Ano: 1978 Vol. 44 Ed. 1 - Janeiro - Abril - (13º)
Seção: Notícias e Comentários
Páginas: 93 a 96
JORGE FAIRBANKS BARBOSA
Autor(es): Prof. Nelson Álvares Cruz
Oração proferida na Sessão Extraordinária do Departamento de Otorrinolaringologia da Associação Paulista de Medicina, aos 22 de novembro de 1977. Pelo Prof. Nelson Álvares Cruz.
Minhas senhoras, meus senhores.
Ao ser consultado pelo Dr. Samir Cahali, Presidente do Departamento de Otorrinolaringologia da Associação Paulista de Medicina, para vir aqui hoje pronunciar palavras de homenagem póstuma ao Dr. Jorge Fairbanks Barbosa, em nome de seus amigos, não pensei duas vezes. Aquiesci prontamente. Embora reconheça minhas limitações nesta incumbência, refleti que me sobravam razões para aceder ao convite. Fui amigo pessoal do Dr. Jorge Barbosa, com laços tão estreitos que o fiz mesmo meu padrinho de casamento. Além de seu companheiro de estudo e de trabalho hospitalar por mais de dois lustros. Esta convivência íntima por todo este tempo e que se estendeu mais branda até sua morte justifica eu aqui, fugindo da modéstia cristã que procuro cultivar, como mandatário dos amigos nesta manifestação em que homenageamos essa criatura desditosamente desaparecida de nosso convívio.
Para mim a perda sofrida pela otorrinolaringologia brasileira com o pensamento do Dr. Barbosa o incomensurável. . Assim conjecturo por admitir que só a um pequeno número de privilegiados que vem ao mundo é dado o atributo de sobrelevar-se a seus semelhantes por dons pessoais.
É corrente a afirmativa de que ninguém é insubstituível na profissão. Na realidade esse conceito pode ser válido quando referente a um profissional vulgar. Mas não cabe para os homens raros que se destacam de modo ímpar, aos predestinados que da planície sobem aos cumes. Algumas gerações são necessárias muitas vezes para que um profissional de nível comparável apareça. É assim que vejo a figura do Dr. Jorge Barbosa: personalidade excepcionalmente rara no campo que abraçou.
Nesta noite de saudade, louvar-me-ei em reminiscências.
Conheci o Dr. Jorge no começo de 1947, sendo eu ainda estudante de Medicina. Era ele otorrinolaringologista do antigo Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários, lugar que conquistara em brilhante concurso. Naqueles idos, andava eu de namoro com a Otorrinolaringologia. E coube ao Dr. Jorge despertar em definitivo a vocação nascente. Propusera ele dar-me as bases da Otorrinolaringologia. Logo nos primeiros dias de trabalho no Ambulatório ou Centro Cirúrgico do Hospital, surpreendi-me com o professor perfeito, o didata nato, forrado por sólida base de Curso Secundário bem realizado, pelo valor do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pela leitura de artigos e livros de cultura geral, pela freqüência constante a publicações médicas, pelo treinamento pedagógico obtido como professor de matérias do Curso Secundário no Colégio Rio Branco.
Uma ocasião passou a irritar-se com erros grosseiros de português registrados sucessivamente em prontuários médicos. E afirmava com toda a razão que o que faltava ao responsável por tão clamorosas falhas era um Curso Secundário bem feito. "Sem um bom Curso Secundário o que vem depois não possui a firmeza necessária", dizia. Se o alicerce não é forte, o que vem em cima não tem a devida solidez. Esse conceito aparentemente corriqueiro não era apenas justo naquela época. Continua atualíssimo. E mais que outrora. A massificação do Ensino tem acarretado o sacrifício da qualidade pela quantidade.
Naqueles dias do antigo IAPC, um grupo de estudo construíra-se composto por Antônio Correa, que posteriormente foi Docente-Livre da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e chefe de Clínica de sua Disciplina de Otorrinolaringologia; por Fábio Barreto Matheus, Assistente do Dr. José Eugênio de Paula Assis no Hospital N.S. Aparecida; por Mário Corrêa da Fonseca e finalmente por mim. Reuníamo-nos duas vezes por semana à noite, na casa de Jorge Barbosa para estudar. A sessão consistia de leitura de resumos que cada um de nós fazia de artigos de Revistas medicas especializadas, em geral estrangeiras. Estas reuniões eram comandadas pelo Dr. Jorge, que discutia a maioria dos artigos apresentados com completo domínio do assunto. Era ele um líder natural. Para bem da verdade devo dizer que Antonio Correa em pouco tempo deixava o grupo que se manteve com os componentes restantes por muitos anos.
No antigo Hospital dos Comerciários, em certo período, houve um justo movimento de reivindicação administrativa dos médicos. Sabem quem foi um dos cabeças do movimento? O Dr. Jorge. Estava sempre na frente dos acontecimentos.
Quando o Professor Antônio Prudente inaugurou em 1953 o Hospital A.C. Camargo - o Instituto Central da Associação Paulista de Combate ao Câncer, os Serviços da ta. Clínica de Tumores, que funcionava no Hospital Santa Cruz mudaram para o novo nosocómio. Na transferência, questões ligadas à Chefia da Clínica foram motivo de debate. E o Dr. Jorge, chefe natural pela trabalho que realizava, agastou-se e ameaçou deixar o Hospital. Fui testemunha do diálogo que manteve com o professor Prudente. E ouvi este dizer alto e bom som: "-Olha, voce não está dando o devido valor ao porte da obra realizada. Esta Associação paulista de Combate ao Câncer terá, pela forma que está sendo organizada e pelo mérito de seus homens, projeção internacional. Espere e verá".
Foi, a meu ver, esta verdadeira ducha fria que abrandou o temperamento irrequietos do Dr. Jorge, que resolveu então aguardar, para gradativamente firmar-se na Chefia da Clínica. Sob suas mãos, o Serviço de Cabeça e Pescoço daquela instituição iniciou em 1953 uma trajetória brilhante. Faziam parte do grupo, inicialmente o Dr. Fábio Barreto Matheus, o Dr. João de Carvalho Neves, o Dr. Abel Braz Salles e quem vos fala. Foi este o pequeno núcleo primitivo, que em cerca de 10 anos se desfez. Logo veio agregar-se a ele o Dr. Josias de Andrade Sobrinho, que posteriormente passou a ocupar a chefia do Serviço, em substituição ao Dr. Jorge. O crescimento das atribuições desse setor de Oncologia cérvicofacial, com o passar dos anos e com a força do trabalho criador, determinou a nomeação de novos Cirurgiões Titulares. Vieram o Dr. Cláudio Hamilton Faccio, o Dr. Karl Kestel, o Dr. Luiz Carlos Sanvitto, o Dr. Antonio de Padua Bertelli, o Dr. DayisonAlecrim de Silva Castro e o Dr. Abrão Rapoport. Posso dizer que todos esses médicos que ali permanecem até os dias atuais são exímios cirurgiões em oncologia cérvicofacial. A pujança desta plêiade de especialista mostra o valor da Escola criada pelo Dr. Jorge Barbosa. Muitos destes homens, seguindo o exemplo do mestre, têm seu nome inserido em publicações fora do país, elevando o nome da medicina brasileira.
Mas se isto ocorre, é justo recordar que coube ao Dr. Jorge, com sua inteligência, sua organização, seu preparo, ser o principal esteio desse Serviço extraordinário significativo na cirurgia especializada brasileira.
Se formos à Secretaria do Serviço de Cabeça e Pescoço e lhe solicitarmos informações sumárias sobre doenças ali atendidas, ela nos estenderá incontinenti um caderno de classificação nosológica onde encontraremos os dados fundamentais desejados sobre a afecção em estudo.
Se revelo o pormenor é para realçar a ordem que impera nos trabalhos do grupo, sendo que o Dr. Jorge foi o artífice das bases da perfeita organização ali observada.
O Dr. Jorge alcançou tal notoriedade como especialista que, além de seus inumeráveis trabalhos científicos publicados em revistas nacionais e estrangeiras, de vários livros publicados na língua materna, editou nos Estados Unidos da América do Norte uma obra-prima de técnica cirúrgica especializada intitulada "Surgical Treatment of Head and Neck Tumors'', trabalho fundamental, de valor inexcedível e elaborado com o amor e a precisão que sempre punha em tudo o que fazia. Não conheço na nossa especialidade quem tivesse atingido a glória de ter uma obra tão importante publicada no estrangeiro e com aceitação em todo mundo, como o próprio Dr. Jorge me informou, preocupado com o que lhe estavam oferecendo em troca da venda do volume em diferentes regiões do mundo.
Quero ressaltar ainda uma faceta importante de seu perfil profissional. Em época, onde o utilitari3mo viceja vilipendiando a medicina, a produção científica do Dr. Jorge era alicerçada em princípios de honestidade indubitável. Em tempos em que a mistificação nas publicações científicas, visando a promoção pessoal e interesses subalternos, é umas das mazelas dolorosas da nossa profissão, caracterizava-se o Dr. Jorge pela exatidão dos dados colhidos através de labor minucioso e exaustivo. O que escreveu merece todo o crédito. Nenhuma distorção da verdade pode ser atribuída. A confiança com que nos entregamos à leitura do que fez é integral. Soube honrar a medicina neste particular.
Desejo realçar ainda o técnico apurado e o artista primoroso do ato cirúrgico. O Dr. Jorge era o exemplo inconteste de que a medicina é Ciência e Arte.
Pode-se afirmar sem medo de cometer engano que pelo rigor da técnica e o arrojo adequado foi o criador da moderna cirurgia oncológica cérvícofacìal brasileira.
E para encerrar convém repetir levando em conta o procedimento do Dr. Jorge como mestre da Medicina, pensamento que nos foram legados por Aloysio Castro:
"Não é somente a água santa da Ciência que o professor dá a beber no cálice que lavrou.
Ao professor clínico tido não está somente no lado científico. Com esse professor, na incomparável escola do Hospital, é que se aprende ao vivo, cada dia, em demonstração de comovedora beleza, o lado humano da medicina, ante o quadro do sofrimento que dá ao médico o grande sentido da vida e lhe põe no coração a flor de todas as virtudes". "Eis ali a vida do homem, sujeita à dor e aos repentes perigosos, entregue não só ao saber, mas ao amor do médico, que é então verdadeiramente "a mão de Deus".