Versão Inglês

Ano:  1950  Vol. 18   Ed. 5  - Setembro - Dezembro - ()

Seção: Notas Clínicas

Páginas: 111 a 117

 

CORPO EXTRANHO DO NARIZ E ACIDENTE DO TRABALHO (*)

Autor(es): DR. SILVIO MARONE (**)

O assunto da presente comunicação gira em torno de raríssimo caso de corpo extranho, por nós atendido na Clínica Oto-Rino-Laringológica da Faculdade de Medicina, no Hospital das Clínicas.

No dia 8 de Maio de 1950 foi-nos enviado pela Clínica Dermatológica e protocolado sob o número 89.153, para exame do nariz, o paciente Pedro José J., de 19 anos de idade, fundidor, com o seguinte motivo de consulta: "Lesões nasais, passado de protosifiloma e lues II mal tratados".

É claro que, diante desses dados, a primeira hipótese que poderia ser aventada era a de lues III em formação no nariz.

Na anamnese, o paciente informou-nos de uma infecção luética ha 3 anos, não rigorosamente tratada. Referiu ainda que no dia 10 de Dezembro de 1948, estando no seu trabalho diário de fundidor, foi vítima de explosão de alumínio em fusão, que lhe atingiu os membros superiores, a face, os olhos e o nariz. Foi socorrido e internado no Hospital Osvaldo Cruz desta Capital, onde foi tratado não só das queimaduras do corpo e face como também das oculares. Referiu que chegou mesmo a perder a visão de ambos os lados, mas que com o tratamento recuperou parcialmente só de um lado. Por essas lesões foi satisfatoriamente indenizado.

Aproximadamente 8 a 9 mêses após a explosão passou a ter mau cheiro do nariz percebido somente por terceiros, além de formação de crostas em ambas as fossas nasais e de obstrução esquerda. Não houve aumento de volume do nariz.

No exame, notámos na face, de ambos os lados, lesões cicatriciais antigas, superficiais algumas, outras escavadas, irregulares.

Ambos os olhos, além das lesões palpebrais semelhantes às acima descritas, apresentam as seguintes alterações: "A. O. Cicatrizes nas conjutivas tarsais superiores do O. D. Leucoma difuso vascularizado da córnea, mais acentuado em O. E. O. D.) iridectomia ótica externa e pterígeo ele reparação (Drs. Almeida Toledo e Toledo Piza).

Examinando as fossas nasais, notámos à D. na cartilágem quadrangular pequeníssima perfuração (aproximadamente do tamanho da cabeça de alfinete). Do lado E., o vestíbulo nasal apresentava-se cheio de secreção crostosa amarelo-esverdinhada. Eliminada, visualizou-se na parede lateral formação esbranquiçada, fina, lamelar e encurvada, com o aspecto e na posição do corneto inferior.

(A hipótese da lues parenquimatosa ainda poderia manter-se, pois tal achado bem podia ser sequestro ósseo, de origem luética, do corneto inferior).

A princípio procurámos retirar essa formação coai pinça comum, sem contudo ser possível. Entretanto, ao toque o ruído pareceu-nos metálico.

Maior limpeza local permitiu-nos verificar que, de fato, estávamos diante de corpo extranho de natureza metálica. A sua retirada com instrumentário comum não foi conseguida, pois se apresentava aderente às formações anatômicas e era de grande comprimento. Fazia-se, portanto, necessário remoção com anestesia local. Em vista disso, internámos o paciente.

Em anamnese mais cuidadosa, obtivemos mais os seguintes dados de importância para a compreensão do achado.

A profissão do paciente era de ajudante de fundidor. Trabalhava em fundição de alumínio. A sua função consistia em segurar conquilha (reciipente de fórma de concha que recebe o metal em fusão, para que possa ser, em seguida, derramado em outros recipientes menores que lhe clarão a fórma desejada).

No dia do acidente, ao iniciar-se o trabalho, quando foi o metal derramado na conquilha que o paciente segurava,houve grande explosão, certamente devida à grande diferença de temperatura entre o frio da conquilha e a alta temperatura de fusão do alumínio que é de cerca de 660 graus.

O alumínio líquido assim lançado atingiu a grande altura (mais ou nonos 5 metros) apanhando o paciente e produzindo-lhe as lesões citadas.

(Quanto às lesões oculares, procurámos posteriormente o oculista que o socorreu e que nos referiu ter retirado dos globos oculares, aderente à conjuntiva; e córnea, de ambos os lados, numerosas pequenas placas de alumínio c que, de fato, o paciente apresentou temporariamente perda da visão de ambos os olhos tendo-a recuperado parcialmente de um lado).

Com esses (lados anamnésicos e diante do achado clínico, não havia dúvida agora de que o paciente era portador ele corpo extranho na fossa nasal, de natureza metálica. Restava somente saber o tamanho (lesse corpo extranho, o que sem duvida nos provocava grande ansiedade.

A radiografia (Fig. 1) mostra-nos lis( fossa nasal esquerda corpo extranho de densidade aos RX. semelhante aos metais, de fórma mais ou menos regular, lamelar, ocupando a metade inferior da cavidade.

Como tal corpo extranho se apresentava maior que o diametro longitudinal cio meáto narinário - motivo por que não o pudemos remover no ambulatório - e sendo ainda de borda lisa, cortante pois, procurámos anestesiar a narina E. com infiltração de novocaina, e, com o espéculo nasal e pinça de Brünings estariamos habilitados a removê-lo.



Fig. I - Assinalado, na fossa nasal E, o corpo extranho. Discreta opacidade do seio maxilar correspondente.



Realmente, não foi difícil a sua retirada, embora se notassem bridas cicatriciais envolvendo-o na parte mediana, mas facilmente desfeitas. Discreta perda de sangue.



Fig. 2 - Corpo extranho da fossa nasal, tamanho natural.



O corpo extranho (Fig. 2) é uma placa de alumínio medindo 6 cmt. de comprimento por 2 cmt. de altura, de superfície piais ou menos regular, lisa, - a que se achava aderente ao septo nasal - e outra irregular na qual é facil reconhecer os contornos de um corneto. A extremidade inferior apresenta-se encurvada correspondendo ao assoalho do nariz. A extremidade posterior apresenta-se globosa, como gota, fazendo supôr que tal porção estivesse prestes a se derramar no naso-faringe quando se solidificou. Como se vê, a placa de alumínio modelou bôa porção da fossa nasal.

Continuou o paciente por mais três dias no Hospital, sendo-lhe feito curativos externos e administrado penicilina 200.000 unidades por dia. Somente por ocasião da retirada do corpo extranho é que a temperatura se elevou a 37,8°.

Quando da alta, notámos que a mucosa da fossa nasal E. apresentava evidente processo cicatricial derivado da queimadura. Não se verificou, porém, destruição das demais formações anatômicas, a não ser a perfuração da cartilagem quadrangular já descrita.

As funções olfativa e respiratoria, repetidamente examinadas, voltaram ao normal, mesmo do lado esquerdo.

COMENTÁRIOS

O presente caso constitue, sem dúvida, achado excepcional, pois tanto a literatura oto-rino-laringológica, como a infortunística, compulsadas, ramais registraram um casa siquer.

O seu estudo permite-nos comentários curiosos.

Nas fossas nasais, decorrente de acidente do trabalho, raros são os corpos extranhos que aí possam penetrar. Tal se deve não só à pequena abertura das narinas, como tambem porque estas se acham voltadas para baixo, o que lhe diminue grandemente a exposição.

Encontram-se no nariz, numa extensão maior ou menor e sempre em ambas as fossas, pós metálicos em trabalhadores em ambientes que conteem, em suspensão, tais partículas (oficinas mecânicas, etc.). Nesses casos, bem como nos trabalhadores de tecidos, de substancias químicas ou britadores, vamos quasi sempre encontrar não só grande depósito dos respectivos pós, como também perfuração do septo cartilaginoso e consequentes complicações. Tem sido este um dos problemas que a Higiene industrial procura resolver, em parte pela precipitação elétrica das partículas em suspensão, ou pela proteção das vias respiratórias superiores com mascaras especiais.

Outro aspecto interessante do caso é o relativo à resistência da mucosa nasal a altas temperaturas.

Sabido que o alumínio funde a cerca de 660 graus e que nesse estado penetrou no nariz, era de se esperar que a cavidade nasal se apresentasse destruida. Entretanto, a não ser a pequena perfuração na cartilagem quadrangular e o processo cicatricial na mucosa, decorrente da -queimadura, nada mais de anormal foi encontrado. Os elementos anatômicos nasais macroscópicos estavam presentes. E note-se: não resta dúvida de que um corpo extranho de tais dimensões (maior que o eixo longitudinal do nariz) só poderia ter entrado em fusão, o que ainda é confirmado pela forma com que a lamina se modelou na cavidade nasal.

Além disso, a função olfativa, após a extração, não se alterou, confirmando a não existência de lesões anatômicas. Mesmo pequena foi a reação sinusal, como se pode, verificar pela radiografia.

Nesses trabalhadores são tais e tantos os distúrbios locais e gerais que imediatamente os levam a queixar-se, e, si medidas higiênicas não forem tomadas, logo abandonam os serviços. Em certas fábricas, constitue este problema de contínuas levas de novos operários séria questão às empresas empregadoras, as quais não teem poupado esforços no sentido de evitar quaisquer malefícios aos seus trabalhadores

Forçoso é convir em que nem sempre ha correspondência entre os esforços por parte do patrão e do operário, o que depende, sem dúvida, do nível mental deste.

A solução mais facil que ocorre ao trabalhador, quando percebe que alguns malefícios começam a instalar-se, é o abandono do emprego. Si, entretanto, já surgiram distúrbios, recorre à proteção da Lei.

Tal se deu com o operário do presente caso. Acidentado, foi logo socorrido e devidamente indenizado pelas lesões sofridas. Entretanto, existia nele outra anomalia consequente ao mesmo acidente e que, uma vez não relatada, não foi pesquisada pelo médico que o atendeu. Assim ficou durante 16 mêses. Procurou, depois desse tempo, no Hospital das Clínicas o Departamento de Dermatologia e Sifiligrafia, por ser portador de lues antiga, para tratar-se desta e não propriamente pela disfunção nasal que certamente já existia durante todos aqueles mêses, acarretando-lhe obstrução nasal E., com secreção catarral abundante e fomação de crostas fétidas.

Mesmo admitindo-se, como o paciente nos relata na anamnese, que os distúrbios referidos só surgiram 8-9 mêses após o acidente, o que pode ser contestado (pois um corpo extranho do nariz imediatamente produz tais consequências), mesmo admitindo-se como verdadeiro, ainda resta para avaliarmos o nível mental desse doente o fato de que suportou todo o desconforto no nariz durante os 7-8 mêses restantes, só procurando um Hospital por outro motivo. De fato,o nível mental desse paciente era baixo.

Surge agora outra questão de grande importância:

Caberá ao operário indenização pelos distúrbios ocasionados pelo corpo extranho do nariz?

Atente-se bem que não se diz reais outra indenização. Embora o acidente tenha sido o mesmo a lhe ocasionar as queimaduras do corpo e perda da visão - de que foi indenizado - ainda lhe acarretou distúrbios e outros decorrentes do corpo extranho da fossa nasal, de que não foi indenizado.

O valor da indenização é proporcional aos malefícios que o acidente ocasionar. Quanto reais numerosos forem êstes tanto maior será aquele.

No caso, o grau intelectual do paciente não permitiu referisse ele essas outras disfunções, escapando assim ao médico. Todavia, os malefícios e a sua causa persistiram; e o paciente só 16 mêses após, esporadicamente, é examinado e só então foi o caso solucionado.

Si o corpo extranho do nariz tivesse sido encontrado por ocasião dos primeiros socorros, somar-se-ia às indenizações dos acidentes ocular e cutâneo mais esta nasal. Como tal não se deu, cabe-lhe, pois, a referida indenização.

Na correspondente classificação dos danos, uma vez que as perturbações nasais perduraram 16 mêses são rotulados de permanentes e parciais.

Pode ainda o presente caso ser encarado sob o ponto de vista deontológico.

Cabe ao médico que descobriu um corpo extranho que determinava a um operário distúrbio funcional de carater permanente, relatar-lhe a sua existência - sem que com isso haja violação do segredo profissional?

Note-se que tal médico não se achava, no momento, investido das funções oficiais de perito e que o paciente, aproveitando-se dessa revelação poderá habilitar-se à indenização a que tem direito.

Somos de parecer que deve o paciente estar ao par desse fato mesmo aconselhado a que defenda o que ainda lhe é devido.

Não ha aqui, pensamos, revelação do segredo profissional, pois dizendo e instruindo um paciente de tal nível mental de que o corpo extranho do seu nariz, que tantos disturbios respiratórios e olfativos lhe ocasionou, ainda lhe permite receber a indenização a que tinha e continua a ter direito, informando, pois, isto ao -paciente, estamos em primeiro lugar contando ao doente a anomalia de que ele era portador (o que tem direito a saber todo doente que procura médico); em segundo lugar, sabedor ele de que era portador de corpo extranho do nariz, isto não acarretará malefícios nem a ele próprio nem a terceiro. E principalmente, assim agindo, auxiliamos a prática da justiça, e nos colocamos dentro do espírito da Lei dos Acidentes do Trabalho, que é de proteção ao operário. Deve, portanto, o paciente ser informado e instruido, como, de fato, o foi.

Vê-se, por aí, a quantos comentarios curiosos pode dar lugar um achado ocasional de corpo extranho do nariz. Comentários de ordem clínica, infortunística e principalmente deontológica, permitindo-se ajuizar quão importantes são os conhecimentos dessas Ciências e a sua contínua aplicação em Clínica.

RESUMO

O A. apresenta um caso interessante e raro de corpo extranho metálico (alumínio) da fossa nasal, originário de acidente do trabalho. Tece comentários de ordem oto-rino-laringológica, infortunística e deontológica.




Dr. Sílvio Marone
Rua Joaquim Antunes, 162
São Paulo - Brasil.

(*) Trabalho apresentado na Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de S. Paulo em 14 de Junho de 1950 e no Departamento de O.R.L. da Associação Paulista de Medicina em 17 de Julho de 1950.
(**) Assistente da Clínica Oto-Rino-Laringológica da Faculdade de Medicina e do Hospital das Clínicas de São Paulo.

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