Ano: 1987 Vol. 53 Ed. 4 - Outubro - Dezembro - (3º)
Seção: Artigos Originais
Páginas: 117 a 120
A transição faringoesofágica e seu esfincter Considerações gerais
Autor(es):
Onivaldo Bretan*
Maria Aparecida C. Arruda Henry*
Resumo:
O autor comenta aspectos genéricos do esfíncter faringoesofágico, destacando os principais problemas decorrentes de transtornos que afetam sua abertura e fechamento, levando à disfagia, aspiração, tosse e outros distúrbios ORL.
O método eletromanométrico é o que melhor revela alterações qualitativas e quantitativas de pressão esfinctérica, ainda que aspectos de seu uso prático sejam polêmicos.
O otorrinolaringologista deve se preocupar em olhar mais vezes para a via digestiva alta, fonte de insuspeitadas queixas na esfera da especialidade.
Na transição entre faringe e esôfago existe um esfíncter anatômico e fisiológico, conhecido como esfincter faringoesofágico (EFE) ou superior do esôfago (FYKE & CODE, 1955; INGELFINGER, 1958; POPE II, 1974). (Fig. 1 e 2).
O presente artigo visa despertar a atenção dos otorrinolaringologistas para os quadros clínicos decorrentes das alterações deste esfíncter e destacar alguns aspectos básicos que envolvem o conhecimento de sua função.
Estudos clínicos e experimentais da transição faringoésofágica têm se utilizado, desde há várias décadas, de técnicas eletromiográficas, radiológicas e eletromanométricas (ATKINSON e col., 1957; LEVITT e col., 1965; EKBERG & NYLANDER, 1982).
Fig. 1 - Anatomia da parede posterior da transição faringoesofágica. O m. cricofaringeo se confunde com o esôfago em sua porção inferior. Ambos nascem na cartilagem cricóide. (de Gates. G.A., Laryngoscope, 90:454-464, 1980)
Fig. 2 - Visão lateral do m. cricofaringeo e suas relações.
A eletromanometria (EMM) revela a presença de uma pressão elevada de repouso na região do EFE, a qual se reduz a quase zero quando ocorre uma deglutição (FIKE & CODE, 1955). (Fig. 3).
A existência desta estrutura esfinctérica impede que o refluxo esofagofaríngeo chegue até a faringe e atinja a árvore traqueobrônquica; o esfíncter protege, desta forma, a via respiratória e os pulmões contra aspirações dos conteúdos gástrico e esofágico (GERHARDT e col., 1980; ELLIS & CROZIER, 1981).
O esfíncter faringoesofágico abre e fecha em períodos de tempo muito curtos (pouco mais que um segundo), em estreita sintonia com a rápida onda peristáltica originada na faringe.
Uma organização complexa, sob comando do Sistema Nervoso Central, controla os estágios do processo e deglutição desde sua etapa bucoárfngea e sincroniza deglutição e respiração, de forma tal que enquanto se dá a contração faríngea e a abertura do EFE, a glote e a supraglote se fecham, ao mesmo tempo em que a laringe e o osso hióide são tracionados para frente e para cima BOSMA, 1957; DOTY, 1968).
Distúrbios orgânicos e funcionais odem afetar os mecanismos de abertura e fechamento esfinctéricos, fazendo surgir diversas situações clínicas (LEONÀRD & SMITH, 1979 e ROED-PETERSEN, 1979).
Basicamente, dois tipos de distúr'os podem ocorrer, segundo regisos eletromanométricos:
1°-) Alterações que comprometem coordenação da abertura e fechamento do esfíncter, levando a retardo abertura, abertura incompleta ou menor duração (fechamento preturo) e hipertonia. Estes transtornos produzem situações clinicamente nominadas, por alguns, de acalasia ou incoordenação do esfíncter, encontrando-se freqüentemente, nestes casos, valores pressóricos acima da média de pressão de repouso encontrada em um grupo de indivíduos sem queixa.
Fig. 3 - Registros eletromanométricos da zona de alta pressão, em repouso e na deglutição.
Os sinais e sintomas mais encontrados em tais casos são: disfagia, progressiva ou não, presença de alimento na valécula e no seio piriforme, aspiração de alimento para a via respiratória, tosse, perda de peso. Sensação de "incômodo", aperto ou corpo estranho na garganta são as queixas encontradas em perturbações menores do esfíncter. O divertículo hipofaríngeo de Zenker, que surge na deiscência de Killian, produz vários destes sinais e sintomas e é uma das possíveis conseqüências da restrição prolongada à passagem do bolo alimentar para o esôfago.
2°) Alterações associadas à redução da pressão de repouso (esfíncter hipotônico) levando à regurgitação dos conteúdos gástrico e esofágico com conseqüentes queixas de faringe, laringe, ouvido, pescoço etc. Pode ocorrer aspiração, apnéia no sono, principalmente em recém-nascidos e em pacientes com refluxo gastroesofágico (BAIN, 1983).
As investigações apontam lesões neurológicas e musculares como as causas mais freqüentes de perturbação do mecanismo esfinctérico (KILMAN & GOYAL, 1976; PAl MER, 1976).
Nas grandes cirurgias de cabeça e pescoço pode ocorrer o envolvimento direto ou indireto do EFE, criando dificuldades, geralmente temporárias, de deglutição (STAPLE & OGURA, 1966; MATZKER, 1969; SHIPP e col., 1970). A causa seria uma dificuldade na abertura do esfíncter.
Em laringectornias parciais, o EFE tem sido responsabilizado pela disfagia que aparece erra determinados casos, mesmo não havendo lesão direta do músculo cricofaríngeo (LAUERNA e col., 1972). A causa seria uma incoordenação esfinctérica secundária à manipulação da inervação muscular.
O EFE tem atraído a atenção daqueles que estudam a reabilitação do laringectornizado. Eles têm procurado relacionar a integridade anatômica do esfíncter, após laringectomia total, com a qualidade da voz esofágica. Os resultados dos autores não permitem maiores conclusões a respeito (DEY & KIRCHNER, 1961; WELCH e col., 1979).
Uma visão geral da soma de informações adquiridas até agora, permite verificar que ainda existem muitas lacunas, dúvidas e divergências entre os estudiosos quanto ao conhecimento da zona de alta pressão faringoesofágica.
Assim, desde há décadas, discute-se qual estrutura é responsável pela manutenção da pressão do EFE. Os estudos divergem: seria o músculo cricofaríngeo, seria o esôfago cervical, seria a associação do músculo cricofaríngeo com parte do músculo tireofaríngeo e do esôfago cervical, ou, ainda, seriam as forças elásticas passivas, circunjacentes ao esfíncter (FYKE & CODE; 1955; KIRCHNER, 1958; DOTY, 1968; WINANS, 1972; ASOH & GOYAL, 1978).
DOTY (1968) e ASOH & GOYAL (1978) - estudaram o EFE visando esclarecer o papel do músculo cricofaríngeo no mecanismo de manutenção da zona de alta pressão e na abertura de passagem faringoesofágica.
No repouso, DOTY julga que a pressão é mantida passivamente pelos tecidos circunjacentes ao esfíncter (músculos, cartilagem, etc.) enquanto que ASOH & GOYAL julgam que existe um componente ativo dado pela contração contínua do músculo cricofaríngeo e um componente passivo, como quer DOTY. A abertura, para o primeiro autor, ocorreria pela tração do conjunto lárfngehioide para frente e para cima, pela força de contração dos músculos supra-hióideos (o geni-hióideo, em particular) a qual seria superior às forças passivas existentes. (Fig. 4). Para os outros autores, além deste componente, ocorreria o relaxamento do músculo cricofaríngeo, que teria o principal papel na abertura da passagem.
Métodos e Técnicas empregados no estudo clínico do EFE
A investigação da zona esfinctérica é realizada, entre outros métodos, pela eletromiografia e pela EMM. Os resultados de eletromiografia mostraram-se conflitantes quanto à função do músculo cricofaríngeo, pois enquanto SHIPP e col. (1970) e ASOH & GOYAL (1978) encontraram atividade elétrica durante o repouso, LEWITT e col. (1965) registraram sinais elétricos apenas na inspiração normal, mecanismo que evitaria a entrada de ar na via digestiva.
