Versão Inglês

Ano:  1995  Vol. 61   Ed. 5  - Setembro - Outubro - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 373 a 377

 

REFLUXO GASTROESOFÁGICO E SINTOMAS OTORRINOLARINGOLÓGICOS.

Gastroesophageal Reflux and Ear Nose and Throat Complaints.

Autor(es): Onivaldo Bretan*,
Maria Aparecida C. A. Henry**.

Palavras-chave: Refluxo gastroesofágico, otorrinolaringologia-investigação

Keywords: Gastroesophageal reflux, otolaryngology-investigation

Resumo:
O refluxo gastroesofágico é doença freqüente e que pode manifestar-se através de queixas localizadas na esfera da otorrinolaringologia. Distúrbios gastroesofágicos, em geral, podem estar também associados a sinais e sintomas referidas na faringe, laringe e pescoço, principalmente. Discutem-se as particularidades do refluxo, os mecanismos de ação e relata-se caso associado a disfagia importante. O diálogo entre o otorrinolaringologista e o gastroenterologista é ressaltado.

Abstract:
Gastroesophageal reflux and other gastroesophageal diseases produce symtons in head and neck region leading individuals to search for ear nose and throat consultation. Otolaryngologist may incorporate investigation of reflux in your daily practice. Comments of gastroesophageal reflux and head and neck complaints are dope. To illustrate handling of patients suspected of reflux authors relates a case of a dysphagic patient. Close relations ship between otolaryngologist and gastroenterologist in reflux investigation is emphasized.

INTRODUÇÃO

O refluxo gastroesofágico (RGE) acomete número significativo de pessoas e está associado a diversas causas básicas, que vão desde fatores anatômicos1, 2 a hábitos alimentares, drogas em uso etc. É, na verdade, processo esfíncter inferior do esôfago, a habilidade do esôfago em retirar o material do refluxo, o desempenho do estômago quanto à secreção gástrica, volume e esvaziamento, o potencial do refluxo em lesar a mucosa do esôfago e a resistência intrínseca desta mesma mucosa3, 4, 5, 6.

Sinais e sintomas referidos nas vias aéreas e digestiva superior, e em outros segmentos referentes à esfera otorrinolaringológica, podem estar associados à presença de RGE, levando a queixas variadas: garganta seca, queimação ou dor de garganta, sensação de engasgo e ou sensação de aperto na garganta, disfagia, odinofagia, hematêmese, salivação excessiva, sensação de. algo estranho na garganta, otalgia, aspiração, tosse, mau hálito, dor cervical, alteração de voz, queimação oral, deglutições repetidas, aerofagia7. Sintomas laríngeos podem levar um indivíduo ao Otorrinolaringologista, cujo exame poderá revelar alterações, como úlcera de contacto na glote, granuloma laríngeo, edema de aritenóides e ou do terço posterior tias cordas vocais, estenose subglótica e laringite hipertrófica7, 8. Pacientes com queixas faríngeas poderão apresentar alterações diversas na oro e hipofaringe ou, eventualmente, nada poderá ser encontrado. Neste. caso, suspeita-se de esolagite com irradiação dolorosa para o segmento superior da via digestiva graças à inervação sensitiva comum. O objetivo do presente trabalho é o de fornecer informações, traçar comentários e expor nossa experiência corri pacientes cujas queixas ORL podem estar relacionadas à presença de refluxo gastroesofágico.

As queixas clássicas em portadores de refluxo são: dor cm (Inclinação retroesternal e ou no epigástrio e regurgitação pós-prandial, favorecida pelo decúbito ou inclinação do tronco. A queimação também pode ser referida atipicamente no pescoço, nas costas e no licito. Disfagia alta associada ou não á odinofagia é sintoma menos freqüente. e pode estar associada ao RGE. Ambos sintomas apontam para distúrbios ou no esfíncter superior do esôfago (ESE), ou na faringe. Aliás, quando a disfagia ocorre na região do esfíncter, o paciente aponta exatamente para a região do pescoço correspondente à cartilagem cricóide. Inflamação e ulceração esofágica também produzem estes dois sintomas, embora sua localização seja imprecisa. Alteração da peritalse esofágica, primária ou secundária ao refluxo, hérnia de hiato e baixa pressão do esfíncter inferior do esôfago (primeira barreira ao refluxo) são freqüentas rios portadores de RGE6, 8.

A literatura internacional, desde há (irias décadas tem vinculado estudos relacionando alterações de vias aerodigestivas altas com refluxo. Existem provas clínicas e experimentais de alterações laríngeas-produzidas por RGE9, 10, 11. Distúrbios da motilidade esofágica e hérnia de hiato foram encontradas em associação corri RGE c com sinais e sintomas otorrirrolaringológicos. Estudos também têm investigado a interferência do RGE na fisiologia tio ESE12, 13. Haveria resposta do ESE com aumento de sua pressão de repouso, pressão esta mantida às cristas da contração permanente do músculo cricofaríngeo. Liste aumento da pressão de repouso (hipertonia) seria o mecanismo de, defesa exacerbado, já que o papel atribuído ao esfíncter é o de ser urna barreira à aspiração do conteúdo gástrico para as vias aéreas. As duas barreiras ao RGE, i.e, os esfíncteres inferior (IRE) e superior do esôfago (ESE), são vencidas em determinadas situações que, se muito freqüentes, levam aos referidos sintomas. Embora alguns trabalhos experimentais e clínicos divirjam nos resultados, a balança pende a favor da relação direta entre refluxo gastroesofágico e hipertonia do ESE14, 15, 16, 17, 18. O refluxo, agindo diretamente na faringe, ou provocando reação hipertônica do músculo cricofaríngeo, pode ser o responsável pela sensação faríngea conhecida corno globo histérico ou faríngeo6, 19. Os estudos, entretanto, ainda são divergentes20, 21. Refluxo, aliás, não é raro em indivíduos tensos.

Como suspeitar que alguém, com queixa otorrinolaringológica tenha RGE corno causa básica? Antes de mais nada, o RGE deve ser incorporado à lista de doenças que o especialista tem em frente ao fazer o diagnóstico diferencial. Artigos em revistas e palestras cm Congressos devem procurar difundir o conhecimento sobre esta doença. A anamnese procurará obter informação sobre as queixas clássicas associadas ao RGE. Entretanto, alguns pacientes poderão não apresentá-las, manifestando-se o RGE apenas através de sinais e sintomas- da esfera ORL. tini bom interrogatório dirigido deve procurar obter informações mais detalhadas. Quando interrogamos com cuidado, freqüentemente surgem referências a sintonias como azia, regurgitação, gazes, erutação freqüente, náuseas e empachamento, ainda que discretos. São úteis informação sobre tipo e preparo (te alimentos, hábitos alimentares e uso de drogas que. possam favorecer refluxo, tais como álcool, teofilina, diazepan, anticolinérgicos, bloqueadores do cálcio, adrenérgicos etc. Costumamos perguntar sempre ao paciente c ao acompanhante, quando parente, se o paciente é "nervoso". Procura-se saber se ele teia ou teve problemas digestivos no passado. Deve também ser perguntado se o paciente costuma usar antiácidos corri frequência. Em nossa experiência, sintomas e sinais discretos não são lembrados e, portanto, não são referidos espontaneamente, inclusive porque o paciente não julga ser pertinente.

Como temos procedido quando há a suspeita ele RGE? Afastadas outras cansas e frente a esta hipótese, nosso passo seguinte é o de explicar ao paciente os mecanismos dos eventos e medicá-lo com antiácidos e drogas procinéticas. Além disso, são dadas orientações sobre medidas antirrefluxo: cabeceira da cama elevada a 30 graus, proibição do liso de álcool, de alimentos ácidos, do fumo, de alimentos gordurosos e picantes e recomendação para alimentar-se, no mínimo, 3 horas antes de deitar-se. Cerca de 1,5 dias após, reavaliamos os pacientes, indagando o quanto houve de melhora (nota de uma a dez). Caso haja significativo alívio dos sintomas e das alterações encontradas ao exame físico, encaminhamos o paciente para o Gastroenterologista. Nosso tratamento, portanto, é um teste terapêutico. A investigação profunda das causas básicas e o possível tratamento fica, obviamente, por conta daquele profissional. Ele usará vários recursos disponíveis, tais como o teste de Bernstein, pHmetria esofágica, endoscopia e biópsia de esôfago, radiografia contrastada, cintilografia e eletromanometria do segmento faringoesofágico. A eletromanometria, em particular, avalia o estado funcional da faringe, do ESE, do corpo esofágico e do EIE. Nem todos estes exames, entretanto, podem estar disponíveis, existindo ainda a possibilidade de nada revelarem8. Troca de informações entre ambos profissionais, o Otorrinolaringologista e o Gastroenterologista, pode ajudar a esclarecer quadro com queixas otorrinolaringológicas sem lesões visíveis ou caso onde o Otorrinolaringologista suspeita de refluxo não confirmado pelos exames do Gastroenterologista.

Embora este texto não se proponha a apresentar casos, vamos relatar um deles, com a finalidade de ilustrar nosso comportamento objetivo frente a portadores de sinais e sintomas passíveis de serem, primária ou secundariamente, associadas ao RGE. Um professor universitário, de quarenta anos, vinha apresentando disfagia progressiva desde há seis meses. Começou a selecionar alimentos mais fáceis de serem ingeridos, passando posteriormente a ter sensação de que ia afogar-se ou engasgar, ao alimentar-se. Perdeu bastante peso devido à restrição alimentar. Poucos dias antes de chegar até nós, apresentou quadro emocional intenso devido a sensação de estar "sufocando". Já estivera em Psiquiatra, por estar estressado devido a encargos administrativos e por julgar a disfagia como sendo de fundo nervoso, tendo-lhe sido prescrito sedativo, sem melhora. Nosso primeiro contacto revelou indivíduo angustiado com seu problema. O exame otorrinolaringológico nada revelou. A informação de que estava sobrecarregado de trabalho foi muito útil. Fizemos as hipóteses de: hipertonia primária do ESE como resposta ao "stress", provocando disfagia e favorecendo aspiração de restos alimentares retidos na transição faringoesofágica ou, então, hipertonia como respostas de defesa do esfíncter frente a RGE atingindo a região. Foram explanadas ambas as hipóteses, cuidadosamente, prescritas drogas (procinéticas, inibidoras da secreção gástrica e tranqüilizantes) e medidas antirrefluxo. A remissão dos sintomas foi surpreendente. Os exames endoscópico, eletromanométrico e deglutograma, feitos a seguir, revelaram apenas esofagite grau I e pequena hérnia de hiato. Pouco tempo depois, o paciente afastou-se das tarefas que o perturbavam, nada mais sentindo desde então. A primeira hipótese (hipertonia secundária à "stress") foi aventada em decorrência de experiência clínica prévia com grupo de pacientes com disfagia rapidamente progressiva (não neoplásica) e que será relatada em trabalho específico. A hipertonia do ESE em situação de "stress" foi demonstrada experimentalmente22. No caso presente, a hipótese final após a avaliação armada foi a de que houve somatória dos dois mecanismos onde o estado de tensão emocional provocou hipertonia do ESE que se intensificou graças à presença de RGE prévio, o qual, por sua vez, acentuado também pelo "stress", agrediu o esfíncter. A partir daí, surgiu ciclo vicioso de mais hipertonia, aumento da sensação disfágica, mais temor, mais hipertonia, mais disfagia. O refluxo gastroesofágico com sintomas ORL, aliás, apareceu associado, em nossa experiência, com freqüência, a outras alterações gástrica e esofágicas, tais como distúrbios da motilidade esofágica, hérnia de hiato, gastrites e duodenites, úlceras pépticas e erosão antral.

Nesta era de maior interação entre as especialidades médicas, cabe reforçar a lembrança de que as vias aéreas e digestivas altas e baixas são tubos que se comunicam ao nível da oro e hipofaringe, podendo haver passagem, cruzada ou não, de secreções e substâncias das partes altas para as partes baixas, provocando faringite (muito freqüente), laringite, sinobronquite, tosse etc23, 24. Das vias aéreas e digestiva baixas, por sua vez, secreções podem ascender e provocar alterações, tanto ao longo do próprio segmento inferior, quanto dos segmentos superior das mesmas. Assim, o RGE, além da faringe e laringe, atinge brônquios e leva à asma, à síndrome do bebê chiador e à broncopneumonias. Secreções brônquicas excessivas, por sua vez, produzem irritação da laringe. Em particular, devem ser enfatizados os distúrbios da motilidade esofágica, da coordenação faringe-ESE na deglutição e do esfíncter faringoesofágico. Alterações da motilidade da via digestiva, envolvendo esôfago, faringe e coordenação faringe-esfíncter, podem provocar disfagia e favorecer a aspiração de bolo alimentar para a via respiratória. Se levado em conta, os conhecimentos sobre a intercomunicação entre as vias e sobre a fisiologia da via digestiva alta serão de muito valor para o raciocínio clínico, aumentando o sucesso da investigação e levando a maior entrosamento do Otorrinolaringologista com outras especialidades médicas.

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* Professor Assistente Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
** Professora Titular da Disciplina de Gastroenterologia Cirúrgica da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.

Trabalho realizado na Faculdade de Medicina do Campus de Botucatu - Universidade Estadual Paulista -Distrito de Ribeirão Preto - CEP: 18618-000, Botucatu - São Paulo.
Artigo recebido em 11 de maio de 1995.
Artigo aceito em 01 de junho de 1995.

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