Ano: 1950 Vol. 18 Ed. 5 - Setembro - Dezembro - (2º)
Seção: Notas Clínicas
Páginas: 104 a 110
TOXICOSE OTOGÊNICA - OBSERVAÇÃO E COMENTÁRIO (*)
Autor(es): DR. FRANCISCO DE PAULA PINTO HARTUNG
Resume-se assim a observação.
C.B.A.C., de 7 mêses de idade nos é enviado por um pediatra que suspeitava dos condições de seus ouvidos. O caso revestia-se da gravidade, pois que a criancinha dias antes estivera muito intoxicada. No começo, havia impressão de gripe. Melhorara, para depois se apresentar outra vez com bastante temperatura acompanhada de diarréia e vómitos.
Com o tratamento adequado, penicilina e 200 cc de transfusão de sangue, parecia melhorar, quando o pediatra suspeitou que os ouvidos estivessem comprometidos, principalmente o direito. Por isso nos enviou o pequeno doente para o exame otológico, em vista da gravidade dos fenómenos tóxicos que apresentara.
Ao nosso exame apuramos que de fato um dos ouvidos era sensível à pressão no tragos. Apezar da sensibilidade própria ele uma criança assim doente, concluímos ser o Vachez positivo à direita. À esquerda, porém, não se percebia grande protesto do pequeno doente, mesmo sob um Vachez desdobrado, quer dizer, comparando o resultado da pressão no tragus com outra em qualquer ponto, como costumamos fazer em emergências semelhantes.
Otoscopia fácil, visto não se tratar de criança muito tenra. Sem haver congestão, ambos os tímpanos se apresentavam sem brilho, sem reflexo e embaçados.
Paracentese imediata bilateral, dados os comemorativos do caso, com a criança intoxicada. Banhos de luz em ambos os ouvidos, com a recomendação de que em casa se continuasse com as aplicações quentes, além de algumas gotas de otalgan.
Depois destas paracenteses e recomendações, não mais vimos a criança, não obstante havermos pedido aos pais que com ela voltassem ao consultório.
Como não aparecesse, quatro dias após telefonamos ao pediatra indagando da sua ausência. Que não houvera mais necessidade, esclarece êle, pois que os sintomas de intoxicação se haviam desanuviado por completo. A começar pela temperatura que caíra ainda no mesmo dia das paracenteses.
Esta observação, como muitas outras congêneres que já temos relatado em anos anteriores, apezar de sua simplicidade e desfecho tão banal, a nós reavivou um interêsse antigo, pois que justamente naquele dia compulsávamos um relatório de um congresso de pediatria reunido em Paris em junho do ano passado, redigido por Bastin, Lewensque e Lafourtade, congresso êsse em cujas sessões plenárias foi de novo abordado e discutido o velho tema das otites latentes na patogenia das toxicoses, cuja essência de concepção, nem sempre é aceita pelos pediatras e otologistas.
A sua leitura nos chama à meditação. É fato que não devamos aceitar as opiniões cientificas que não tiverem a extrutura do conceito da contraprova de Claude Bernard. Todavia, não há dúvida que, no caso em apreço, si o pediatra, por êle responsável ficasse filosofando si os derrames encontrados em crianças mortas de toxicose significam realmente urna infecção ou são apenas resultado de hipostase cadavérica, perderia êle a última oportunidade que teria de mandar o pequeno doente para algum otologista, recomendando e insistindo na paracentese, à mais remota que fosse a suspeita otiátrica.
Aliás é fácil de compreender a diversidade de opiniões. já tivemos ocasião de apresentar uni "mise au point" colhido da literatura francesa, alemã, americana e inglesa. De fato, concluímos nós, em apreciação geral, a otite latente encerra um problema muito difícil, complexo e de muitas incógnitas, e por isso a sua solução é sujeita a paixões e exageros, desafiando por vezes a capacidade clínica do pediatra e o tecnicismo semiológico do otologista.
Realmente, o episódio é frequente. Daí a sua importância e vulto. O médico de criança apela para a nossa colaboração, no sentido de auxiliar a elucidação de certos casos cuja complexidade é manifesta.
São pequeninos enfermos ainda lactentes, com temperatura, vómitos e diarréa, que se desidratam coai rapidez tal a intensidade destes sintonias, e que apezar das medidas dietéticas e terapêuticas adequadas completadas com transfusões, ameaçam de entrar em caquexia e coma, tal a violência das perturbações dispépticas e gastro-intestinais.
Convencido o clínico por isso que haja uni foco parenteral em cena, como ponto de partida para a intoxicação do pequenino doente, e suspeitando das condições do ouvido médio, pois que muitas vezes nestes casos supura expontânea e concomitantemente a caixa do tímpano durante a sua evolução, o pediatra se socorre do seu colega otologista, certo de que os seus recursos especializados poderão auxiliar a armar a equação do citado problema da toxicose e desvendar, com segurança, as suas incógnitas.
Acontece porém, e grande número de otologistas reconhece as suas dificuldades, nem sempre dispõem êles desses elementos semiológicos para oferecer uma resposta segura ao seu colega pediatra. Daí os esforços para solucionar os casos deste gênero por mio da radiologia, como já assinalamo em trabalho anterior, uma vez que falha com frequência o sinal de Vachez, que o conduto auditivo, já por si, de calibre reduzido, descamado, cheio de crostas, por vezes com restos ainda desecados da vida intrauterina, não é propício ao exame de uni tímpano, em declive, que a vista desarmada ou sob os vidros de aumento, posto que aprentemente normal, não oferece nesta idade garantia absoluta de integridade da caixa, como tão bem prova a experiência. A nosso ver, é esta uma realidade à qual não podemos fugir, quando examinamos os ouvidos de um pequenino enfermo que vomita e evacua com grande frequência, que se desidrata e perde peso em alarmante celeridade, e que já intoxicado e pálido, talvez entrando em coma não tem meios de nos revelar que o seu ouvido doe, e que por isso não se alimenta recusando o seio ou a mamadeira.
Este é um quadro triste que se nos depara com frequência e que já temos focalizado em outras épocas. Si o retomamos e insistimos, mesmo na era das sulfas e penicilina, será porque apezar do progresso admirável da quimioterapia e cia ação maravilhosa dos antibióticos, ainda continuamos a presenciar cenas às quais não temos o direito tomar posição de simples expectadores, rebatendo para o pediatra que para nós apela a completa responsabilidade da evolução do caso.
Na verdade estamos na obrigação de nelas tomar parte ativa, principalmente o otologista brasileiro, que bens sabe da alta percentagem de mortalidade infantil em nossa terra, em cujo grande coeficiente letal que figura nas colunas estatísticas de simples diarreas infantis deverá influir pesadamente o contingente obscuro dos fatores parenterais que se superajuntam à pobreza, atrazo e falta de assistência médica e hospitalar.
Todos os especialistas de otologia muito se ufanam do admirável progresso do seu setor de medicina, depois que se vulgarizou o uso da luz refletida, facultando assim autonomia ao seu departamento. Foi depois do espelho frontal que se conseguiu distinguir com segurança uma otite externa difusa, de um abaulamento do conduto resultado de pressão e edema proveniente dos processos mastoideos. Todavia, forçoso é obtemperar, si a otoscopia no adulto permite considerar que uma perfuração de Shrapnell, pode fazer sujeitar Lima fossa média do crânio, ou verificar que uma perfuração marginal posterior coincide com um calafrio de uma septicemia sinusal, na criança pequenina, é muito difícil pelas causas próprias que já expuzemos, afirmar convicta e sinceramente ao pediatra que o ouvido do doentinho está indene, e que êle deverá procurar em outros pontos do organismo eventuais focos de infecção parenteral como causa da febre, dos fenómenos dispépticos, da diarrea e desidratação.
São estas as ideas que tivemos de relembrar, já expostas em sessões anteriores, mas que se articulam com as conclusões do relatório citado, súmula do Congresso de Pediatras de Língua Francesa. Veremos que ideas já antigas, não obstante os esforços e progressos da terapêutica e da radiografia, em nada perderam de seu significado, e devem ser atualizadas porque continuam vigentes. Não só a paracentese, como a antrotomia ainda são recomendadas como elementos semiológicos correntes na luta contra as grandes intoxicações da primeira infância.
Começam os relatores do citado congresso ressaltando a enorme importância das otites e otomastoidites na etiologia das toxicoses infantis.
Dizem êles ser uma constatação antiga de uma supuração bilateral do rochedo, em grande maioria de casos de crianças mortas em estado tóxico. Esta velha constatação de necropsia à qual Parrot e os clínicos de seu tempo deram pouca importância, julgando que a otite fosse um enxerto tardio na atrepsia ou hipotrofia anterior, ficou assim interpretada como simples resultado da caquexia, que gerava tambem outras infecções superficiais. Esta opinião foi mais tarde contrariada por Babillon e Renaud, dois autores que, se ocupando do assunto, inverteram por completo a interpretação dos fatos. Segundo êles, a infecção das vias aéreas superiores, complicada com otite e mastoidite, era a causa principal das atrepsias e estados tóxicos dos pequeninos doentes. Esta opinião, pouco seguida na época em que foi formulada, posteriormente foi abraçada por Guillot, Ramadier, Ribadeau Dumas, que assim se exprimiam. Partindo da constatação que uma otite exteriorizada do lactente, é clinicamente responsável por muitos maus estados digestivos agudos, que não saram senão depois de uma paracentese concluíam êles que, a presença de uma otite ou mastoidite de forma latente pode ter repercussão sobre a nutrição da criança doente.
Na opinião de Ribadeau Dumas, Chabrun e Fenard, a observação dos casos de toxicose leva às seguintes conclusões:
I. Quando em um lactente, atingido recentemente por uma otite, se vê, a despeito da paracentese e dos cuidados médicos, instalar-se um estado tóxico ou uma atrepsia, ficamos autorizados a praticar uma antrotomia, si alguma outra fonte não for evidenciada.
II. Quando um lactente é atingido por um síndrome tóxico ou uma atrepsia, si o exame clínico não demonstrar fator algum capaz de explicá-los, ficamos autorizados a praticar uma antrotomia mesmo que a otoscopia e a paracentese não tenham demonstrado sinal algum de otite.
(Comentário nosso: é bom notar o radicalismo e convicção dos autores citados).
A primeira das duas contingências traduz a noção de uma mastoidite latente: otite conhecida, mastoidite porém, sem sinais e corresponde a 85 % dos casos.
A segunda corresponde à idéia de unia mastoidite oculta, no curso da qual nenhum sinal otoscópico permite afirmar o comprometimento do ouvido médio: corresponde a 11 % dos casos.
Restam ainda 4 % nos quais são evidentes os sinais de otite ou de mastoidite.
Cada uma das tres contingências clínicas, na opinião do relator, deverá definir uma atitude peculiar por parte dos especialistas. No primeiro caso, diz êle, de mastoidite latente, o otologista faz o diagnóstico de otite, mas é o pediatra, por si só, que decide da oportunidade da antrotomia.
No segundo caso, de otomastoidite oculta, tambem o pediatra opinará tanto da parecentese como da antrotomia.
(Aquí, de novo, abrimos parentesis para comentário. É provável que algum otologista muito dignamente cioso de autonomia de nossa especialidade se insurja contra o relator pediatra, julgando insólita a sua atitude de irreverência contra a otologia. Compreende-se. Todavia é mistér concordar que a otite latente dos pequeninos doentes, em sua dramaticidade, por vezes transpõe o campo de cultura dos sectores especializados por exigirem perfeita perspectiva clínica de conjunto e nitidez filosófica de medicina, tal a sua importância, gravidade e transcendência).
No terceiro e último caso, quando são manifestos os sinais clássicos, o otologista independentemente, deverá opinar no sentido de operar ou não.
Como que juxtapondo ao que dissemos no parentesis, continua assim o relator. "Uma resistência muito séria opõem os otologistas que não podem admitir que uma mastoidite possa evoluir sem denunciar nenhum sintoma clássico".
Um grande número deles se apega à idéia de pequenos sinais anormais no tímpano, enquanto que outros apelam para a punção do antro. De qualquer modo, diz ainda o relator, si é verdade que pediatra algum possa jamais dispensar o auxílio do otologista, tambem é verdade que não se pode esperar em tais casos pelo aparecimento de sinais clássicos de mastoidite, porque então poderá ser demasiadamente tarde.
Convem agora, para terminar, apresentar corri certo detalhe, o quadro clínico de toxicose engastado na moldura que lhe prepararamos relatores do congresso assinalado, pois que as suas idéias traduzem uma concepção que nunca tínhamos encontrado em outros autores que se ocuparam da matéria.
Segundo eles, esta rino-oto-mastoidite (vê-se que ele dá mais amplitude ao processo inflamatório), é unia moléstia que pode atacar a criança em qualquer idade, mas não gera um estado tóxico antes dos 5 mêses. (Comentário nosso: tentos encontrado inúmeros casos de toxicose em crianças bem mais tenras. Aliás acima de 5 mêses, o problema já não é tão difícil, pois que a otoscopia é bem aproveitada).
O início da moléstia, continua o relator, é bem manifesto, mas sem sintomas de grande alarme: queda de peso, vômitos e diarréia. Nunca se instala uni estado de hipertoxidez desde o início. Si isto se der, deverá haver urna gripe ou encefalite, pois que segundo êles a otomastoidite é encontrada em tres grupos de moléstias:
I. Nas rinofaringites a piógenos banais.
II. Nas moléstias epidêmicas agudas, nitidamente neurotóxicas, como a gripe hipertóxica ou gripe cerebral ou encefalite.
III. Em um tipo de moléstia sub aguda, que o autor qualifica de faringite neurotóxica sub-aguda essencial, e que ataca as crianças depois de 5 mêses.
Eis porque dizem os autores, só ha chance de curar cirúrgicamente tais doentinhos intoxicados, quando se trata de rinofaringite a piógenos banais. Nas outras duas contingências, a operação de antrotomia, não só não dá resultado, como pode até prejudicar o pequenino doente. Foi o que se deu em Paris em 1945 durante uma epidemia de gripe. A porcentagem de cura de crianças intoxicadas e operadas que era de 67 %, baixou para 44 %, devido à concomitância de encefalite de carater gripal.
Assim se compreende terminam os relatores, que o fator etiológico da mastoidite tudo domine, o sucesso como o fracasso da cirurgia ótica na tentativa de solucionar os casos de toxicose infantil.
Na otomastoidite simples, dizem êles, constata-se um estacionamento do peso da criança, entre os 8 e 10 dias de moléstia, em seguida a atrepsia se instala progressivamente. Um fato capital, acrescentam, é ser leve a hipertermia, contrariamente aos grandes estados cerebrais.
(Comentário nosso entre parentesis: esta última asserção deve ser recebida sob reservas. Temos assistido a muitas intoxicações otogênicas sob fortes hipertermias).
Em sua parte final os relatores expõem sucintamente qual a conduta que seguem nos dias de hoje, com os admiráveis recursos terapêuticos dos antibióticos. Logo que a criança adoece sob o aspecto em questão, prescrevem penicilina. Si, em dois dias não se manifestarem melhoras, indicam sistematicamente paracentese bilateral. Decorridos mais dois dias, si ainda não houver melhora, sem esperar pelo aparecimento de sintomas tóxicos, indicam uma anirotomia larga bilateral, com sondagem do aditas ad antrum e zigoma.
Este esquema final é por nós transcrito para revelar o extremismo de idéias apresentadas ao aludido congresso, que aliás coincide com a atitude de outras autoridades, por nós citadas no passa do, de outros centros científicos estrangeiros. Não queremos dizer que sigamos sempre este radicalismo, ou que pretendamos doutrinar sobre a matéria. Apenas, com mais esta observação desta noite, prestamos o nosso depoimento sôbre o que temos visto no drama da toxicose infantil, pois que em ocasiões inúmeras temos nele parte ativa.
Eis porque compreendemos o radicalismo arrojado destes relatores, uma vez que conhecemos o colorido sombrio do quadro da toxicose infantil esbatido na nebulosidade do seu fundo otogênico.
Daí a insistência e interêsse por êle, no receio de que as nossas hesitações e dúvidas científicas culminem com a dramática retirada do pequenino enfermo de seu berço, para ser conduzido tristemente á mesa de autópsias do necrotério. Agora infelizmente, o aparecimento de um eventual corrimento do ouvido, em nada mais importará. Poderá, é verdade, suscitar digressões academicas e culturais sobre a verdadeira etiopatogenia da toxicose, mas será tarde demais para auxiliar o pequenino doente que ainda ha pouco clamava por socorro, na esperança de que auxiliássemos a conservar uma existência que apenas se lhes acabava de aflorar.
(*) Apresentado à Secção de Oto-rino-laringologia da Associação Paulista de Medicina, em reunião realizada em 17-8-1950.