A eletromanometria é o principal método prático de estudo da zona esfinctérica. Ela mostra se a pressão de repouso está normal, elevada ou baixa, mostra ainda se o esfíncter abre e fecha corretamente e nos períodos de tempo esperados. A EMM consiste basicamente de:
1) Sondas de material plástico, com vários condutos internos a partir dos quais se fazem orifícios para o exterior. Estas sondas são introduzidas na via digestiva e retiradas com diferentes velocidades, enquanto são perfundidas continuamente com água que sai por cada orifício, o que permite que a pressão exercida neste nível seja transmitida pela coluna de água.
2) Equipamentos de transdução de pressão, que contactam com a coluna de água e transformam a pressão em sinais elétricos que são amplificados e lançados em um registrador gráfico.
3) Bomba de infusão de água na sonda.
Diversas dificuldades envolvendo a técnica de retirada da sonda, as cracterísticas físicas da sonda e dos equipamentos empregados e a maneira de se analisar os efeitos gráficos obtidos, criam problemas de ordem prática quando a EMM é utilizada. (VERCESI, 1972; DODDS e col., 1974; HENRY, 1979; WELCH & DRAINE, 1980).
Um problema central ainda não resolvido inteiramente é o da grande variação dos valores da pressão de repouso, que varia de indivíduo para indivíduo, e no mesmo indivíduo, err momentos distintos de tempo. A utilidade de uma variável com este tipo de comportamento tem sido motive de discussão entre os autores que estudam o esfíncter inferior do esôfago (PEREZ-AVILA & IRVING 1975; CHATTOPADHYAY & POPE II, 1978) e entre os que estuda o EFE (WELCH e cal., 1979).
Fig. 4 - O conjunto osso hióide e laringe e a musculatura suspensora (movimentos anterior e superior do conjunto)
Como o esfíncter possui uma dupla assimetria anatômica, radial axial, a pressão no sentido póste anterior é maior que no sentido lateral, esta poderia ser a principal causa de grande variação de valores (W'INANS, 1972). Não se sabe, ainda se a variação é real ou ocorre devi ao método e equipamento utilizado
Apesar de todas as dúvidas, divergências e dificuldades, diagnósticos podem ser realizados e medidas terapêuticas executadas. Assim, nos casos onde há disfagia de causa finctérica ou mesmo causa faríngea miotomia do músculo cricofaríngeo tem sido empregada com sucesso (ORRINGER, 1980; ELLIS CROZIER, 1981).
As dificuldades que envolvem uso da EMM não impedem que se constitua em um recurso diagnostico eficaz, em situações clínicas de haja existência de disfagia, regurigitação, refluxo esofagofaríngeo e outros sinais e sintomas já mencioados.
Exames endoscópicos, radiogramas contrastadas ou mesmo cinerraiografias não são suficientes para esclarecer todos os problemas que afetam o esfíncter e os demais segmentos da via digestiva alta.
A EMM é o único método que revela as condições dinâmicas da fisiologia da faringe, dos esfíncteres e do esôfago, em repouso e na deglutição. Ela permite a mensuráção de fenômenos que ocorrem na via digestiva alta, o que propicia estudos comparativos, clínicos e cirúrgicos, como nenhum outro meio. É, portanto, um método ao mesmo tempo quantitativo e qualitativo.
O conhecimento das patologias que afetam o EFE diretamente ou que o envolvem indiretamente, como nas paralisias farfngeas, faz com que o especialista, armado do EMM, amplie sua capacidade de realizar diagnósticos.
É necessário, portanto, olhar com mais atenção para a via digestiva, fonte de insuspeitadas queixas otorrinolaringológicas, as quais só poderão ser identificadas se estiveram na mente do especialista como uma região a ser investigada.
Summary
Dysphagia, laryngeal aspiration and throat disorders are major problems in pharyngoesophageal sphincter abnormalities.
In sphincter dysphunction the following disturbances can be seen: hipertonicity, achalasia, premature contraction, delayed relaxation, hipotonicity.
Eletromanometry afford quantitative and qualitative informations about closure and opening of pharyngoesophageal transition.
In ORL practice the pharyngoesophageal sphincter must be included in differential diagnosis as sources of ear, nose and throat complaints.
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* Professor Assistente da Disciplina de Otorrinolaringologia do Departamento de Oftabnologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP.
** Professora Assistente-Doutora da Disciplina de Gastroenterologia Cirúrgica do Departamento de Cirurgia e Ortopedia da Faculdade de Medicina de Botucatu-UNESP.