como primeira opção na habilitação ou reabilitação do paciente auditivo severo-profundo.

Introdução

Há 150 anos. Laurent Clerc, um francês, foi convidado para ajudar a estabelecer uma escola americana para deficientes auditivos(1). Clerc era surdo, professor de nível superior e havia experimentado muito sucesso na França. Dizem que chegou a seu conhecimento que nos Estados Unidos os caminhos da educação para deficientes auditivos eram pavimentados com ouro. Quando lá chegou, surpreendeu-se com três fatos. Primeiro, as vias não eram pavimentadas com ouro. Segundo, elas não eram nem mesmo pavimentadas. E terceiro, Clerc logo percebeu que ele mesmo teria que pavimentá-las.

Brasil, final do século XX. Os caminhos que conduzem à educação de surdos são rudimentares e difíceis. Ao mesmo tempo em que temos avanços tecnológicos importantes como o implante coclear, o campo da reabilitação e a educação de deficientes auditivos permanece árido.

O grupo de atendimento ao deficiente auditivo severo e profundo do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (composto por otologistas, fonoaudiólogas, psicólogas, assistentes sociais e engenheiros eletrônicos) há alguns anos está preocupado e tem se esforçado para contribuir na melhoria do atendimento a estes pacientes. Evidentemente, em nosso meio as dificuldades no atendimento ao deficiente auditivo são muito maiores que as experimentadas em países desenvolvidos, onde as controvérsias muitas vezes são de ordem filosófica. Em países pobres, onde nem mesmo a educação básica é prioridade, a educação de surdos fica relegada não se sabe a qual plano.

Nosso levantamento procura estabelecer a etiologia da surdez, a idade em que houve suspeita ou diagnóstico, o grau de deficiência, a procedência do paciente, a idade em que consultou pela primeira vez nosso serviço e alguns dados sobre a situação do paciente em relação à protetização.

Material e Métodos

O estudo retrospectivo foi feito em pacientes com deficiência auditiva severa e profunda atendidos no Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, nos últimos dois anos. Durante este período foram atendidos 178 pacientes, sendo 93 (53,25%) do sexo masculino e 85 (47,75%) do sexo feminino. Cerca de 70% são procedentes de Porto Alegre e região metropolitana.

Após serem atendidos no ambulatório de otorrinolaringologia, os pacientes são encaminhados ao grupo de atendimento ao deficiente auditivo severo-profundo, onde cada caso é analisado e encaminhado individualmente. O atendimento consiste de exames otorrinolaringológico e audiométrico completos. Os testes de protetização são realizados em campo aberto; a discriminação é avaliada com e sem leitura orofacial. Na suspeita de doença geneticamente transmissível, o paciente é encaminhado para o Serviço de Genética do HCPA.











Resultados

Dos 178 pacientes, 37 (20,79%) apresentavam hipoacusia neurossensorial severa (limiar auditivo entre 70 e 90 dB) e 129 (72,47%) eram surdos profundos (limiar auditivo abaixo de 90 dB); os demais 12 pacientes (6,74%) apresentavam um ouvido com surdez severa e outro com surdez profunda.

A Tabela 1 mostra a distribuição por faixa etária por ocasião da suspeita ou diagnóstico da surdez; em 33,15% dos casos o diagnóstico foi feito com menos de um ano de idade e, estendendo-se aos três anos, a suspeita ou diagnóstico foi estabelecido em cerca de 63% dos pacientes.

Na tentativa de definir as várias etiologias das hipoacusias (Tabela 3), verificamos que as principais causas identificáveis foram meningite (11,8%), rubéola congênita (7,87%) e ototóxicos (7,3%), embora em cerca de 43% dos casos não tenha sido possível determinar a etiologia.

Durante este período, 85 pacientes foram encaminhados para protetização, mas apenas 18 (21%) retornaram com o aparelho; os demais 67 pacientes continuam aguardando que as instituições sociais forneçam as próteses, com um tempo de espera médio de nove meses.

No grupo de pacientes com idade inferior a 12 anos (89), 32 (35,9%) freqüentam escola especial e 8 (9%) freqüentam escola normal; os demais 49 não recebem nenhum tipo de educação ou atendimento especializado. Entre.os pacientes pré-linguística (91), nenhum apresenta linguagem auditivo-oral; entre os pacientes pós- linguísticos (87), 29 (33%) aprese: tam uma leitura lábio-facial classificada como regular ou boa.

O meio de comunicação mais comumente usado entre os pacientes seus familiares é o "gestual", seja, uma linguagem manual "caseira" criada pelas necessidades de da família.

Discussão

Partindo dos dados colhidos e nosso trabalho, constatamos que distância que nos separa de uma situação minimamente aceitável, tocante à educação de surdos, enorme. Embora a suspeita ou diagnóstico de surdez tenha ocorrido 33,15% (59) dos pacientes com 1 de inferior a 1 ano e em 29,21% de crianças com 1 ano e 1 mês anos, apenas 1,68% (3) consultaram pela primeira vez em nosso se com idade inferior a 1 ano e 9, (17) com idade entre 1 ano e 1 mês 3 anos. Na verdade, o maior afluxo aos nossos ambulatórios ocorreu c pacientes acima de 5 anos (77,53 embora cerca de 52% dos pacientes fossem pré - linguísticos. Além disto, maior parte destes pacientes ou não estavam sendo adequadamente tratados, habilitados e protetizados ou estavam sendo atendidos num serviço de atendimento a deficientes auditivos pela primeira vez. Isto nos leva a inferir que não está havendo uma detecção precoce da deficiência auditiva, ou um encaminhamento adequado dos casos, o que é fundamental para o trabalho de habilitação ou reabilitação.

No tocante às várias etiologias das hipoacusias, nossos dados são semelhantes aos da literatura mundial (16). Observa-se que a causa identificável mais freqüente foi a meningite (11,8%) seguida pela rubéola (7,87%) e ototóxicos (7,3%). Em um número significativo de casos (43%) não foi possível identificar a causa da surdez, índice este que também se aproxima aos da literatura mundial(s).

Nossos pacientes, a maior parte de baixa renda, nem mesmo conseguem adquirir uma prótese auditiva para que se possa estabelecer um trabalho adequado no treinamento auditivo-oral. Além deles estarem recebendo, muitas vezes, o primeiro tratamento já tardiamente, a maioria demora muito ou nem chega a conseguir a (s) prótese (s) auditiva (s). No nosso grupo, dos 85 pacientes que receberam indicação de protetização, apenas 18 (21%) retomaram com o aparelho. Muitas vezes, o máximo que eles conseguem, e assim mesmo é a minoria, é freqüentar escolas em que é dada ênfase à linguagem dos sinais (de 89 pacientes com idade inferior a 12 anos, cerca de 35,9% freqüentam escolas especiais, 8,9% freqüentam escolas regulares e os demais não recebem nenhum tipo de educação ou atendimento especializado).

Privados de aprenderem um meio de comunicação, mais adequado, os deficientes auditivos e suas famílias acabam desenvolvendo um sistema próprio de comunicação, de relacionamento muito limitado.

Toda criança surda deve ter direito a um tipo de linguagem, de maneira tal que essa forma de comunicação seja universalizada entre as várias instituições e não adaptada -caseiramente (gestual) como muitas vezes ocorre. Os profissionais devem empenhar-se para a identificação da surdez; a protetização e a habilitação devem ocorrer o mais precocemente possível, de preferência no primeiro ano de vida.

Atualmente, nos centros de educação para deficientes auditivos, cerca de 70% das crianças são ensaiadas pelo método de linguagem denominado "comunicação total" . Este método usa os sinais, a audição tanto quanto possível, a leitura labial e a observação da expressão facial. Os objetivos da comunicação total são os de suprir a deficiência auditiva, usando, simultaneamente com a fala, a comunicação manual (sinais com as mãos e dedos). A linguagem auditivo-oral usa todas essas formas de comunicação, exceto os sinais de comunicação manual.

Para Housen(7), a linguagem auditivo -oral é a mais indicada na educação dos deficientes auditivos. As corretas indicações do uso binaural de potentes próteses auditivas e os implantes cocleares tomam este tipo de linguagem possível também para os deficientes auditivos profundos. Seguindo este método, se o deficiente auditivo atingir um nível de audição em tomo de 50 dB com protetização binaural, indicada através de testes de protetização em campo aberto, a linguagem indicada na educação e comunicação é a auditivo-oral. Os deficientes auditivos protetização nos dois ouvidos, com limiar de audição abaixo de 50 dB, são um desafio para o grupo multidisciplinar que os assiste. Crianças com 80-90 dB de perda auditiva podem ou não se beneficiar com a forma auditiva de comunicação utilizando próteses potentes.

O tempo médio de observação para constatar se está havendo benefício ou não com a linguagem auditivo- oral é de no mínimo seis meses, isto se houver acompanhamento fonoaudiológico adequado e colaboração efetiva dos pais. Se não houver aproveitamento com a linguagem auditivo-oral, o implante coclear pode estar indicado. Casos com 80-90 dB ou mais de perda auditiva passam para limiares de 40-50 dB com o implante (7). Logo, o implante coclear passa a desempenhar um importante papel na habilitação ou reabilitação do deficiente auditivo.

Se a linguagem auditivo-oral não trouxe o aproveitamento que se esperava após um tempo de observação (mínimo de seis meses) e, por várias razões, não foi possível usar o implante coclear, a linguagem indicada é a dos sinais, uma forma de comunicação totalmente nova para os familiares. Logo, os pais e demais membros da família, para poderem se comunicar com o deficiente auditivo, precisam aprender a linguagem dos sinais.

Conclusão

O otologista desempenha o papel de elemento-chave numa equipe multidisciplinar de atendimento ao deficiente auditivo. É através da atuação conjunta dos membros desta equipe - otologistas, fonoaudiólogos, psicólogos, assistentes sociais, professores - das comunidades surdas, familiares e órgãos do governo, que a integração do indivíduo surdo tomar-se-á possível.

Avaliando os prontuários de 178 deficientes auditivos severos e profundos que estiveram ou estão em atendimento em nosso serviço, verificamos o seguinte:

1 - Várias patologias causadoras de surdez poderiam ser evitadas com programas eficazes de vacinação: meningite (11,8%), rubéola congênita (7,87%), sarampo (2,81%).

2 - 77,53% dos pacientes consultaram pela primeira vez em nosso serviço com idade superior a 5 anos, e a maior parte deles ou não estavam sendo adequadamente tratados ou nunca tinha consultado um serviço especializado anteriormente, o que nos leva a concluir que a detecção das hipoacusias não está sendo feita precocemente, ou os casos não estão sendo adequadamente encaminhados.

3 - Devido às baixas condições sócio-econômicas de nossos pacientes e a falta de apoio governamental, cerca de 80% dos deficientes com indicação de próteses auditivas não conseguem obtê-las, e, consequentemente, não podem ser habilitados ou reabilitados adequadamente.

4 - Cerca de 55% das crianças surdas com idade inferior a 12 anos não freqüentam escolas nem recebem nenhum tipo de oritentação ou atendimento especializado. Isto reflete a pouca atenção que é dada por parte das instituições governamentais em providenciar educação para estas crianças, sem que se entre no mérito de avaliar a qualidade do atendimento dispensado nas poucas escolas existentes.

Os obstáculos existentes no atendimento e educação são, portanto, enormes, mas não intransponíveis. Cada caso necessita ser atendido individualmente, e encaminhado da forma mais adequada.

Medidas preventivas precisam ser tomadas; detecção precoce da surdez precisa ser feita. Mais escolas especializadas são necessárias; deve haver integração entre os professores dessas escolas e a equipe de atendimento na escolha da melhor forma de educação para cada caso.

A linguagem auditivo-oral é a mais indicada, como primeira opção, na habilitação ou reabilitação do deficiente auditivo, isto se levarmos em consideração, principalmente, o significativo progresso das próteses auditivas e a possibilidade do uso dos implantes cocleares.

Mas a prioridade, no momento, com relação a essa problemática, é conscientizar a sociedade por mudanças sociais, econômicas e políticas que visem integrar definitivamente o deficiente auditivo no meio dos ouvintes.

Summary

A study was done in 178 severe and profound deaf, assisted at Hospital de Clínicas de Porto Alegre, by a multidisciplinary group, where the otologist is the key member.
The etiology of deafness, the age when the deafness occurred, its degree, the patient's origin, data about the use of hearing-aid and different ways of communication were determined.

The correct indication for use of binaural powerful hearing-aids and cochlear implants, directs the group to adapt the auditory-oral education as first option in habilitation or re habilitation.

Bibliografia

1- Lang HG, Egelston-Dold J, Sachs M. Science education for hearing-impaired studetiiin in the eighties: priorities and projections. AAA Ann Deaf;;128 (6): 801-8, 1983.
2- Dordley JE. Problems of the communicatively disadvantaged: an overview. Ann Oto RhW laringol, 89:3-4,1980. (suppl. 74).
3- Steward IF. After early identification-what follows? A study of some aspects of dead education from an otolaryngological view point. Laryngoscope, 94:784-799, 1984.
4- Dee A, Rapin I & Ruben RJ. Speech and language development in a parent-infant total communication program. Ann Otol Rhino Laryngo4 91:62-72, 1982. (suppl. 97).
5- Arnold P. The Education of the deaf child for integration or automony? Am Ann Deaf 129(1):29-31,1984.
6- Dimor D, Shirov T. Prevention of sensorineural deafness. In: New Dimensions in Otolaryngology, Head and Neck Surgery, vo12, 1989, E. Myers editor, p. 116-119.
7- House WF. Opposition to the cochear implant in deaf children. Am JOtol, 7(2), 1986. (Editorial).
8- House WF. Cochlear implants in children - point, counterpoint. Am J Oto1:161-162, 1988.




Endereço dos autores: Hospital de Clínicas de Porto Alegre, zona 18, Rua Ramiro Barcelos, 2.350. CEP 90210. Porto Alegre, RS.

* Trabalho realizado no Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clinicas de Porto Alegre. Projeto Transplantes e Implantes para Deficientes Auditivos . Apoio CNPq.
** Professor de Otorrinolaringologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. M. Sc. em Otologia.
*** Médica Residente do 3.º ano no Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Bolsista do CNPq.
**** Médico Otorrinolaringologista contratado do Hospital de Clinicas de Porto Alegre.
***** Fonoaudióloga no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
****** Fonoaudióloga no Hospital de Clinicas de Porto Alegre.
******* Fonoaudióloga no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
******** Bióloga. Bolsista do CNPq.

Imprimir:

BJORL

 

 

 

 

Voltar Voltar      Topo Topo

 

GN1
All rights reserved - 1933 / 2024 © - Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial