Versão Inglês

Ano:  1989  Vol. 55   Ed. 3  - Julho - Setembro - ()

Seção: Relato de Casos

Páginas: 102 a 108

 

Cisto branquial no espaço parafaríngeo (apresentação de um caso)*

Branchial cyst in the parapharingeal space (a case report)

Autor(es): Lídio Granato**
Maristela de Queiroz Ribeiro***

Resumo:
Trata-se de uma paciente com 75 anos de idade portadora de uma massa cística cérvico facial direta com evolução de 25 anos. Houve invasão do espaço parafaríngeo trazendo dificuldade à deglutição devido ao seu enorme volume. A tomografia computadorizada mostrou, do lado do tumor, erosão do ramo mandibular e parte do osso hióide. A paciente foi submetida à cirurgia utilizando-se via combinada, ou seja, pela cavidade oral e externa com preservação do nervo facial. O exame anatomopatológico revelou presença de cristais de colesterol no interior do cisto que, associado a sua localização, nos leva ao diagnóstico de cisto branquial.

Introdução

Rathke, em 1825, notou a semelhança existente entre as fendas e arcos branquiais num embrião de porco com três semanas com as estruturas correspondentes dos animais aquáticos (brânquias e guelras). Von Baer, em 1827, mencionou a presença de quatro fendas branquiais no embrião humano¹. Segundo Wenglowski o complexo branquial desenvolve-se durante a segunda e terceira semanas persistindo até o final da sétima semana embrionária. A não regressão dos restos epiteliais poderá dar origem a fístulas ou tumores congênitos².

O cisto branquial é doença congênita embora não necessariamente detectada logo após o nascimento. Isto deve-se ao fato de não apresentar conteúdo líquido que o distenda. Muitas vezes eles permanecem pequenos e relativamente superficiais porém podem crescer e atingir a parede faringeana,internamente, e a base do crânio, superiormente.

O interesse na apresentação deste caso é devido a raridade de localização e proporções atingidas pelo cisto branquial no espaço parafaríngeo, assim como discutir as vias de acesso cirúrgico.

Apresentação do caso

Trata-se de paciente feminina, branca, com 75 anos de idade, procedente da Bahia, prendas domésticas.

Há 25 anos apareceu um "caroço" com aproximadamente 2 centímetros de diâmetro, apontado em região anterior ao lóbulo de orelha direita, sem sinais flogísticos ou febre.

A tumoração teve crescimento insidioso e indolor nesse período fazendo projeção mais acentuada a nível cervical e cavidade oral.

Acompanha o quadro: otalgia à direita, em pontada, sem otorréia; diminuição da audição ipsilateral; dificuldade à deglutição. Nega emagrecimento.

Ao exame físico nota-se: assimetria facial direita às custas de abaulamento que ocupa a região pré-auricular, submandibular e anterior ao esternocleidomastoideo, medindo, aproximadamente, 12 centímetros de diâmetro, bocelado, com consistência fibroelástica, limites precisos, pouco móvel e aderente a planos profundos (figs. 1 e 2). Articulação temporo-mandibular com limitação de movimentcs à direita e linfonodos não palpáveis. Orofaringe apresentase com abaulamento em palato e em parede lateral direita, sendo deslocados em sentido medial, impedindo visualização da parede posterior, úvula e amígdala direita, sem alterações tróficas e com consistência fibroelástica. Otoscopia revela membrana timpânica direita retraída e espessada e a esquerda, normal. Acumetria: V AD < V AE, Rinne positivo bilateralmente e Weber lateralizado para a direita.



Fig. 1 - Tumoração cérvico facial direita.



Fig. 2 - Assimetria facial direita medindo aproximadamente 12 cm de diâmetro.



Fig. 3 - Corte tomográfrco contrastado em sentido axial mostrando massa cística ocupando nasofannge e rechaçando arco mandibular ipsilateral.



Fig. 4 - Corte tomográfico axial mostrando, a este nivel , tumoração com cápsula parcialmente calcificada.



A tomografia computadorizada mostrou presença de grande formação predominantemente cística com cápsula parcialmente calcificada, ocupando os planos profundos da hemiface direita, provocando compressão e erosão do ramo mandibular direito e osso hióide do rnesmo lado. Observa-se luxação da articulação temporo-mandibular ipsilateral. Medialmente existe compressão da orofaringe. Opinião: grande formação cística da hemiface direita com aspecto de benignidade (figs. 3, 4 e 5).



Fig. 5 - Corte axial contrastado evidenciando-se a cavidade cística septada, em região cervical baixa.



Com a hipótese diagnóstica de cisto parafaríngeo foi indicado tratamento cirúrgico e que dada a sua grande extensão optou-se por acesso combinado: transpalatino mediano e cervical (anterior ao trágus, acompanhando região do pavilhão auricular, progredindo 1 centímetro em região posterior do mesmo e seguindo paralela ao ramo mandibular - tipo Morestin, fig. 6). Abertura por planos. Exposição do cisto na cavidade oral (fig. 7). Puncionado o tumor: líquido acastanhado com pontos refringentes em grande quantidade, sugerindo cristais de colesterol (fig. 8). Cápsula
parcialmente calcificada e bocelada. Nervo facial exposto e preservado (fig. 9). Achados: bordo inferior do ramo mandibular adelgaçado e cortante; processo estilóide erosado e presente na massa tumoral; erosão da base do crânio com pequena exposição da meninge ao nível da fossa média.

A paciente foi mantida com intubação oro-traqueal durante 24 horas no pós-operatório imediato devido ao risco da formação de hematoma. Colocado dreno de Penrose em região cervical lateral.



Fig. 6 - Incisão tipo Morestin



O exame histopatológico revelou parede cística constituída por tecido conjuntivo denso com áreas hialinizadas. Em meio a esse tecido observam-se remanescentes de tecido linfóide esboçando folículos. Nota-se, ainda, aglomerados de histiócitos em torno de cristais de colesterol além de restos hemorrágicos, áreas de necrose e focos de calcificação (figs. 10 e 11).



Fig. 7 - Exposição do cisto na cavidade oral.



Fig. 8 - Punção do tumor : líquido acastanhado com pontos refringentes.



Fig. 9 - Individualização do tronco do nervo facial e seus ramos.



Fig. 10 - Parede cística, predominantemente fibrótica com remanescentes de tecido linfóide e ausência de epitélio de revestimento. Exame citológico com coloração H&E, aumento 120 vezes.



Fig. 11 - Maiores detalhes da parede do cisto evidenciando-se, nitidamente, a presença de tecido linfóide. Exame citológico com coloração H&E, aumento 240 vezes.



Comentários

Os cistos branquiais embora de origem congênita se manifestam clinicamente, de uma maneira geral, na 2ª e 3ª décadas de vida, acometendo ambos os sexos, sem predominância quanto ao lado, direito ou esquerdo.

Apresentam-se com tamanhos variados, de 1 a 15 centímetros de acordo com a literatura. Geralmente crescem lentamente, são indolores e se localizam ao longo da borda anterior do músculo esternocleidomastoideo, sobre a bainha carotídea, mais freqüentemente no terço inferior ao nível do ângulo mandibular. Podem se estender superiormente até a base do crânio e internamente até a parede da faringe¹.

Os cistos são relativamente móveis no eixo transversal, mas não no sentido longitudinal. Sujeitos a processos inflamatórios agudos que determinam o aparecimento de dor e modificação do seu volume. Às vezes abscedam com formação de fístulas secundárias e reações cicatriciais, que alteram a consistência da parede cística, levando à dificuldade diagnóstica.

A etiopatogenia do aparelho ou sistema branquial pode ser descrita pelo desenvolvimento mais exacerbado do segundo arco superpondo-se aos inferiores constituindo, dessa maneira, o "seio cervical" ou seio pré-cervical de Hiss no fundo do qual ficam sepultados o terceiro e quarto arcos com suas respectivas fendas.

O fechamento incompleto do "seio cervical" ou a perfuração da membrana obturadora poderá ocasionar a formação de fístula ou cisto branquial.

Ward e Hendrick, em 1950, segundo Sobol², esquematizaram essas situações onde no primeiro caso nota-se o fechamento do seio cervical; a seguir a formação da fístula cega externa ou incompleta externa. No terceiro esquema existe ruptura da membrana obturadora comunicando a faringe através da segunda bolsa, fístula cega interna ou fístula incompleta interna. Já no quarto, fístula branquial ou fístula completa e, por último, o seio cervical remanescente ou cisto branquial (fig. 12).



Fig. 12 - Esquema de Ward e Hendrick para demonstrar a forntação do cisto e fístulas branquiais
I- fechamento do seio cervical
II - fístula cega externa ou fistula incompleta externa
III - fÍstula cega interna ou fistula incompleta interna
IV - fistula completa
V - cisto branquial



Fig. 13 - Anatomia do espaço parafaríngeo, corte transversal.
Fa -faringe
MCS - músculo constrictor superior
A - amígdala
B - músculo bucinador
PI - músculo pterigóide interno
M - mandíbula
Mas - músculo masséter
D - músculo digástrico (post.)
E - músculo esternocleidomastoideo
P - glândula parótida
CI - artéria carótida interna
JI - veia jugular interna
CE - artéria carótida externa
V - veia facial posterior
CV - coluna vertebral
F - nervo facial
H - nervo hipoglosso
G - nervo glossofaríngeo
Va - nervo vago
Ac - nervo acessório
Eg - músculo estiloglosso
Ef - músculo estilofaríngeo




Dentre as anomalias branquiais descritas, são os cistos os mais freqüentes seguidos pela fístula cega externa, fístula completa e por último, fístula incompleta interna.

Referente à histopatologia, o revestimento dos cistos é dado pelo epitélio pavimentoso, na grande maioria dos casos. A presença de folículos -linfóides na parede dos cistos é mental.

O encontro de cristais de colesterol no conteúdo cístico é freqüente sendo as secreções encontradas muito variáveis: mucosa, sebácea, purulenta, hemorrágica.


A anatomia do espaço parafaríngeo é complexa tendo a forma de pirâmide invertida cujo ápice encontrase no corno maior do osso hióide, a base, no buraco rasgado posterior na base do crânio. A maior parte desse espaço é constituída por um intervalo de tecido conjuntivo frouxo tendo medialmente o músculo constrictor superior da faringe e a fossa tonsilar; posteriormente, coluna vertebral e músculos paravertebrais. O limite lateral é dado, de anterior para posterior, pelo músculo pterigóide interno, face interna do ramo mandibular, lobo profundo da glândula parótida e músculo digástrico.

No tecido de sustentação encontram-se: artéria carótida interna, veia jugular interna, músculos estilóides, nervos cranianos (glossofaríngeo, vago, acessório e hipoglosso), nervo simpático e linfonodos (fig. 13).

O arcabouço ósseo que limita o espaço parafaríngeo, coluna cervical, ramo da mandíbula, mastóide, processo estilóide, base do crânio, impedem o crescimento dos tumores nesses sentidos, empurrando-os em direção mediana, abaulando a parede faríngea, deslocando a tonsila e palato para o lado contralateral e em direção caudal. O crescimento progressivo do tumor pode causar atrofia do processo estilóide e ruptura do ligamento estilomandibular.

Patey e Thackray, em 1957, de acordo com Bertelli & Ferreira³, criaram a denominação de túnel estilomandibular ao espaço compreendido entre a borda posterior do ramo mandibular e o músculo pterigóide interno, anteriormente; processa estilóide e o ligamento estilomandibular, posteriornnente, e a base do crânio no limite superior. Os tumores desta região alcançam o espaço parafaríngeo por este túnel.

A maioria dos tumores que afeta o espaço parafaríngeo é benigna, sendo em grande parte pertinentes à glândula parótida.

Os tumores do espaço parafaríngeo (sensu latu) podem ser classificados de acordo com sua origem:

1 - Glandulares:
a) Adenomas:
- Pleomorfos ou tumores mistos

Mornomorfos:
- Linfadenomas Adenoma oxffilo Outros

b) Carcinoma adenóide cístico

c) Carcinoma mucoepidermóide

d) Adenocarcinoma

2 - Malformações:
a) Branquiais
b) Angiomatosas:
- Fístulas
- Aneurismas

3 - Partes moles:
a) Tec. gorduroso:
- Lipomas
- Lipossarcomas

b) Tec. vascular:
- Hemangiomas
- Hemangiopericitomas
- Linfangiomas
- Hemangioendotelioma maligno
- Hemangiopericitoma maligno
- Linfossarcomas

c) Tec. conjuntivo:
- Fibromas
- Fibroma desmóide
- Fibrossarcomas

d) Tec. nervoso e neuroectodérmico:
- Schawannomas
- Neurofibromas
- Ganglioneuromas
- Paragangliomas Schawannoma maligno
- Ganglioneuroblastomas
- Paraganglioma maligno

4 - Comprometimento linfonodol:

a) Primário: linfomas

b) Secundário: metastáticos:
- Tireóide
- Laringe
- Rinofaringe
- Neuroblastoma

5 - Outros:

a) Tumores complexos de restos embrionários:
- Cistos epidermóides
- Cistos dermóides Teratomas
- Cordomas (notocorda)

A análise clínica e a tomografia computadorizada foram de grande valia, orientando-nos no diagnóstico topográfico e na natureza cística do tumor. Isto nos possibilitou a escolha do acesso cirúrgico assim como controle completo dos planos envolvidos pelo cisto.



Fig. 14 - Pós-operatório imediato com assimetria facial e paresia da rima bucal direita.



Fig. 15 - Região cérvico facial anterior direita sem abaulamentos.



Após 25 anos de permanência da tumoração no espaço parafarfngeo comprimindo a mandíbula, esta sofreu lateralização em seu arco ipsilateral ao cisto, resultando no pós-cirúrgico assimetria facial (fig. 14).

O acesso cirúrgico empregou vias combinadas, interna e externa, pois qualquer uma das duas isoladamente tornaria difícil ou quase impossível a remoção do tumor. O acesso transpalatino facilitou a aspiração do líquido com conseqüente diminuição do cisto, propiciando melhor campo para individualizar sua parede no espaço parafaríngeo. A via externa foi necessária para a identificação do tronco do nervo facial e seus ramos, assim como para isolar a parótida do cisto que se encontrava rechaçada lateralmente pelo mesmo. A glândula submandibular era contígua ao tumor fazendo aderência a este porém conseguiu-se preservá-la (fig. 15).

Concluímos que a paciente era portadora de cisto branquial, baseado na sua localização e no estudo histopatológico do material que revelava cristais de colesterol no seu interior limitado por paredes fibrosadas e calcificadas.
A raridade de localização do cisto branquial no espaço parafaríngeo e seu tamanho exagerado nos trouxe alguma dúvida quanto a real natureza deste cisto.

O seguimento da paciente deu-se regularmente até 5 meses após a cirurgia podendo ser constatado o retomo anatômico normal da parede lateral da faringe e região palatina.

Na face observou-se paresia da rima bucal direita.

Agradecimentos

Ao Dr. José Donato de Próspero e Dr. Giulio Cesare Santo pela ajuda na classificação dos tumores parafaríngeos e pela documentação fotográfica histopatológica.

Ao Dr. Ivo Bussoloti Filho e Dr. Arthur Guilherme L.B. Augusto pela documentação fotográfica.

Summary

Patient is a 75 year old, female, with an onormous right cervicofactal mass, for 25 years. The mass invaded the parapharingeal space. Lately, swallowing has been gradually made more dif cult due to.displacenzent of the ipsilateral half of pharynz and soft palate to the opposite side. On palpation, the mass felt fibroelastic in consistence, with irregularly nodular and perfectly discrete surface, measuring some 12 cm in diameter.

Computerized tomography sho wed erosion of the right mandibula angle and vicinity of the lower border, as well as the neighboring par of the hyoid borre.

Surgical removal of the tumor was performed through combined external and internal access. The facial nerve was preserved.

Histopathologic exam showed cholesterol crystals filling the cyst, whose wall was fibrotic, with some calcification.

The locazation of the cyst and its histopathology suggest a branquial origin, which is the most common pathology among branchial rnalformations.

Referências bibliográficas

1. MOREIRA, A,C.C.; CORIOLANO, M.R. & TOLEDO, A.C. - Afecções de origem branquial. In: CORRÊA NETTO, A. Clínica cirúrgica. 38 ed. São Paulo, Sarvier, 1979. v. 2, Cag 21, p. 187-97.

2. SOBOL, S.M. - Benign tummos. In: THAWLEY, S.E. - Comprehensive managentent of head and neck twnors. Philadelphia, W.B. Saunders, 1987, v. 2, p. 1350-85.

3. BERTELLI, A.P. & FERREIRA, J.B. - Tumor misto do prolongamento faríngeo da parótida, Rev. Bras. Otorrinolaringol., 41:157-62,1975.




* * Professor Adjunto da Clínica de Otorrinolaringologia da Irmandade da Santa Casa de São Paulo e Chefe de Clínica do Departamento de Otorrinolaringologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo
*** Residente do Segundo Ano da Clínica de Otorrinolaringologia da Irmandade da Santa Casa de São Paulo
* Trabalho realizado na Clinica de Otorrinolaringologia da Irmandade da Santa Casa de São Paulo - R. Dr. Cescírio Motta Jr., 112 -CEP 01222.

Apresentado cano Tema Livre no XXIX Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia e XXI Congresso
Pan-Americano de Otorrinolaringologia realizado em Salvador, Bahia, de 30 de outubro a 4 de novembro de 1988.

Imprimir:

BJORL

 

 

 

 

Voltar Voltar      Topo Topo

 

GN1
All rights reserved - 1933 / 2024 © - Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial