Ano: 1989 Vol. 55 Ed. 4 - Outubro - Dezembro - (6º)
Seção: Artigos Originais
Páginas: 179 a 184
Adenoma ceruminoso do ouvido médio (revisão da literatura e apresentação de um caso)
Ceruminous Adenoma of the middle ear (literature's review and report of a case)
Autor(es):
Silvio Caldas Neto
André Duprat
Edson Bastos Freitas
Ricardo Ferreira Bento
Nelson Caldas
Resumo:
Tumores de glândulas ceruminosas são patologias extremamente raras, sendo mais incomum ainda a sua origem fora do canal auditivo externo.
No presente trabalho, é apresentado um caso de adenoma ceruminoso do ouvido médio e levantados 125 outros, descritos na literatura desde 1941.
Os autores analisaram a incidência de cada tipo histológico, bem como o sexo, raça, idade e local de origem dos tumores.
Introdução
O conduto auditivo externo é recoberto por pele contínua com a pele do pavilhão auricular. Ela repousa sobre o osso timpanal nos 213 internos do conduto, onde é bastante delgada, quase desprovida de tecido celular subcutâneo. No 113 externo do canal, ela reveste cartilagem, sendo aí bem mais espessa por conter tecido subcutâneo abundante, com foliculos pilosos e grande quantidade de glândulas sebáceas e ceruminosas. As últimas são glândulas sudoríparas (apócrinas) modificadas. Os tumores originados destas são muitos raros no homem e correspondem, segundo Silverberg (1983)1, a neoplasias intermediárias (potencialmente malignas). É especialmente rara a sua localização no ouvido médio.
Caso clínico
T.F.M., sexo feminino, branca, 37 anos de idade, procurou atendimento médico em janeiro de 1983 com história de sensação de obstrução auricular e hipoacusia do lado direit havia 10 meses. A paciente tinte feito consultas com outros especialistas, sendo submetida a tratamento com duchas de ar por manobra de Politzer e a corticoterapia, sem, no entanto, obter sucesso. Havia sid proposta em uma das ocasiões miringotomia no ouvido comprometido.
O exame otorrinolaringológico foi normal a não ser por uma única alteração, que foi uma membrana tipânica completamente imóvel, observada à pneumatoscopia por intermédio do espéculo pneumático de Siegle.
A audiometria, demonstrada n (Fig. 1), mostrou hipoacusia do tipo condutivo à direita, com gap médide aproximadamente 40 dB (tomam do-se a média dos limiares nas freqüências de 500, 1000 e 2000 Hz), curva normal à esquerda. impedanciometria (Fig. 2) revelou curva timpanométrica no (tipo A de Jerger) do lado esquerdo e padrão do tipo B (curva plana) do lado direito. Em ambos os lados, reflexo estapediano contra-lateral foi ausente (Fig. 1).
Foi realizada miringotomia exploradora no ouvido direito, percebendo-se caixa timpânica ocupada por tecido de aspecto gorduroso. Da massa, retiraram-se 5 fragmentos, os quais foram enviados para exame histopatológico (microfotografia na Fig. 3), que mostrou tecido constituído por células redondas ou poligonais monomórficas, com núcleos redondos e pequenos e citoplasma basófilo. Tais células formavam estruturas glandulares bem constituídas, com lumens vazios, sem espaços entre elas. Foi diagnosticado adenoma ceruminoso.
Fig. 1 - Audiometria pré-operatória, mostrando hipoacusia de condução á direita e audição normal á esquerda. Reflexo estapediano ausente.
Fig. 2 - Timpanoplastia pré-operatória. Curva tipo A de Jerger do lado esquerdo e plana (tipo B) à direita.
Fig. 3 - Microfotografia de corte histológico da peça retirada através de miringotomia (H & E, aumento do negativo 100 X).
Exames radiológicos do osso temporal direito revelaram discreta velamento de caixa timpânica, sem comprometimento da mastóide.
Timpanomastoidectomia foi, então, proposta e realizada em março de 1983, sob anestesia geral e entubação endotraqueal, seguindo-se abaixo a descrição cirúrgica:
"Após incisão retroauricular, foi feita exposição da mastóide e conduto auditivo externo ósseo. Incisão transfixante da parede posterior do conduto e retração de sua porção distal (lateral) com afastador autoestático de Wullstein permitiu total visualização da membrana timpânica. Uma timpanotomia ampla mostrou ouvido médio inteiramente invadido por massa de aspecto gorduroso que se estendia até as proximidades da abertura timpânica da tuba auditiva, sem, no entanto, penetrá-la. Havia forte aderência com a membrana timpânica, o que forçou a sua total retirada juntamente com o anulus timpânico fibroso e parte da pele do conduto. A massa ocupava os espaços inter-ossiculares, mas não se aderia aos ossiculos nem invadia o epitímpano, o que permitiu a sua retirada, aparentemente, total, com a impressão, entretanto, de ter havido algum grau de luxação da articulação incudo-maleolar. Em seguida, procedeu-se a uma mastoidectomia simples, que revelou cavidade mastóidea e região atical livres de massa tumoral. Para compor neotímpano total, foi usado enxerto de fáscia temporal apoiado no anel timpânico ósseo e com entalhe para abraçar o cabo do martelo. A caixa timpânica e o conduto auditivo externo foram preenchidos com Gelfoan® para servir de suporte para o enxerto."
Fig. 4 - Audiometria pós-operatória, realizada após seis anos de seguimento. A curva audiométrica e o reflexo estapediano em ambos os lados mostram-se praticamente inalterados.
A massa tumoral foi enviada em fragmentos para análise histopatológica, que confirmou o diagnóstico.
A paciente evoluiu normalmente, apresentando, todavia, freqüentes granulações no neotímpano, exigindo, por vezes, curativos com curetagens e cauterizações químicas. Recebeu alta 9 meses após a cirúrgia, exibindo tímpano epitelizado e móvel.
Seguimento pós-operatório foi feito anualmente durante seis anos, sem sinais de recurrência do tumor. A audiometria (Fig. 4), bem como a impedanciometria (Fig. 5) de controle foram semelhantes aos exames pré-operatórios.
Atribuímos o mau resultado funcional tanto à lúxação incudo-maleolar, quanto a provável processo de anquilose da cadeia ossicular.
Revisão da literatura
Os tumores das glândulas ceruminosas são entidades muito raras, que começaram a despertar maior atenção a partir de 1957, quando Johnstone e cols2 revisaram dez casos que eles consideraram bem documentados e a estes adicionaram mais cinco.
Fig. 5 - Timpanometria pós-operatória apresenta-se semelhante á curva obtida antes da cirurgia.
Segundo nossa revisão bibliográfica, o tumor pode acometer qualquer faixa etária, sendo, porém, excepcional na infância. Ainda em 1957, Peytz e Ohlsen(3) levantaram 26 casos de literatura, de pacientes entre 14 e 78 anos de idade, encontrando uma proporção de 17 homens para 9 mulheres, admitindo que a patologia tivesse alguma preferência pelo sexo masculino.
A grande maioria dos tumores, como era de se esperar, surge do 1/3 extemo do conduto auditivo. Todavia, em raríssimos pacientes, pode se originar de outros locais. Lindqvist e Bergstedt4, em 1970, comentam que, até aquele ano, cerca de 30 casos tinham sido publicados, sendo que apenas 3 originaram-se do ouvido médio e 1, do meato acústico interno. Para a presença do tumor em locais outros que não o ouvido externo, tais autores admitiam duas explicações possíveis: extensão a partir de lesão no conduto ou surgimento primário da massa a partir de tecido glandular ectópico.
Até 1972, esses tumores eram agrupados em uma só entidade patológica, com denominações diversas, como ceruminoma, adenoma ceruminoso, hidradenoma, cilindroma etc, o que levou alguns otologistas a incorrerem em erros de diagnóstico e de conduta. A partir de Wetli e cols5 os tumores de glândulas ceruminosas passaram a ser classificados em 4 tipos com diferenças histopatológicas e/ou clínicas, a saber:
a) Tipo I ou Adenoma Ceruminoso - É uma proliferação benigna localizada de glândulas ceruminosas bem diferenciadas. Pode mostrar padrão cístico ou papilar. Não invade tecidos vizinhos, porém, quando incompletamente excisado, apresenta recidiva com muita freqüência.
b) Tipo II ou Adenocarcinoma Ceruminoso --- Tem a mesma apresentação histológica do anterior, apesar de poder, em alguns casos, mostrar certo grau de pleomorfismo e atividade mitótica. No entanto, tem caráter infiltrativo, comprometendo tecidos moles e osso, com alto índice de recidiva após retirada cirúrgica parcial. É possível que provoque metástases intracranianas ou à distância.
c) Tipo III ou Carcinoma Adenóide Cístico - Além de ser o tipo mais freqüente, é também o de maior malignidade, único que se sabe de fato produzir metástases à distância. Segundo Ducheteau e cols. (1976)6, são comuns metástases pulmonares, renais, cutâneas e ósseas. Histologicamente, mostra também aspecto caracteristicamente maligno, com nichos de pequenas células escuras, no interior dos quais encontra-se espaço cístico ou material hialino. Apresenta grande tendência a invadir estruturas nervosas.
d) Tipo IV ou Adenoma Pleomódico ou Tumor Misto - De todos os tipos, o mais raro. Lobulado, bem delimitado, apresenta cordões e ninhos de células epiteliais envoltos por estroma mixóide e/ou pseudocartilaginoso de origem mioepitelial. É benigno, mas também pode recidivar com nódulos múltiplos, se incompletamente excisado.
De um modo geral, metástases intracranianas e à distância ocorrem com maior freqüência do que as linfáticas, que são incomuns.
Em 1974, Harrison e cols.7 resumiram as características histopatológícas gerais dos tumores de glândulas ceruminosas do que destacamos:
- compostos principalmente de tecido glandular bem diferenciado com poucas figuras mitóticas;
- presença de ácinos envoltos por células cubóides com citoplasma eosinofilico e núcleos redondos ou ovais;
- em algumas áreas o revestimento é duplo, com uma camada mais externa de células mioepiteliais;
- abundância de material PAS positivo;
- todo o tumor é envolvido por estroma edematoso e vascularizado, com ilhotas ocasionais de tecido tumoral.
Habib (1981)8 considerou a possibilidade de aparecimento de tumor de glândulas cerumínosas como componentes de síndromes que envolvessem glândulas sudoríparas de outros locais.
Fig. 6 - Gráfico da distribuição dos casos de acordo cota a faixa etária, mostrando incidência significativa desde os 21 até 80 anos.
Os autores deste trabalho levantaram 125 casos 2-28 publicados desde 1941, adicionando a eles o caso descrito acima. Dos 126, só foram encontradas referências à idade dos pacientes em 76, estando 2 (2,63%) situados na faixa etária de 0 a 20 anos (um deles, abaixo de 10); 23 casos (30,26%), de 21 a 40 anos; 29 (38,16%), de 41 a 60; 19 (25%), de 61 a 80; e 3 (3,95%) acima dos 80 (ver gráfico da Fig. 6).
Encontramos referências quanto ao sexo em 115 descrições, das quais 57 eram de homens e 58 de mulheres.
A raça do indivíduo foi citada em apenas 17 casos, tendo sido observados 15 (88,23%) brancos e só 2 (11,7%) negros.
Para agrupar os casos segundo o seu tipo histológico, nós consideramos somente as publicações feitas após o trabalho de Wetli e cols. (pois ,á usavam a classificação proposta por estes) e mais aquelas que foram utilizadas na casuística dos mesmos autores, ainda que ocorridas antes de 1972. Obtivemos daí um total de 94 casos, dos quais 25 eram de adenoma ceruminoso, o que correspondeu a 26,6%, 27 (28,72%) eram de adenocarcinoma ceruminoso, 38 (40,43%) eram de carcinoma adenóide cístico e, finalmente, 4 (4,25%), de adenoma pleomórfico (Fig. 7).
Fig. 7 - Gráfico mostrando a dstribuiça-o percentual das incidências dos quatro tipos histológicos do tumor, nos 126 casos analisados.
Com respeito ao local de origem, pudemos relacionar 123 descrições que mencionavam este aspecto. A grande maioria dos casos (110 ou 89,43% do total) originaram-se no ouvido externo. Apenas 10 tumores (8,13%) tinham origem no ouvido médio e 3 (2,44%), na porção petrosa do osso temporal.
De acordo com a literatura, a sintomatologia desse tipo de tumor é variável e depende basicamente da localização da lesão. Normalmente, o paciente apresenta-se com queixas vagas e inespecíficas. Peso na cabeça, pressão no ouvido, zumbido, dor, otorréia ou hipoacusia podem ser referidos. Otalgia é particularmente comum nos casos de carcinoma adenóide cístico, por sua tendência a invadir nervos. As vezes há relato de paralisia facial progressiva ou episódica.
À otoscopia, em geral, é vista massa acinzentada ou amarelada no conduto auditivo externo, ou, mais raramente, medial a membrana timpânica íntegra. Outras vezes, porém, um exame otoscópico normal (nos casos de tumor fora do conduto) pode dificultar bastante a suspeita diagnóstica.
Somente o estudo histopatológico pode afirmar com certeza a natureza do tumor.
O tratamento é essencialmente cirúrgico, combinado ou não com radioterapia pós-operatória. Geralmente os tipos benignos (tipos I e II de Wetli) podem ser facilmente retirados por excisão local, mas é de extrema importância que toda a massa seja excisada, pois resíduos inadvertidamente deixados pelo cirurgião fatalmente acarretarão recurrência. Para os tipos malignos, a cirurgia deve ser bem mais extensa, com ampla margem de segurança na retirada do tumor. Para Pulec (1977)9, tais casos devem sempre ser tratados por excisao ampla do canal auditivo externo. mastoidectomia radical extensa. parotidectomia total e condilectomia mandibular. Segundo Anagnostou e cols (1974)10, o tratamento de escolha é cirúrgico, mas a radioterapia pode ser indicada quando o tumor, seja ele primário ou recurrente, estende-se além dos limites da resseção cirúrgica, em casos de metástases à distância, quando as condições clínicas do paciente impedem a cirurgia ou, finalmente, quando este recusa-se a ser operado. Normalmente, usa-se uma dose total de 4000 a 6000 rads.
Comentários
O levantamento estatístico feito neste trabalho concorda em vários pontos com a literatura existente.
Wetli e cols5, em seu estudo de 52 casos publicados, achou cerca de 56% de carcinomas adenóides císticos contra 19% de adenomas, 17% de adenocarcinomas e 8% de tumores mistos, o que se assemelha aos nossos resultados.
A média de idade encontrada nestes pacientes foi de 48 anos, estando próxima da média observada por Pulec e cols. (1963)", em sua casuística de 21 pacientes, que foi de 42 anos. Isto pode ser comparado com a média de 49 anos encontrada nos 126 casos por nós estudados. Chamados atenção apenas para o acometimento de várias faixas etárias em grau significativo, poupando somente as crianças, os adolescentes e aqueles acima dos 80 anos.
A localização largamente predominante no ouvido externo é também ponto em comum entre os diversos trabalhos.
Também tiramos do nosso levantamento a conclusão de que parece haver nítida preferência para a raça branca em relação aos negros, apesar de a amostra utilizada ser muito pequena.
Discordamos dos trabalhos anteriores, todavia, no que concerne à incidência em relação ao sexo, que certamente não apresenta nenhuma diferença estatística.
O caso apresentado de adenoma ceruminoso, excluindo-se a sua localização incomum, teve comportamento coerente com o seu tipo histológico, uma vez que não foi encontrado nenhum sinal radiológico ou clínico de caráter invasivo, tendose procedido à sua excisão com relativa facilidade e segurança, o que possibilitou um longo seguimento sem evidências de recurrência.
Podemos ainda reforçar, pelo que foi apresentado, a necessidade de sempre se fazer um exame otoscópico extremamente acurado, mesmo em pacientes com sintomatologia frusta (ou talvez principalmente nestes, onde, muitas vezes, alterações mínimas à otoscopia podem ser o único dado que induza o otologista a uma exploração semiológica mais cuidadosa).
Summary
Tumor of ceruminoss glands is an extremely rare disease being its origin other than the external auditory meatus even more uncommon.
In this paper, one case of Ceruminous Adenoma in the middle ear is presented and other 125 were reviewed in the available literature since 1941.
The present authors analised the incidênce of each histhological type, as well as the ser, race, age and site of origin of the tumor.
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* Trabalho realizado na Clinica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Médico-residente em Otorrinolarvtgologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Mdicina da Universidade de São Paulo.
*** Interno do 6L ano da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
**** Professor Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
***** Professor Titular da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco.