Versão Inglês

Ano:  1987  Vol. 53   Ed. 2  - Abril - Junho - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 64 a 67

 

Dor crânio-facial atípica: um estudo controlado

Autor(es): Luzilma Terezinha Flenik
Paulo Rogério M. Bittencourt

Introdução

Dor crânio-facial atípica é uma entidade sem causa orgânica ou anatômica definida. A presença de distúrbios emocionais ou desordens psiquiátricas associadas é considerada fator etiológico (Mock & Gordon 1985). O quadro ocorre mais freqüentemente no sexo feminino entre 20 e 50 anos de idade, em pacientes sem história familiar de dor e sem alterações neurológicas ou de estruturas da face que possam ser correlacionadas diretamente com o sintoma (Schott 1980). Ao chegar ao neurologista, a maioria dos pacientes já tentou uma variedade de tratamentos, principalmente de natureza odontológica ou otorrinolaringológica, sem resultados claros (Weddington & Blazer 1979). O diagnóstico é eminentemente clínico, já que exames complementares são normais ou providenciam resultados não correlacionáveis com o sintoma (Reik 1985).

O termo "dor facial atípica" foi sugerido por Frazier e Russel em 1984. Vários autores desde então propuseram uma associação com fatores psicogênicos. Wilson, em 1982, observou que muitos pacientes apresentavam distúrbios emocionais e alterações de comportamento relacionadas com a severidade dos sintomas, e postulou que estes seriam reações a um sentimento de inferioridade, exteriorizando conflitos internos que poderiam ser aliviados com psicoterapia (Weddington & Blazer 1979). Lesse, em 1960, postulou que dor crânio-facial atípica representava uma síndrome de depressão mascarada (Weddington & Blazer 1979). Delaney (1976) demonstrou que em alguns casos a dor era uma defesa da emergência de uma síndrome psicótica. Vários quadros psiquiátricos, inclusive psiconeuroses, reações de conversão e depressão foram associados através dos anos com dor crânio-facial atípica (Weddington & Blazer 1979).

Neste trabalho foram comparados um grupo de pacientes portadores de enxaqueca e outro de portadores de dor crânio-facial atípica, com o objetivo de definir claramente a sintomatologia e as características desta entidade clínica, que parece ser pouco diagnosticada em nosso meio.

Métodos

O fichário de uma clínica ambulatorial neurológica dos anos de 1982 a 1984 foi revisado por uma neurologista independente que separou pacientes com diagnóstico de certeza de dor crânio-facial atípica e enxaqueca. Dor crânio-facial atípica foi definida como sensação dolorosa ou parestésica referida a regiões do crânio ou da face para a qual não fosse encontrada correlação anatômica ou patologia orgânica, e quando o quadro clínico não preenchesse critérios de diagnóstico de uma variedade de dores cranianas e faciais específicas (Vinken et al 1986). Foram incluídos pacientes que tivesse pelo menos um mês de seguimento após uma investigação julgada completa. Foram levantadas informações relativas a sexo, idade, caracteristicas, período e local da dor, condições médicas e psiquiátricas associadas, resultados de exames complementares inclusive liquor, tomografia axial computadorizada, eletroencefalograma, assim como tratamento resultados.

Para análise estatística foram ulizados os testes de Student e ex quadrado.

Resultados

Foram estudados 14 pacien com diagnóstico de dor crânio-facial atípica e 22 pacientes com diagnótisco de enxaqueca. Destes, 11 tinha enxaqueca comum, 8 enxaqueca clássica, 2 quadros mistos e 1 variante basilar.

A tabela 1 mostra dados epimiológicos, tempo de evolução presença de morbidade médica e psiquiátrica nos 2 grupos. Houve predomínio de pacientes do sexo feminino entre 20 e 50 anos de idade em ambos os grupos, sem diferença estatisticamente significante. O grupo com dor crânio-facial atípica tinha um tempo de evolução mais longo (p < 0,05). Entre 70 e 80% pacientes em ambos os grupos tinham patologias médicas concomitantes, porém o grupo com dor crânio-facial atípica teve, significantemente, mais morbidade psiquiatrica que o grupo com enxaqueca (P < 0,05).





A tabela 2 mostra a periodicidade dos sintomas dolorosos ou parestésicos nos grupos de pacientes com dor crânio-facial atípica e enxaqueca. Os dados demonstram que todos os pacientes com enxaqueca tinham crises de dor de duração entre 3 e 72 horas, com intervalos livres de sintomas. Só 2 dos 14 pacientes com dor crânio-facial atípica apresentavam crises desta duração (p < 0,05), enquanto que 8 apresentavam dor contínua com períodos de piora. O restante contava uma história de dor contínua, ocorrendo em crises de menos de 3 horas de duração ou evoluindo de maneira progressiva simulando lesão expansiva intracraniana.

A ocorrência de escotomias visuais e/ou náuseas ou vômitos foi característica do grupo com enxaqueca, ocorrendo em 19 dos 22 pacientes. No grupo com dor facial atípica somente 2 dos 14 relataram estes sintomas (p < 0,05).

A tabela 3 mostra a localização topográfica dos sintomas dolorosos ou parestésicos dos grupos com dor crânio-facial atípica e enxaqueca. Os dados demonstram não haver diferença entre os 2 grupos, os sintomas envolvendo praticamente a totalidade de crânio, face e região cervical em várias combinações.





Tanto o grupo com dor crânio-facial atípica como o grupo com enxaqueca apresentaram uma variedade de patologias, caracterizando morbidade médica concomitante ou recente, totalizando 78% dos pacientes com dor crânio-facial atípica e 68% dos com enxaqueca (p < 0,05). No grupo com dor crânio-facial atípica foram encontrados artrose, Herpes Zooster, cisticercose, gravidez recente, ovário polícístico, hipertensão arterial e lesão orbitária iatrogênica em 1 caso cada. Dois pacientes apresentavam crises vestibulares e outros 2 tremor essencial. No grupo com enxaqueca 3 pacientes apresentavan artrose, 3 haviam tido crises generalizadas tônico-clônicas e 2 apresentavam bronquite de tipo asmática. Sífilis, cisticercose, hiperemese gravídica, diarréia crônica, coronariopatia, hipertensão arterial e hipoacusia, foram encontrados em 1 paciente cada. Uma grande parte dos paciente em ambos os grupos relatou obstipação intestinal, porém a freqüência exata não pôde ser quantificada a partir do fichário examinado.

Doenças psiquiátricas concomitantes ou recentes foram encontradas em 72% dos pacientes com dor crânio-facial atípica e em 27% dos pacientes com enxaqueca (p < 0,05) tabela 4. A subdivisão em depressão ansiedade, histeria, insônia e psicose maníaco-depressiva tornou os números pequenos demais para análise estatística.

Respectivamente, 8 dos 14 pacientes com dor crânio-facial atípica e 10 dos 22 com enxaqueca tiveram tomografias axiais computadorizadas normais. Um dos pacientes de cada grupo teve uma calcificação intracerebral demonstrada.

No grupo com dor crânio-facial atípica, 8 eletroencefalogramas foram normais, enquanto que no grupo com enxaqueca, 10 exames foram normais. Cinco exames de líquor foram realizados no grupo com dor crânio-facial atípica, dos quais 3 foram normais, 1 foi sugestivo de cisticercose e outro compatível com Herpes Zoster. No grupo com enxaqueca, 2 exames de líquor foram normais e 1 sugestivo de cisticercose. Em nenhum dos casos a patologia indicada pelo exame liquórico pôde ser correlacionada com a sintomatologia crânio-facial ou de enxaqueca.








No grupo com dor crânio-facial atípica, 86% dos pacientes foram seguidos a longo prazo, enquanto que no grupo de enxaqueca este número foi de 83%. O tempo de seguimento no primeiro grupo foi de 4 ± 3 (média ± desvio padrão) meses e no segundo foi de ± 8 meses. Esta diferença, estatisticamente significante (p < 0,05), vista a falta de diferença na aderência ao tratamento, indica que o diagnóstico de enxaqueca foi utilizado anteriormente ao de dor crânio-facial atípica nesta população ambulatorial.

Utilizando como parâmetro de sucesso de tratamento uma melhora de 50% ou mais na sintomatologia (severidade de dor ou freqüência de crises), 64% dos pacientes com dor crânio-facial atípica e 86% dos pacientes com enxaqueca foram um sucesso terapêutico ao fim do período de seguimento. Embora indique uma tendência, tal diferença não é estatisticamente signifcante (teste do chi-quadrado). Todos os 12 pacientes pom dor crânio-facial atípica foram seguidos a longo prazo e foram tratados com medicação antidepressiva o tipo tricíclico. Os pacientes com enxaqueca foram tratados com medicação antidepressiva (amitriptilina ou imipramina, 10 casos), propranolol (5 casos), tratamento somente as crises (3 casos), tricíclico associado a propranolol (1 caso), e benodiazepínico associado a propranolol (1 caso).

Discussão

A origem psicogênica de dor crânio-facial atípica vem sendo comprovada repetidamente (Delaney 1976, Feinmann et al 1984, Feinmann & Harris 1984, Mock & Gordon 1985, Paulson 1977, Reik 1985, Schott 1980, Weddington 1979). Os resultados aqui relatados confirmam esta afirmação da literatura internacional, demonstrando uma morbidade psiquiátrica significativamente mais freqüente em um grupo de pacientes com dor crânio-facial atípica quando comparado a um grupo de pacientes com enxaqueca, que tinham sexo, idade, características sócio-econômicas e morbidade médica semelhantes.

Feinmann et al (1984) delimitaram duas síndromes específicas dentro dos quadros de dores crânio-faciais de origem psicogênica. A primeira, artromialgia facial (síndrome da disfunção têmporo-mandibular) é a mais comum e afeta a articulação têmporo-mandibular e sua musculatura. A dor é freqüentemente contínua com crises de exacerbação. São os dentistas que recebem e tratam muitos destes pacientes, atribuindo a sintomatologia a bruxismo, má oclusão ou disfunção da articulação têmporo-mandibular. Contudo, como extensamente discutido por Feinmann et al (1984) e por Feinmann & Harris (1984), a incidência de má oclusão nestes pacientes não é maior do que na população em geral, o ajuste da má oclusão não foi eficaz no alívio da dor, e achados radiográficos são igualmente freqüentes em portadores de dor facial e numa população controle.

A segunda síndrome bem delimitada por Feinmann et al 1984 é chamada dor facial atípica (neuralgia facial atípica), que se manifesta de diversas formas como dor contínua, profunda, referida aos tecidos ou aos ossos, moderada ou severa, lancinante. Existem 2 variantes, a "odontalgia atípica" que é caracterizada por dor lancinante pulsátil a nível dos dentes, com hipersensibilidade a temperatura e pressão na ausência de doença orgânica, e a "disestesia oral", na qual a paciente queixa-se de distúrbio de gosto, secura e queimação lingual e, freqüentemente, intolerância a próteses dentárias. A descrição da dor não é característica, sua localização é variável, a intensidade é de moderada para severa. A dor é contínua com crises de exacerbação desencadeadas por fadiga, trabalho ou tensão (Feinmann & Harris 1984).

Neste estudo utilizamos o termo "crânio-facial" devido aos pacientes, na maioria, terem sintomas de localização ampla na cabeça, envolvendo áreas não-faciais. Critérios objetivos para diagnóstico de dor crânio-facial atípica parecem ser obscuros em nosso meio. Os resultados aqui apresentados permitem algumas generalizações. O quadro clínico inicia-se após o fim da adolescência. Os pacientes, quase universalmente mulheres, têm entre 20 e 50 anos. A investigação através da história clínica da periodicidade da dor é básica para o diagnóstico. A maioria dos pacientes apresenta dor contínua com crises de exacerbação ou crises com intervalos sem dor, porém as crises quase invariavelmente têm menos de 3 horas de duração. Em alguns casos a dor é lancinante, levando a confusões freqüentes com neuralgias, como por exemplo do trigêmeo. A localização do sintoma doloroso ou parestésico não ajuda no diagnóstico, como aqui demonstrado. Devido à característica retrospectiva deste estudo, não puderam ser avaliados fatores como diagnósticos anteriores e características dos sintomas parestésicos. A experiência dos autores, por outro lado, mostra que uma boa parte dos pacientes com dor crânio-facial atípica recebeu uma variedade de diagnósticos odontológicos e freqüentemente submeteu-se a procedimentos cirúrgicos de cabeça e pescoço, inclusive retirada completa dos dentes, amigdalectomias, drenagem de seios paranasais etc. As sensações parestésicas relatadas pelos pacientes foram as mais diversas e não puderam ser quantificadas objetivamente. Pacientes com dor crânio-facial atípica têm na sua maioria (72% neste estudo) patologia psiquiátrica concomitante, incluindo depressão, ansiedade, histeria, insônia ou quadros francos de psicose maníaco-depressiva. É provável que o restante também viesse a ter um diagnóstico psiquiátrico específico, caso fossem investigados em mais detalhe ou por mais tempo.

Além das características já mencionadas, é importante que estes pacientes sejam investigados para serem afastadas lesões estruturais ou síndromes de dor crânio-facial. específicas (Vinken et al 1986). Os achados dos exames complementares devem, no entanto, ser considerados à luz da situação clínica, já que é freqüente a coexistência de dor facial atípica e alterações orgânicas.

Embora o substrato psicogênico seja aparentemente básico na produção dos sintomas, estes pacientes merecem tratamento adequado. Feinmann et al (1984) e Feinmann & Harris (1984) demonstraram claramente a superioridade da utilização de medicação antidepressiva sobre placebo, ambos os grupos sendo tratados sob as mesmas condições ambulatoriais. O alívio da dor pareceu ser independente do efeito antidepressivo da medicação (Feinmann et al 1984). É importante ainda que o paciente conheça a natureza exata do seu problema e não permaneça na fantasia de ser portador de algum problema ósseo, dentário, muscular ou de outra natureza, atitude esta que tende a perpetuar a sintomatologia.

Se por um lado a popularização do diagnóstico de dor crânio-facial atípica pode apresentar um sério problema no sentido de aumentar o limiar de diagnóstico para patologias orgânicas graves, por outro lado a grande freqüência de dor crânio-facial atípica na população em geral faz com que este quadro clínico deva ser de conhecimento de especialistas de várias áreas, inclusive dentistas. Desta maneira, uma grande quantidade de procedimentos, inclusive cirúrgicos, poderia ser evitada.


Referências bibliográficas

1. Delaney JS. Atypical facial pain as a defense against psychosis. American Journal of Psychiatry, 133 (10):1151-1154,1976.

2. Feinmann C, Harris M, Cawley R. Psychogenic facial pain: presentation and treatment. British Medica] Journal, 288: 436-438, 1984.

3. Feinmann C. & Harris M. The diagnosis ancj managernent of psychogenic facial disorders Clinical Otolaryngology, 9 (4): 199, 201 1984.

4. Mock DDS & Gordon MD. Atypical facial pain: a retrospective study. Oral Surgery Oral Medicine, Oral Pathology, 59 (5) 472-474.1985.

5. Paulson GW. Atypical facial pain. Oral Surgery, Oral Medicine, Oral Pathology, 43 (3) 338-341,1977.

6. Reik L. Atypical facial pain: a reappraisal Headache, 25 (1): 30-32, 1985.

7. Schott GD. Neurogenic facial pain. Transactions of the Ophthalinological Societies o the United Kingdom, 100: 253-256,1980.

8. Vinken PJ, Bruyn GW, Klawans HL, Clifford Rose F (editors) Headache (Handbook o Clinical Neurology, Revised Series volume 4), Elsevier, Amsterdam, pp 1-514, 1986.

9. Weddington WW & Blazer D. Atypical facial pain and trigeminal neuralgia: a comparison study. Psychosomatics,20 (5): 348-349, 352 355-356,1979.




Endereço dos autores:
Unidade de Neurologia Clínica, Hospital Nossa Senhora das Graças, Rua Alcides Munhoz, 433, Mercês, 80.510 - Curitiba, Paraná.

* Estagiária
**Chefe da Unidade de Neurologia Clínica do Hospital Nossa Senhora das Graças, Curitiba

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