Ano: 1989 Vol. 55 Ed. 2 - Abril - Junho - (6º)
Seção: Artigos Originais
Páginas: 79 a 86
O uso de um enxerto misto (hetero-homólogo) na reconstrução da cadeia ossicular
The use of a mixes hetero-homologous graft to rebuilt the ossiculax chain
Autor(es):
Fernando de Andrade Quintanilha Ribeiro*
Célia Regina Mauro**
Resumo:
Os autores apresentam um enxerto misto (hetero - homólogo) para a reconstrução da cadeia ossicular quando do comprometimento do martelo, ou da necessidade de sua retirada no ato cirúrgico.
O enxerto usado é constituído de uma base de "Plasti -pore" , onde se cola parte de um martelo homólogo.
A base sintética fica encaixada por uma pequena perfuração sobre o estribo, e o cabo do martelo em contato com a membrana, de forma mais anatômica possível, e sem o perigo das rejeições.
Demonstram também alguns resultados cirúrgicos e suas vantagens sobre outras técnicas utilizadas.
Introdução
Na eventualidade de depararmos durante uma timpanoplastia com a erosão do cabo do martelo ou com a necessidade de sua retirada para a cura de alguma doença, como no caso de colesteatomas ou timpanoscleroses, ficamos frente a um problema de difícil solução quanto à reconstituição funcional do ouvido médio. Sabemos que nos casos de destruição da apófise longa da bigorna, com presença do martelo e do estribo íntegros, uma interposição entre eles, da bigorna autó1oga, ou uma homóloga de banco, moldada em y, tem resultados muito satisfatórios. (Lopes Filho, O. - 1978).
Na ausência também do estribo, a interposição pode ser. feita entre a platina e o cabo do martelo, usandose do mesmo modo bigorna ou martelo devidamente moldado.
Para estas interposições podem também ser usados outros materiais como cartilagens ou materiais sintéticos como por exemplo o "Plastipore".
Mas, na ausência do cabo do martelo, as tentativas através de columelas sobre o estribo, de ossiculos homólogos ou cartilagens estocadas, apresentam resultados na maioria das vezes insatisfatórios funcionalmente. (Sheehy, J. 72).
Atualmente os melhores resultados têm sido obtidos - através do uso de próteses de material poroso sintético ("Plasti-pore"), as chamadas "P.O.R.P." ("Parcial Ossicular Replaciment Prosthesis"), quando da presença da supra-estrutura do estriibo. Estas próteses são de fácil manuseio, encaixando-se bem sobre o estribo e na membrana timpânica e nos dão a satisfação do resultado funcional adequado no pós-operatório recente. Mas apresentam também alguns inconvenientes, como o de serem muitas vezes rejeitadas pelo organismo e expulsas através da membrana timpânica, necessitando que entre eles se coloque materiais orgânicos como cartilagem, dura-máter, periósteo, osso etc. (Shea, J. 76), (Sheehy, J. 78), (Línden, 86).
Uma nova técnica usando-se discos de cartilagem autóloga ou homóloga com uma perfuração central e que se superpõem sobre o estribo até tocar a membrana, também apresenta resultados muito bons, dada à sua aceitação pelo organismo e sua posterior estabilização pelo revestimento mucoso que se processa tanto externamente ao conjunto de discos, como internamente pelo tubo formado por suas superposições. (Lopes Filho, O. 87). Como inconveniente temos o tempo gasto, necessário à sua confecção, durante o ato cirúrgico, e possíveis irregularidades por não constituírem corpo único.
Uma outra possibilidade é o uso de homoenxerto constituído da membrana, martelo e bigorna que seriam colocados no lugar dos do paciente.
Os resultados são muito bons, mas uma série de inconvenientes se apresentam:
1.° - Dificuldade de aquisição homoenxerto. Para isso, há necessi dade de um banco bem estruturado ~ pessoal bem treinado e peças retira das de cadáveres em condições especiais.
2.° - Esterilização e esiocage desses homoenxertos. Para sua posterior utilização, os homoenxertos têm que ser devidamente preparados através de soluções de formaldeído ou "Cialit". Usa-se para isso, inicialmente, a colocação da mastóide numa solução de formaldeído a 4% em pH 5,6.
A concentração a 4% tem papel esterilizante assim como polimerizante da estrutura fibrocolágena.
O pH 5,6 ácido provoca uma retração dos tecidos, mas para a miringe, cujo anulus está inserido no sulco timpânico, esta retração não ocorre. O pH 5,6 provoca também a retirada de uma camada superficial da membrana timpânica, a epitelial, desnecessária. A permanência da mastóide na solução deve ser ao menos de uma semana, não sendo necessária sua conservação no refrigerador.
Para a conservação do enxerto retirado usa-se soluções em pH 7.
A membrana retirada conserva uma certa rigidez decorrente da polimerização de suas proteínas, mantendo intacta sua anatomia. Como a dissecção do enxerto é feita em cuidados de assepsia, é necessária sua permanência em uma solução a 4% em pH 7, durante no mínimo dois dias. O pH neutro não mais influenciará na anatomia normal da membrana timpânica.
Para sua estocagem definitiva, o enxerto deverá ser colocado numa solução de formaldeído a 0,5% em pH 7 e guardado em geladeira.
3.° - Dificuldade em seu transporte. Como o homoenxerto está estocado em geladeira e num meio liquido, sua transferência para outros serviços é incômoda e complicada.
4.° - Dificuldade técnica. Para se colocar um homoenxerto total, ou com membrana, martelo e bigorna, necessitamos de uma timpanotomia ampla, com abertura da mastóide e do recesso facial, pois em caso contrário, num campo cirúrgico pequeno, corremos o risco de desarticular sua cadeia ossicular ou não temos uma visualização adequada para uma boa colocação sobre o estribo. (Chiossone, E. 1977).
Pensando nisto tudo, nas dificuldades apresentadas por cada um dos métodos descritos, nos propomos a apresentar um enxerto misto (heterohomólogo) que contenha as vantagens de estocagem, transporte e manuseio das próteses sintéticas, com a não rejeição dos enxertos homólogos.
Material e métodos
1. Do preparo do enxerto
O enxerto é composto de duas partes, uma de material sintético e outra de material orgânico.
1.1. O material sintético - Consiste num pequeno cilindro de "Plasti-pore" tendo em sua base uma perfuração. Para a sua confecção usa-se uma peça grande de "Plasti-pore" e com o uso de um bisturi ela é desbastada até se conseguir o cilindro no tamanho ideal. Com uma pequena broca de cirurgia otológica, faz-se uma pequena perfuração na base do cilindro onde futuramente será encaixado o capítulo do estribo.
Usamos este material por sua conhecida pequena antigenicidade.
Fig. 1- Cilindro de "Plasti-pore"
1.2. O material orgânico - É constituído de parte de um martelo homólogo. Este martelo é retirado de peças formolizadas de dissecção para treinamento de cirurgia otológica, de pessoas normais.
O martelo é limpo das partes da membrana timpânica a ele aderidas, e cortado com uma tesoura forte na altura da cabeça, um pouco embaixo do colo, de forma inclinada.
Fig. 2 - Altura do corte no martelo
Com uma lixa delicada, se dá um acabamento melhor, deixando-se a região do corte mais plana possível.
1.3. O enxerto - Temos portanto as duas partes do enxerto, o cilindro de "Plasti-pore" e parte do martelo.
Estas duas partes são coladas com uma pequena quantidade de "Super Bonder" de modo a dar ao enxerto uma configuração a mais próxima da anatomicamente normal. Para sua confecção levamos aproximadamente dez minutos.
Fig. 3-Enxerto montado
2. Esterilização e conservação
O enxerto assim preparado é colcado num recipiente de plástico (usamos o recipiente plástico dos tubos de ventilação já usados) e esteriliz do com óxido de Etileno. Com es esterilização e neste recipiente, prótese fica facilmente armazenada pode ser transportada por qualquel meio, para outros locais onde se utilizada.
3. Técnica cirúrgica
É a mais simples possível, não requerendo nada mais que uma aticotomia discreta para bem se visualizar o estribo. O enxerto é encaixado sobre seu capítulo, ficando bem estável, e mantendo o cabo do martelo numa posição na caixa muito próxima da posição original.
Fig. 4 - Enxerto montado
Fig. 5 - Posição do enxerto na caixa do tímpano
O "corpo" do enxerto, constituído do "Plasti-pore" e de parte da cabeça do martelo fecham parcialmente o ático, evitando com isso futuras retrações aticais da membrana. Após isso, completa-se a timpanoplastia pelos métodos usuais, usando-se enxerto de fáscia, pericôndrio, veia etc. No caso da membrana estar íntegra, a prótese fica tão estável que não há nem a necessidade do uso de "Gelfoan" para seu suporte.
4. Indicações
4.1. - Na erosão do cabo do martelo
Neste caso retira-se o que restou do martelo, assim como a bigorna, e processa-se como foi descrito.
4.2. - Na malformação congênita Nos casos onde a cadeia ossicular não se apresenta funcionante, quer por fixação, quer por desarticulação, e não se pode aproveitar o martelo, por estar malformado. Nestes casos, há necessidade do estribo estar bem formado e móvel.
4.3. - Nas timpanoscleroses
Quando da fixação do martelo no ático, juntamente com a bigorna, por grandes placas de timpanosclerose e que apenas sua mobilização não levará a resultados satisfatórios. Nestes casos, retira-se o martelo e a bigorna e coloca-se o enxerto sobre o estribo móvel.
4.4. -No colesteatoma
Quando da presença de colesteatomas aticais, que englobam parte da cadeia ossicular, deixando o estribo sem acometimento. Às vezes, mesmo com uma limpeza cuidadosa, fica-se em dúvida se toda a pele que envolvia a cadeia foi retirada. Não se acha necessária uma cirurgia radical, mas fica-se temerário de uma recidiva, que é muito comum. Nestes casos, a retirada do martelo e da bigorna do ático permite uma limpeza muito mais apurada do local, com risco muito menor de novo acometimento. A colocação do enxerto pode ser feita no 12 tempo ou posteriormente. Mesmo no caso da sua colocação no 1°- tempo, achamos aconselhável após 6 meses a um ano uma revisão cirúrgica através de tïmpanotomia.
4.5. - Nas lateralizações da membrana
Quando se depara com a lateralização da membrana timpânica que não se apresenta unida ao cabo do martelo e portanto num ouvido médio não funcionante. Pode-se preparar um enxerto especial, com o cilindro de "Plasti-pore" mais longo, fazendo-se com que o cabo do martelo do enxerto fique mais lateralizada, encostando portanto na membrana, com chances maiores de recuperação auditiva.
Resultados
A ausência do cabo do martelo ou a necessidade de sua retirada, dentro da cirurgia otológica, não é um acontecimento muito freqüente. Devido a isso, e à dificuldade que temos no nosso serviço de acompanhar certos doentes no pós-operatório nossa estatística não é muito elevada, mas já nos dá uma noção confiá vel dos resultados.
Obtivemos alguns resultado maus, como em qualquer outra técnica, a maioria esperados, pois durante o ato cirúrgico deparamos com estr' bos insatisfatoriamente móveis o fraturados, mas mesmo assim a usamos como tentativa única possível.
1. Quanto ao ganho auditivo: Audiometria de alguns paciente no pré e pós-operatório, apenas do ouvido operado e resumo suscinto cirurgia.CASO 1. V.R.S., 23 anos, fem., pac. consultório, 1983.
Perfuração total da membrana timpânica com erosão do martelo e bigorna. Timpanoplastia com retirada do martelo e bigorna.
CASO 2. F.A.M., 38 anos, masc., pac. consultório, 1983.
Membrana Timpânica aspirada e colabada, martelo erosado e mastáïde com granulomas de colesterol. Timpanomastoideclomia com retirada da bigorna e resto do martelo.
CASO 3. S.R., 18 anos, fem., Sta. Casa, reg. 8169136, 1984 e 1985.
Erosão do martelo e bigorna
Cirurgia em 2 tempos: Timpanomastoidectomia na primeira intervenção e reconstrução da cadeia ossicular num segundo tempo.
CASO 4. M.G.T.,11 anos, masc., Sta. Casa, reg. 0323376, 1985.
Colesteatoma atical com erosão do martelo e bigorna.
Mastoidectomia + aticotomia ampliada e colocação de enxerto de dura-máter.
CASOS. 5 I.A.P., 15 anos, fem., Sta. Casa, reg. B637440,1986.
Membrana Timpânica com ampla perfuração central e erosão de parte do cabo do martelo e bigorna. Timpanoplastia com retirada do martelo e bigorna.
CASO 6. L.S.S., 27 anos, fem., Sta. Casa, reg. 8601382, 1986 e 1987.
Erosão do martelo e bigorna.
Cirurgia em 2 tempos: Timpanoplastia na primeira intervenção com fechamento da perfuração e reconstrução da cadeia ossicular num segundo tempo.
CASO 7. E.M.P., 9 anos, fem., Sta. Casa, reg. B919952, 1987.
Rigidez de toda cadeia ossicular.
Retirado cabo do martelo e ramo longo da bigorna. Estribo não muito mdvel.
2. Quanto à rejeição
Os primeiros casos operados foram há 6 anos, não se notando nenhum caso de extrusão do enxerto até o momento.
Discussão dos resultados
1. Quanto ao ganho auditivo
Para se obter um bom resultado funcional, há necessidade de condições cirúrgicas adequadas, um estriibo integro e móvel, mucosa da caixa em boas condições e um retalho apropriado. Condições estas nem sempre encontradas.
Os melhores resultados são nas reoperações de timpanoplastias, quando a membrana está fechada e a mucosa normal, visualizando-se bem o estribo. Mas para não submeter o paciente a uma reoperação, o enxerto é colocado na maioria das vezes, no 12 tempo, com todos os inconveI nientes de um ouvido infectado.
Nos casos dos colesteatomas, preferimos sua colocação num segundo tempo, pois a perda auditiva obriga o paciente a uma revisão futura indispensável.
2. Quanto à rejeição
A não rejeição se deve a alguns fatores:
a. Quanto ao material utilizado - O "Plasti-pore", material plástico poroso é sabidamente um dos menos antigênicos dentre os sintéticos. E o cabo do martelo, por ser homólogo, é muito bem aceito pelo hospedeiro.
b. Quanto à sua posição na caixa - O cilindro sintético fica encaixado apenas na supraestrutura do estribo, com um contato muito pequeno com tecido mole (mucosa do estribo), onde por isso mesmo não se processa um quadro inflamatório importante; ele fica praticamente solto.no espaço aéreo da caixa do ouvido médio.
O cabo do martelo que fica em contato com a membrana timpânica, é incorporado como osso próprio do hospedeiro, parcialmente absorvido e parcialmente refeito, como ocorre nos homoenxertos. (Marquei, J.F., 1977).
Conclusões
Observamos que:
a) Com o uso do enxerto misto obtivemos resultados considerados bons, tanto quanto ao ganho auditivo quanto à não rejeição.
b) Sua confecção é rápida e não requer materiais especiais para isso.
c) Seu estoque e esterilização pelo óxido de etileno é prático e permite seu fácil transporte por qualquer meio.
d) A técnica cirúrgica empregada é simples e usual.
Summary
The authors show a mixed heterohomologous graft to rebuilt the ossicular chain when part of the malleus is missing or therés a need of its removal through surgery.
The graft consists of a plasti gore base where part of a homologous malleus is stuck to. The synthetic base is fitted through a small perforation on the stapes, and the manubrium of the malleus keeps in contact with the membrane, in an anatomic natural shape, avoiding rejection.
They also show some other surgical results and their advantages over other technics.
Referências bibliográficas
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2. Sheehy, J. - Surgery of Chronic Otites Media, Otolaryngology, Maloney: Harper & Row, Publishers, 1972. Vol. 1 cap. 10.
3. Shea, J. - Plasti-pore Total Ossicular Replacement Prosthesis - Laryngoscope 86: 239-240,1976.
4.Sheehy, J. - TORPS and PORS in Tympanoplasty. Clin. Otolaryngol. 3: 451, 1978.
5. Linden, A. - Reconstrução ossicular: uso d TORP e PORP com extremidade óssea. Re vista Brasileira de Otorrinolaringologia, 52 31-42,1986.
6. Lopes Filho, O. - Citado no Curso "Timpanoplastia em casos difíceis", durante o VI Congresso Brasileiro de Otologia. 1987
7. Chiossone, E. - Establishement of on E Bank. The ORL Clinics of N. Amer. 10 599-612,1977.
8. Marquet, J.F. - Twelve Years Experienc with homograft Tympanoplasty. The O.R.L. Clinics of N. Amer. 10: 581-593, 1977.
* Prof. Assistente da Clínica de Otorrinolaringologia
** Médica Residente da Clínica de Otorrinolaringologia
Trabalho realizado na Clínica de Otorrinolaringologia da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
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