Versão Inglês

Ano:  1977  Vol. 43   Ed. 1  - Janeiro - Abril - (12º)

Seção: Artigos Originais

Páginas: 84 a 95

 

MOMENTOS INESQUECIVEIS DE MINHA VIDA PROFISSIONAL

Autor(es): Prof. Paulo Mangabeira Albernaz

Resumo:
Conferência inaugural do XXIII Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, pronunciada pelo Prof. Paulo Mangabeira Albernaz. Fortaleza, 27 de Outubro de 1976.

No começo do ano, recebia eu uma carta do Prof. Ocelo Pinheiro, comunicando-me que a Comissão Executiva do XXIII Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, desejando tributar-me uma homenagem, resolvera convidarme para, na norte da abertura dos trabalhos, pronunciar uma conferência, para a qual sugeria o tema "Momentos inesquecíveis de minha vida profissional".

Profundamente sensibilizado, aceitei o convite que meus colegas do norte me faziam, e logo me veio à mente que um desses momentos inesquecíveis viria justamente a ser este, pois inaugurar, com minhas palavras, um congresso dessa magnitude, representava, indiscutivelmente, embora nã6 fosse a primeira vez, um dos momentos áureos de minha carreira. Estou extremamente reconhecido a meus colegas e, em particular, ao presidente Professor Ocelo Pinheiro, por tão elevada e significativa distinção.

Durante esta longa jornada, não é fácil fazer a escolha entre as oportunidades que nos parecem inolvidáveis. Embora algo numerosos os acontecimentos sob tais condições, o tempo procura inutilmente varrê-los da memória. Manifestações de consideração, demonstrações de apreço, êxitos no campo cientifico, triunfos na vida clínica... tudo isso representa um amontoado de circunstâncias, de acometimentos, das espécies mais diversas. Este é, porém, o lado favorável, o lado propício, e, por isso mesmo, não representa senão diminuta parcela da vida profissional. Realmente o outro lado, de que nos ocuparemos em breve, o lado atribulado, o lado penoso, é o mais freqüente.

Entre os dois, encontra-se a rotina, o cotidiano, o vulgar, que, indiscutivelmente, para nossa salvação, é o que predomina. Foi o que aconteceu, afinal, nesses quase sessenta anos de vida clínica, trinta de cátedra, sem incluir os quatro de hospital como acadêmico, a princípio como sota (nome pelo qual então se designava o aspirante ao internato) e, depois, como interno. É muito tempo, são oportunidades diferentes, reiteradas, um conglomerado de circunstâncias de várias naturezas.

Foi aquele incomparável Sir William Osler, cognominado o "Hipócrates do Século XX", quem declarou: "0 passado vive eternamente em nós; dele não se escapa e só ele é duradouro; às vezes, porém, com as mudanças e incidentes que, com tanta rapidez, se sucedem nesta vida, inclinamo-nos a viver demais para o presente e demais no futuro". 0 passado é na realidade algo de permanente, de definitivo. Tem-se, em nossos dias, a tendência a dele escarnecer, a considerá-lo fora de época, rotulando-o, ora com mais severidade, como saudosismo, ora com benevolência, tachando-o de nostalgia. A verdade está, porém, na sua constância, na sua permanência, e, por isso, Osler qualificou-o de duradouro. Constitui ele parte definitiva, estável, consistente, de nossa vida. Aí está por que recebi, com certa surpresa, mas com inegável regozijo, o tema que a Comissão Executiva do Congresso teve a gentileza e a habilidade de sugerir. 0 volume do que, desse passado, nos ocorre à mente, é abundante, mas, em parte, já um tanto impreciso. São dias de glória - como este de hoje -, como dias de angústia, de preocupação, de ansiedade. Vivemos, nós todos, dos outros e para os outros, mas ninguém vive tanto para os outros como o médico. Ele leva a vida em função da saúde e da vida do próximo. Sua existência é realmente uma jornada atribulada, cheia de problemas. Os fatos mais absurdos, mais estranhos, mais singulares, surgem com relativa freqüência, e muitas vezes de modo inesperado. Resolvê-los exige, na maioria dos casos, grande presença de espírito, não menor sagacidade, além de decisão pronta e segura. Não basta apenas ter competência e ter prática do exercício da profissão; é preciso, ainda, saber como encarar os problemas, cuja dificuldade aumenta com o decorrer dos anos, como que a deixar patente que cada vez se sabe menos e se torna imprescindível saber mais. Indicar, por exemplo, uma operação, é em geral fácil, mas há casos em que se transforma em problema complicado e põe o médico em crise de ciência e de consciência. Somos inúmeras vezes censurados porque resolvemos intervir, e somos, também, de outra parte, criticados, poronão ter intervindo.

Momentos angustiosos todos nós, médicos, por eles passamos. E para não ir mui o longe, citarei apenas um deles: a amargura de ter de prolongar a morte. Sim, digo a morte, pois que prolongar a vida de um moribundo, o que somos obrigados a fazer por força do nosso juramento, não raro nada mais é do que prolongar a morte. A família está à espera do desenlace, vê seu filho, seu pai, seu irmão, sua mãe, debater-se em um mar de sofrimento, sabe que só um milagre poderá salvá-lo, mas já não crê no milagre. É chamado o médico. O caso não é perdido, porque nada há mais a perder, a não ser mais algumas inalações de ar, mais alguma pulsações. 0 que, porém, lhe compete é, ainda, reforçar aquela sobrevida, prolongar aquela agonia. Tem obrigação de fazê-lo, mesmo contra sua própria consciência. É um conflito entre o coração e a obrigação, entre o dever e a vontade. Se tomar a decisão de reduzir ou de apressar aqueles momentos de premorte, passa a ser, perante a lei, um criminoso. É a velha e debatida questão da eutanásia. Mas, para sua consciência, não o fazer é bárbaro, é desumano. Contudo, ele o faz: o dever é mais forte, sai vencedor. E ele alonga a morte, prolongando uma vida que, praticamente, não mais existe.

Quantos, quantos de nós, com o coração amargurado, já não o fizeram várias vezes? Esses são momentos inesquecíveis de nossa vida, embora nos esforcemos, com todas as veras da alma, a eliminá-los de nossa memória. É um dever duro de cumprir, mas exigido pelas inúmeras e constantes variações de nossos conhecimentos. O que é hoje considerado perdido, sem nenhum recurso, pode amanhã já não o ser, já ter solução favorável. Quem há relativamente poucos anos atrás, sabia da existência da chamada parada cardíaca? Quantos, por causa dela, perderam a vida e quantos, em nossos dias, vêm a ser, apesar dela, por meio de terapêutica adequada, verdadeiramente ressuscitados? 0 futuro é de Deus, e o médico não tem o direito de esquecê-lo. Mas, todos nós, por isso tudo, temos de passar pelas maiores agonias.

Estranhável é que os moços de hoje, em sua maior parte, revelem, na escolha da profissão, verdadeiro pendor pela medicina. Dir-se-á: fazem-no porque não têm a mínima idéia do que seja a vida do médico. Mas não é isso o que acontece. Se pudesse eu voltar hoje aos meus dezessete anos, conhecendo, como conheço muito bem, as vicissitudes da vida do médico, não titubeava em voltar à medicina. E meu entusiasmo pela profissão, foi tal, que meus três filhos, o meu maior orgulho, são médicos.

É, de fato, um ideal como outro qualquer. Por que razão um jovem, habituado à vida da universidade em uma grande metrópole, uma vez terminados os estudos, vai ser missionário nas regiões mais atrasadas e inóspitas dos sertões de Mato Grosso, ou nas florestas do Congo ou da Mova Guiné? Ideal, puro ideal. Basta lembrar o grande Schweitzer, que, como se sabe, era médico.

Por isso é que se é médico. E médicos mesmo são estes que procuram e encontram, na medicina, o clímax de sua aspiração. Pode ser meio de vida, mas isto está longe de impedir de ser um ideal. É ele que atrai para a medicina os não interesseiros; os que não procuram, na vida, tão somente vantagens de qualquer natureza; os desprendidos, pois que, indiscutivelmente, apesar dos prós e dos contras, ainda a maioria dos que se dedicam à medicina, é de sonhadores, idealistas, espíritos de apóstolo, muito embora nenhuma profissão seja, hoje em dia, mais combatida, mais vilipendiada, do que a do médico, a não ser na hora da doença, mesmo da simples consulta (mormente quando é de graça). Ainda há pouco, um sábio da Grécia (mas que é holandês, vive na Inglaterra e não é médico), em congresso para o progresso da ciência (que ninguém sabe o que com isso tenha a ver), injuriou-nos de modo inqualificável, tachando-nos de "descaradamente desonestos". Apesar da ofensa não nos ter chegado nem ao tacão das botas, o auditório, de brasileiros na maioria, aplaudiu o grande sábio. É que este auditório, na maior parte - é doloroso dizê-lo - era composto de grande número de esquerdistas, da chamada esquerda festiva ou escocesa.

Momentos de júbilo foram muitos. Permita-se-me esboçar alguns deles, os principais.

Nada me poderá fazer esquecer as homenagens, em que meu espírito passou pelas mais vivas emoções, quando tive, por limite de idade, de deixar a minha cátedra.

Primeiro, foi o grupo do Rio: a colônia baiana, os otorrinolaringologistas, alguns dos grandes nomes da medicina nacional, companheiros de Rotary. Foi um dia daqueles em que toda nossa sensibilidade é posta à prova máxima da comoção: três ministros de Estado, o reitor da Universidade Federal, o presidente da Academia Nacional de Medicina, os professores de Clínica Otorrinolaringológica do Rio e da Bahia, em um banquete realizado no Copacabana Palace Hotel. No final do ágape, o Ministro da Saúde colocou-me ao pescoço e ao peito as comendas da Ordem do Mérito Médico, no grau de Grande Oficial, láurea concedida pelo Presidente Castelo Branco. Tudo havia sido feito em surdina, graças ao prestígio e à amizade do Prof. Aloísio Novis.

Dias depois, era a vez dos otorrinolaringologistas de São Paulo. Foi um jantar com a presença de pouco mais de cem colegas, na sua totalidade especialistas.

Em 1g69, recebia eu a grande honra de ver-me concedido pelo Congresso Latino-Americano de Otorrinolaringologia, reunido em Salvador (América Central), o Prêmio Eliseo Segura, que me seria entregue em reunião solene da Associação Paulista de Medicina, prêmio este que, realmente, era concedido ao Brasil, em minha pessoa. Essa medalha de ouro já fora outorgada ao Prof. João Marinho, idealizador do prêmio (e o primeiro a recebê-lo) em homenagem ao notável mestre argentino.

Estes fatos fazem parte integrante de minha vida profissional e representaram, para mim, demonstração das mais eloqüentes de que meus colegas e amigos reconheciam não ter eu malogrado na minha carreira, quer como clínico, quer como professor.

Não posso dizer que tenha sido das mais acidentadas, a não ser no início, a trajetória que, no exercício da profissão, tive de percorrer e continuo a fazê-lo. Das dúvidas e incertezas dos tempos de acadêmico - pois que estudantes somos todos nós até o fim da vida - aos da época atual, não é assim tão vasta a diferença. De interno a médico, de médico a clínico, de clínico a assistende, a professor, vi-me sempre envolvido em problemas, ora de fácil solução, ora complexos, abstrusos. Parece que, à medida que granjeava prática e aperfeiçoava meus conhecimentos, mais difíceis, mais atribulados passavam a ser os casos que se me deparavam. Apresentam-se, por vezes, hoje, alguns, para os quais as dificuldades não são menores do que as que se me atulhavam em outros, observados quando simples acadêmico. É um nunca acabar de aprender, de estudar, de sentir-se desamparado, de ver que as questões se tornam cada vez de mais difícil solução. Os pobres de espírito resolvem, porém, tudo com facilidade, com algumas fórmulas, e três ou quatro receitas. E não se preocupam com mais nada. 0 médico, porém, que estuda, que observa, que investiga, que tem convicção de que não existe quem jamais possa vir a saber tudo, este vive eternamente inseguro, estudando, observando e aprendendo, sempre insatisfeito, tal e qual aquele facultativo dos áureos tempos de Pádua, de que nos fala Paul Bourget, em seu romance "Le sens de Ia murt". Era um gênio, uma enciclopédia viva, uma capacidade absoluta, e todo mundo ansiava por, uma vez desaparecido, correr a investigar-lhe os documentos, a fim de descobrir quais seriam realmente as poderosas e portentosas armas de que dispunha. E quando tal aconteceu, apenas foi encontrado, em uma pequena caixa, um fragmento de papel com algumas palavras rabiscadas: "Et j'ai ou moins appris une chose: à ne pas ignorer mon ignorante - ignorantiam meam non ignoraré'.

A verdade é que não há campo da atividade humana em que as dificuldades se apresentem em maior volume do que na medicina. Não é possível ocultar o seu considerável progresso, mas quanto mais este progresso aumenta, maiores se revelam as dificuldades que se nos oferecem.

Em uma obra que despertou verdadeira sensação e que expõe duramente a realidade da medicina atual (pois saiu à estampa em 1971) Eive Patients (Cinco Doentes), Michael Crichton apresenta, em todas as minúcias, as histórias de cinco doentes internados em um dos hospitais mais bem montados e afamados do mundo, o Massachusets General Hospital. 0 segundo caso reporta-se a um homem, cuja queixa era dor abdominal à esquerda e vômitos. Permaneceu internado, em observação, por mais de um mês, no modelar nosocômio. Todos os serviços médicos especializados, com predominância dos de laboratório, dentre estes os mais modernos e complexos, foram empregados.

Sabeis qual foi o resultado? 0 paciente teve alta curado, e o diagnóstico definitivo foi: "febre de natureza indeterminada e septicemia por bacterióides" - diagnóstico que evidentemente não poderá convencer, nem satisfazer, nenhum médico.

Assim é que é mesmo a prática médica. Apesar de todo o progresso, apesar da eficiência dos exames, apesar das modernas e seguras técnicas de laboratório, apesar das sólidas provas eletrônicas, apesar das informações concretas da medicina nuclear, não são raros os casos em que o diagnóstico continua, tal como nos tempos de Hipócrates (quase 500 anos antes de Cristo) a jamais ser firmado. É que a medicina, nem é simplesmente filosofia, como naqueles tempos, nem matemática, como ora se pretende.

Em sendo assim, não padece dúvida de que os fatos e passagens inolvidáveis da vida do médico - não os de glória, mas os de tensão, de preocupação, de angústia - são muito menos insólitos do que imaginar se possa. Meditei prolongadamente sobre vários deles, e optei pelos que, em verdade, melhor se poderiam enquadrar nesta exposição. Coube a preferência a três, os três que passarei a relatar. Servem eles para mostrar como é a vida do médico, mesmo a do especialista, em que pese o parecer do maior cirurgião do século, Réné Lériche, quando afirmou: "A cirurgia profissional exige dos que a exercem, não conhecer em demasia a dúvida. Sua tarefa é árdua, mais árdua do que a dos especialistas. Estes, não lhes nego a minha admiração e muitas vezes os invejo. A vida lhes é socialmente magnífica, mas fatigante e difícil. 0 que os salva, é que ela é toda de ação. Não passam eles pela inquietude dos problemas não resolvidos, nem a responsabilidade de ensinar. Seguem o movimento. Não criam. Mas que ninguém se iluda: sua tarefa vai se complicando dia a dia".

0 grande mestre estava iludido. Cada um é que sabe como vive, de que modo vive, as dificuldades que tem de enfrentar. Em medicina, os problemas são. de todas as espécies, existem em todos os setores. E se há alguns de seus ramos mais trabalhosos, que maior esforço exigem do médico, que mais lhes desgastam corpo e alma, tal a neurocirurgia, há, em todos, problemas, incógnitas, incertezas. A verdade é que a medicina é uma só.

Em sendo assim, o que de estranho, de excepcional, de curioso pode se nos deparar na vida médica, é comum a qualquer ramo da atividade da medicina, e não passa de caprichos ou fantasias do acaso. Assim são os casos que passo a relatar, de acordo com o título desse trabalho.

Foram os três observados em Campinas, onde exerço a clínica há cinqüenta anos, após quase dois na Bahia e cinco em Jaú. Felizes os que, como eu, nas vilegiaturas pelos caminhos da vida, conseguiram, um dia, aportar à sua terra de Canaã.

Primeiro caso.

Apareceu-me um dia à consulta um indivíduo de 45 anos, a queixar-se de rouquidão e falta de ar, esta mais recente, datando, porém, aquela, de quase um ano. A falta de ar aparecera alguns meses atrás, mas não se havia agravado, ao que ele afirmava. A voz era extremamente velada e a dispnéia de esforço evidente. Encontrei, pelo exame, processo proliferativo tipicamente papilomatoso, a encher toda a cavidade laríngica. A área respiratória era diminuta. Tratando-se de doente destituído de recursos, enderecei-o a meu serviço no Hospital da Santa Casa de Campinas, com ordem de ser internado.

Após o almoço - o doente havia me procurado no período da manhã não me saía da idéia o paciente, a ser submetido a traqueotomia na manhã seguinte. Algo me acenou à consciência dever passar pelo hospital, antes de voltar ao consultório, a fim de ver como estaria o meu cliente. Chegando ao serviço, entrei na sala de consulta, passei à de curativos, e, não encontrando o enfermeiro, abri a porta da enfermaria. Esta era dos serviços de oftalmologia e de otorrinolaringologia, e aí se achavam internados pouco mais de vinte doentes. Mal abri a porta, deparou-se-me um quadro confrangedor: os doentes, de pé, faziam um semicírculo em torno de um leito, em que se achava um homem prostrado, como morto, enquanto, do lado oposto, um padre, adequadamente paramentado, lhe ministrava a extrema unção. Reconheci, de imediato, meu consultante da manhã. Voltei, em um ápice, à sala de curativos, tomei do armário de um bisturi e de uma cânula de traqueotomia. Em segundos, sem preocupar-me com assepsia, já abrira a traquéia e, com o auxílio de um dilatador de Laborde, muito em voga na época listo era em 1928), introduzia a cânula na abertura.

Pedi ao enfermeiro que trouxesse o pantóstato. Era um aparelho praticamente em desuso em nossos dias: uma mesinha com rodas, sobre que havia um motor capaz de gerar correntes farádica e contínua, e que possuía um transformador para luz e galvanocautério. Fiz as ligações para a corrente farádica e ordenei ao enfermeiro aplicá-las, no máximo de potência, nos músculos do tórax, enquanto me dedicava, com toda energia, a manobras de respiração artificial. Tenho. a impressão de ter levado um tempo sem conta neste esforço, mas talvez não tivesse levado mais de quinze minutos. O fato é que, no dia imediato, mal podia elevar os braços. Ao cabo desse longo tempo, tive a fortuna de ver o paciente ir voltando a si e, pouco depois, estava ele respirando e tossindo. No dia imediato, retirei material da laringe para exame histopatológico. 0 resultado foi epitelioma espinocelular.

0 doente foi se recuperando, passou algum tempo em bom estado, mas, ao cabo de uns vinte dias, foi transferido para a enfermaria de Medicina de Homens, com problemas broncopulmonares.

Foi este caso, para mim, uma lição de imenso valor. Aprendi que não há critério nenhum que, em casos desse tipo, permita prever-se, com segurança, a hora exata de intervir. Errei redondamente, baseado sobretudo nas informações do paciente, que insistia em dizer estar já há tempos a respirar daquela maneira. E aprendi que, quando, nesses casos, há esforço evidente para respirar, não é possível, de nenhum modo, adiar a operação, nem por horas, pois é imprevisível se vai ou não se manifestar uma crise espasmódica. Se já tivesse o paciente falecido quando aportei à enfermaria, ficaria eu com o peso daquela responsabilidade sobre meus ombros - mais do que isso: sobre minha consciência. Seria quase um crime, se tal acontecesse naquele momento em que entrei na sala, durante aquela cena de grand guignol, de que fui espectador.

jA minha lição serve para todos os otorrinolaringologistas, pois posso, por meio dela, fazer um cálculo do número de pacientes que têm falecido antes da hora, simplesmente porque a traqueotomia deixou de ser realizada no momento adequado.

Segundo caso.

Acordei extremunhado com o telefone. Era da Santa Casa. Chamavamme de urgência, para atender a uma paciente que sofrera tentativa de degolamento. Olhei o relógio: uma hora e trinta. No dia imediato, às 9 da manhã, eu e a família tomaríamos o trem para Santos, de onde partiríamos para a Bahia, de vapor, às 3 da tarde. Estávamos em janeiro de 1929.

Acorri prontamente ao hospital. Deparei com a doente, uma mulher de cor, jovem, deitada na mesa de uma sala de pequena cirurgia. A seu lado, a Irmã Superiora e o Capelão do hospital. Já havia a paciente sido acudida pela Assistência Pública e já haviam sido feitas suturas. Respirava ruidosamente e com evidente dificuldade. Preparei-me, no mínimo de tempo, e dei início ao desfazimento das suturas. A laringe havia sido aberta de cima para baixo e da esquerda para a direita, com um golpe de navalha. Havia outro corte, muito menor, de cima para baixo.

Tirados os pontos, abriu-se amplamente a ferida e as cordas vocais ficaram expostas, à vista, logo abaixo do corte. Comecei, com vagar, a reconstituição das paredes, fazendo as suturas plano por plano. Foram a pouco e pouco se ultimando, até chegar à pele, que procurei suturar com o máximo cuidado, a fim de não deixar cicatriz muito evidente. Terminado o trabalho, a respiração estava normalizada. Dei as indicações a serem cumpridas com a doente, e tratei de voltar para casa. Quando cheguei, eram 4 da madrugada.

Parti, no dia seguinte, para a Bahia e tão logo voltei - uns vinte e tantos dias depois - entrei em contacto com a paciente, que estava completamente restabelecida. Vim então a saber que o autor da tentativa de morte havia sido o próprio marido. Ela, porém, assegurava, categoricamente, ter sido sempre exemplar como marido e como pai, motivo pelo qual não conseguia, de nenhum modo, compreender a razão daquele gesto.

Tempos depois, uns oito meses talvez, foi meu nome sorteado para servir no júri. Certo dia, fui escolhido para jurado.

0 réu era um homem de cor, ainda moço, que tentara matar a esposa. O juiz era um jovem magistrado que viria, ulteriormente, a ter grande nomeada. Não possuindo o réu condições para contratar um advogado de defesa, nomeou o juiz um dos juristas presentes defensor ad hoc, como se diz. Este pediu uma hora para dar uma vista geral no processo, e ficamos, os jurados, à espera de terminar este prazo. Começou, por fim, a leitura do processo. A medida que os autos iam sendo lidos, fui-me convencendo de que o réu devia ser o marido daquela paciente que eu socorrera na Santa Casa, meses atrás, e o qual eu jamais havia visto. O processo chegou ao fim, e aí não tinha eu mais a menor dúvida de que se tratava realmente do homem, cuja mulher fora por mim atendida.

Quando o juiz veio a nos inquirem se algum dos jurados desejava fazer qualquer pergunta, criei coragem e indaguei se o réu havia sido submetido a exame psiquiátrico. Após alguns minutos, respondia o magistrado declarando que não. Fomos então convidados a passar à sala secreta. Mal nos acomodamos e mal começou o juiz a expor os primeiros esclarecimentos, pedi-lhe que me permitisse dar algumas informações, antes de que o processo tivesse continuação. Narrei minuciosamente tudo que sabia, desde ter sido a doente atendida por mim altas horas da noite, na Santa Casa, até o conhecimento, que por ela viera a ter, de ser o marido um homem bom, de bons sentimentos, ótimo chefe de família. Só uma crise de confusão mental poderia justificar o que ele havia feito, ao que tudo levava a crer. Diante destas informações, resolveu o juiz encerrar a reunião, considerando o réu inocente, uma vez isento de culpa ou inimputável, como se diz em linguagem jurídica. E dispensou os jurados. Vinha a vítima vez por outra ao hospital, à minha procura e da Superiora. E um dia contou-me que o marido havia enlouquecido e estava internado no manicômio Franco da Rocha (Juqueri). Aí viria a falecer algum tempo depois.

Encontrei, após uns anos, certa feita, uma das testemunhas da operação, o capelão da Santa Casa, o Padre Paulo. E ele então me disse não ter podido jamais esquecer aquela noite, mormente quando, terminado o ato cirúrgico, havia eu ordenado à paciente dizer seu nome, e ela, com voz clara, o fizera. Jamais me lembraria do fato, não fora a recordação do Padre Paulol. Cabe, porém, acrescentar que nada havia de extraordinário no acontecido. Passando o corte acima das cordas vocais, não haviam estas sido lesadas. Refeito o canal, a voz teria que sair clara, perfeita, pelo menos para a pronúncia tão somente de uma palavra, e antes ainda de ter-se estabelecido a reação inflamatória.

Terceiro caso.

Naquele ano - isto foi em 1933 - havia eu tomado assinatura da Companhia Lírica do Municipal de S.Paulo. Justamente naqueles dias, meu segundo filho, Paulo, de 7 anos, aparecera com um processo de otite média aguda pósgripal, que exigira paracentese. Tudo corria bem, quando, em determinada noite, tivemos, eu e minha mulher, de ir a S.Paulo ver e ouvir a famosa Gilda Delia Rizza cantar a "Madama Butterfly". Quando voltamos, no dia seguinte, chegando em casa pouco depois das nove horas da manhã, surpreendo-me ao ver a criança com o pavilhão da orelha descolado, com evidente edema da parte superior da região mastóidea. Telefono imediatamente a minha enfermeira, que dormira em nossa casa ao lado do doentiinho, e ela me garantiu que, ao sair de lá, no máximo há pouco mais de meia hora, não havia queda do pavilhão, pois ela havia feito o curativo antes de sair, e nada notara.

É de prever o estado de espírito em que me achei, pois que um surto super-agudo de mastoidite exigia evidentemente intervenção cirúrgica imediata. Comuniquei o fato a minha mulher e telefonei à enfermeira para preparar o material cirúrgico. Avisei igualmente o meu hospital, o da Beneficência Portuguesa. Dirigi-me ao consultório e, enquanto aguardava a enfermeira, debruceime sobre o auto e pedi a Deus que me iluminasse naquela terrível contingência. A fé sempre foi o meu arrimo, a minha segurança, em tudo de minha vida.

Em sua preciosa obra, Réflexions sur ia Conduüe de Ia Vie, opina, com toda sua autoridade, o eminente mestre Carrel: "A necessidade de Deus exprime-se pela oração. A oração é um grito de angústia, um pedido de socorro, um hino de amor. Não consiste na monótona recitação de palavras, cujo sentido não compreendemos. Seu efeito é quase sempre positivo. Tudo se passa como se Deus estivesse nos escutando e nos desse resposta direta. Verificam-se acontecimentos inesperados: o equilíbrio mental se restabelece; a sensação de nosso isolamento, de nossa impotência, da inutilidade de nosso esforço, desaparece; o mundo abandona sua injustiça e sua crueldade e torna-se amistoso; um poder estranho desabrocha em nosso íntimo".

Assim aconteceu comigo naquela hora angustiada. Quando, pouco depois, chegava ao hospital, dei com os seis ou oito colegas que lá trabalhavam, reunidos na Sala dos Médicos, à minha espera. Um grupo de senhoras, suas esposas, já aguardava, no corredor, a chegada de minha mulher. Estava eu começando a subir, degrau a degrau, a escada da amargura. Os colegas, com muita diplomacia, perguntaram-me se não seria melhor aguardar um pouco, apenas uns dias; tinham a impressão de que eu estava sendo um tanto precipitado, embora não fossem especialistas. Fiz-lhes ver que o processo indicava virulência elevada dos germes causais, havia risco de qualquer complicação. encefálica, e, de outra parte, aquele processo equivalia a um abscesso: quanto mais depressa fosse drenado, melhor para o paciente. E deixei perceber que meu ponto de vista era aquele e que nada me demoveria da intervenção imediata. Veio ela a realizar-se pouco depois, sob anestesia local -- mais um degrau! - pois que a criança havia tomado o café da manhã.

Abri o antro, que estava cheio de secreção purulenta, e inspecionei cuidadosamente a cavidade. Após o esvaziamento, foi o antro tamponado com gaze iodoformada e apliquei, por fim, o penso compressivo.

Estava eu agora à espera do que iria acontecer, mas a pior etapa estava vencida. Era o que eu julgava. Passamos a noite no hospital e, a certa hora, dirigi-me ao quarto da frente para repousar, mas não consegui conciliar o sono. 0 meu colega e amigo Dr. Hermas Braga ficara no hospital, alegando estar com um doente em estado grave. Só depois vim a saber que tal doente não existia: ele havia permanecido no hospital por causa do meu filho. Aproximadamente à meia noite, chegou a enfermeira ao quarto e tomou a temperatura da criança. Minha mulher quis saber qual era e foi-lhe informado: 38°,6. Fez ela, porém, questão de ver o termômetro e a enfermeira entregou-o com tal falta de cuidado, que lhe escapou das mãos e quebrou-se no soalho. No dia imediato, vim a saber que a queda do termômetro fora proposital, pois a temperatura era de 40° e 3 décimos.

Logo cedo, cerca de 8 horas, notei que o doentinho estava em extremo prostrado, com febre algo elevada, o que me deixou seriamente preocupado. Notou-se que os rins não funcionavam desde o dia anterior. A mãe insistiu com a criança, pô-la de pé, e por fim conseguiu que o paciente eliminasse verdadeira borra escura. O exame veio a revelar haver evidente ataque renal: glomerulonefrite aguda difusa. Foi instituído o tratamento clássico da época - dieta, repouco, soro renal caprino. Ao cabo de alguns dias, foi o menino se restabelecendo, e voltou para casa, alcançando completa recuperação dentro de pouco tempo. Quinze dias depois, tinha eu a oportunidade de ler, em um número dos Annals of Otology, um artigo de Wood referente ao problema da intervenção na mastoidite aguda, se precoce, se tardia. Achava o autor que a operação devia, normalmente, ser feita três semanas após o aparecimento dos sintomas. Mas, na parte final do artigo, declarava haver outro critério para o momento adequado de intervir, de acordo com o intervalo de tempo entre a dor de ouvido inicial e o aparecimento das primeiras manifestações clínicas da mastoidite. Quanto mais curto este intervalo, tanto mais virulenta é a infecção e tanto mais precocemente deve ser levado a cabo o ato cirúrgico.

Na mesma data, em estudo de Lowy, publicado no Monastsschrift für Ohrenhei1kunde, baseado no material da Clínica de Neumann (Viena) e constante de 2.047 casos de otite média seguida de antrotomia, observados nos anos de 1927-1933, ficava patente que o número de observações de nefrite nas otites e mastoidites fora de 07%. A antrotomía resolvia os dois problemas patológicos: a mastoidite e a nefrite. Era outro reforço à necessidade da intervenção imediata pela qual me decidira, mesmo desconhecendo a existência da nefrite.

É inútil insistir no que veio a custar-me esta operação, mormente quando assumira eu tamanha responsabilidade. Foi um caso que até hoje deixa meu espírito em choque, quando ele me vem à lembrança. Uma coisa ficou patente, pelo que expus: Deus me havia iluminado. Em parte sabendo, em parte sem o saber por que razão torná-la, a atitude que me vi obrigado a assumir estava certa, e vim, destarte, a receber a recompensa, a maior: se não a vida, a saúde de meu filho. Não posso prever o que teria acontecido, se a operação tivesse sido retardada, mormente em vista da existência da nefrite, levando-se em conta, em particular, os elementos terapêuticos de que, naquela época, á medicina dispunha.

Em uma de suas mais afamadas alocuções, asseverou Osler, já em fim de carreira, que "o exercício da medicina será, para cada um de vós, aquilo que souberdes fazer: a um, preocupação importuna e contrariedade perpétua; a outro, conforto de todos os instantes e a maior plenitude na vida a que pode um homem aspirar".

Conheci colegas que poderiam ser inscritos na primeira contingência: preocupação, contrariedade perene. Eram eternos descontentes, desiludidos, revoltados, a culpar sempre e insistentemente a profissão, quando toda a culpa cabia realmente a eles.

Tive igualmente a oportunidade de conhecer vários outros, para os quais a profissão fora conforto constante, realização completa daquilo com que sempre haviam sonhado.

Há, porém, um terceiro grupo, a que Osler não fez referência: o dos autômatos, indiferentes que, sem entusiasmo, sem dedicação, vêem, na vida médica nada mais que uma tarefa a ser cumprida mecanicamente. Falta-lhes a alma, a grandeza da profissão.

Do que foi exposto neste trabalho, deparamos, em verdade, conjunturas em que o médico se viu forçado a tomar atitude decidida e decisiva. Revelam tais passagens o que é a vida do clínico, as amarguras, as responsabilidades, os verdadeiros tormentos que tem de vencer. Jamais me ocorreu, nem de longe, ter um dia de tornar públicos tais casos. Mas a ordem do Presidente Ocelo Pinheiro e de seus colegas da Comissão Executiva desse Congresso assim o decidiu. Eles é que escolheram, não só o orador, como o tema "Momentos inesquecíveis de minha vida profissional" (e não "Casos", como reza o programa, posteriormente publicado). Tive tão somente de cumprir-lhes as ordens.

Não são, entretanto, somente esses casos singulares o que há inesquecível no exercício da nossa profissão. Toda a vida médica é regida por normas que vão, ano a ano, como que criando uma segunda natureza, enrijecendo, solidificando o nosso espírito. Aumenta gradativamente, no trabalho clínico, o vigor na dedicação, nesta importância, nesta grandiosidade que, com o tempo, sente o médico representar o verdadeiro fundamento de sua vida profissional. Vamos cada vez mais nos convencendo de que é indispensável nosso espírito de sacrifício não perder a veemência, pois que, também, cada vez mais, a medicina nos envolve em suas malhas. As críticas, os julgamentos injustos, com que certos espíritos estreitos e maldosos nos acoimam, não nos conseguem atingir. Vamos, apesar de tudo isso, de cabeça erguida, seguindo uma rota que o próprio Cristo abençoou, e nada há que nos possa impedir de seguí-la, uma vez que representa a nossa própria razão de ser.

Assim é que encaro a vida de médico e posso dizer que, nesta trajetória pelas sendas da vida, há em verdade muitas passagens que jamais podem ser esquecidas nessa existência de devotamento e dedicação em que se entrelaçam, como que se conglomeram, todas as grandezas de um ideal - um genuíno, grandioso, um nobre ideal.

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