Versão Inglês

Ano:  1987  Vol. 53   Ed. 2  - Abril - Junho - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 60 a 63

 

Alongamento do processo estilóide Síndrome de Eagle

Autor(es): Mário Jorge Rosa de Noronha*
Italo Gandelmann**
Gerson Pires de Araújo Jr.
Walter Gert Schunemann*

Introdução

Determinados sintomas na área da Cabeça e Pescoço apresentam dificuldade de diagnóstico, principalmente por serem subjetivos.

Os mais comuns referem-se às algias e sensação de corpo estranho na garganta, quando nenhuma causa para isso é encontrada.

Esses fenômenos não só ocorrem na especialidade de Cabeça e Pescoço, mas nas demais especialidades médicas.

O nosso objetivo é mostrar que um paciente que apresentava um conjunto vago de sintomas, como dor facial, otalgia, sensação de corpo estranho na garganta à esquerda foi tratado no período de 2 anos por vários especialistas, recebendo orientação terapêutica diversa, sem resultados práticos para seus problemas, e sendo seu caso, por último, rotulado como psiquiátrico, quando na verdade os seus sintomas tinham uma causa orgânica localizada.

Uma radiografia panorâmica de face levou o radiologista, Dr. Murilo Torres, a chamar a atenção para o alongamento das apófises estilóides do paciente, com o lado esquerdo apresentando uma variação de direção. Nesse exame ele lembrava a possibilidade de o enfermo ser portador de Síndrome de Eagle.

Revendo-se trabalhos de Watt W. Eagle, verificamos que esta possibilidade não deveria ser afastada.

Em 1937, Eagle apresentou as primeiras observações da Síndrome. De 1937 a 1948 ele observou 254 casos. Em seu trabalho ele se referia à raridade do diagnóstico em face da falta de atenção de seus colegas em palpar a faringe desses pacientes.

Nós mesmos comprovamos que a Síndrome é pouco conhecida de otorrinos, cirurgiões de Cabeça e Pescoço e odontólogos, pela escassa bibliografia a respeito.

Dados anatômicos

O processo estilóide é originado da porção petrosa do osso temporal em sua parede lateral. Trata-se de um esporão cilíndrico dirigindo-se para baixo com o orifício estilomastóideo em sua base. Ele está sujeito a grandes variações de tamanho, entre 17 e 44 mm de comprimento com direção para baixo e para dentro. A média de comprimento é de 25 mm. Pode estar ausente. Quando bastante alongado pode alcançar o osso hióide.

Etiologia

Eagle divide os pacientes em 2 grupos: o 1° grupo aquele que apresenta a Síndrome típica e o 2°- grupo com Síndrome atípica.

No 1° grupo, os sintomas ocorrem em pacientes amidalectomizados. Parece que os sintomas neste caso se relacionam ao estiramento das terminações nervosas, principalmente do IX par (glossofaríngeo).

Um processo estilóide alongado, tocando nesta área pelos movimentos da cabeça ou da deglutição, pode estimular estas terminações nervosas e a Síndrome pode ocorrer.

No 2° grupo, da Síndrome atípica, o fenômeno se passa em amigdalectomizados ou não.

O fenômeno doloroso, neste caso, está relacionado à distribuição dos ramos da artéria carótida, mais comumente o ramo externo. Eagle acredita que nestes casos, o alongamento do processo estilóide causando pressão e alguma obstrução da artéria determinaria dor no território de distribuição dos ramos arteriais. Na pressão da artéria, os nervos simpáticos que envolvem os vasos seriam estimulados, e daí viria a dor.

Eagle afirma que muitos casos diagnosticados como hemicrania, cefaléias atípicas e neuralgias eram na realidade pessoas que tinham o processo estilóide alongado em comprimento.

Além disso, o alongamento da apófise, tocando externamente a faringe, determinaria a sensação de corpo estranho.

Com relação ao alongamento da apófise estilóide, é geralmente aceito, que, embriologicamente, o processo estilóide, o osso hióide e o ligamento são derivados do 2°- arco branquial. No ligamento pode haver retenção de alguma cartilagem embriológica que teria então o potencial para crescer e transformar-se em osso normal.

O que existe na literatura é uma controvérsia: se o ligamento estilóide torna-se calcificado, ossificado ou representa uma anormalidade congênita.

Gross e Fister citam um caso de alongamento da apófise estilóide com Síndrome de Eagle após a colocação de enxerto ósseo na mandíbula. Os autores parecem achar que o material osteogênico próximo ao processo estilóide estimularia e aumentaria o potencial para a ossificação do ligamento e, conseqüentemente, o aumento de todo processo.

Sintomatologia

Na Síndrome típica. observa-se uma dor constante ou surda e incômoda na faringe, apresentando a sensação de ferida na garganta. A dor, freqüentemente, se irradia para o ouvido, aumento da- salivação, dificuldade em deglutir e sensação de corpo estranho na garganta. Esses sintomas podem ser erradamente diagnosticados como neuralgia do glossofaríngeo, porém, esta é extremamente severa e de curta duração, aumentando com os estímulos quentes ou frios e às vezes com o movimento da língua. A dor, devida ao alongamento da apófise estilóide é constante, incômoda, mas raramente severa.

Na Síndrome típica, a alteração decorre do envolvimento das fibras sensitivas e motoras do V par (trigêmeo), VII par (facial) e IX par (glossofaríngeo). Em vista disso, pode haver também alteração no gosto e ainda espasmos dos músculos constritores do esôfago e faringe.

Douglas relata um caso de Síndrome de Eagle com dor distribuída ao longo da 32 divisão (mandibular) do nervo trigêmeo.

Na Síndrome atípica, também chamada de Síndrome da artéria carótida, Eagle observou uma dor iniciando no pescoço que se estendia para o mesmo lado da cabeça conforme a distribuição das artérias carótida externa e interna. A dor se projeta em todo o território de distribuição das artérias carótida externa e interna, mas principalmente da externa.



Fig. 1 - Radiografia panorâmica de mandíbula



Muitos casos da Síndrome atípica foram diagnosticados como hemicrania, cefaléia da artéria temporal, cefaléias atípicas e neuralgias. Além disso, em muitos casos, pelo alongamento da apófise e tocando diretamente sua ponta na mucosa faríngea, determina sensação local de corpo estranho.

Paparella, além dos sintomas acima referidos, relata presença de tinitus em alguns casos de Síndrome atípica.

Freqüência

Acredita-se que 4% da população mundial tem apófise estilóide alongada e somente 4% dessas pessoas apresenta sintomas. Acredita-se ainda que a maioria dos casos ocorra acima dos 30 anos. É mais freqüentemente encontrado na raça negra.

Trata-se, no entanto, de uma Síndrome rara, em decorrência do difícil diagnóstico.

Badour cita um caso que foi diagnosticado somente 15 anos após o aparecimento dos primeiros sintomas. Esse caso evoluiu a partir de 1963 e somente veio a ser diagnosticado em 1978.

O alongamento do processo estilóide já era conhecido muito antes de Eagle, havendo na literatura a citação da ossificação do ligamento, po Marcheti, em 1652. Weinlechner, e 1872, operou um caso em Viena.

Eagle, que mais estudou estes casos, observou, de 1937 a 1948, 254 casos.

Relato do caso

Paciente R.O.G., de 64 anos de idade, natural do Rio de Janeiro, cor branca, sexo masculino, procurou o consultório de um de nós no início de fevereiro de 1981.

Há 2 anos encontrava-se em tratamento, tendo recorrido a vários especialistas como otorrinos, neurologistas, odontólogos, psiquiatras etc.. Fez uso de grande variedade de antibióticos e antiinflamatórios sem resultado. Chegou inclusive a fazer tratamento pela acupuntura também sem nenhum resultado. Sua sintomatologia era de dor na garganta à esquerda, sensação de corpo estranho (tipo espinho de peixe) e dor irradiada na hemi-face esquerda tipo neurálgiaa. Foi pedida na ocasião radiografia panorâmica de mandíbula, realizada pelo Dr. Murilo Torres que não evidenciou nenhuma lesão óssea, mas chamava a atenção para a possibilidade de o paciente ser porta dor da "Síndrome de Eagle" em decorrência do alongamento e da variedade de direção da apófise estilóide esquerda. Anteriormente, uma radiografia constrastada de esôfago, realizada na Clínica Radiológica da Policlínica de Botafogo, já chamava a atenção para o acentuado desenvolvimento de ambas as apófises estilóides do temporal, sendo a esquerda orientada para dentro, atingindo a área orofaringeana. Com estes dados, o paciente nos foi encaminhado.



Fig. 2 - Radiografia do pescoço em perfil



Fig. 3 - Porção ressecada do processo estilóide



Revendo-se os trabalhos de Eagle e a bibliografia pertinente ao caso, verificamos que poderíamos estar diante de um deles.

Esta suspeição aumentou à medida que procedemos ao exame de ORL, onde na laringoscopia indireta bservamos a ponta de algo que faia saliência no hipofaringe do lado esquerdo, mais ou menos na altura o ligamento faringo-epig1ótico.O toque digital dessa área mostrou ma ponta endurecida projetando-se a mucosa.

Conversamos com o paciente ando-lhe as devidas explicações e propomos a cirurgia com a resseca-o da apófise estilóide esquerda. Embora a apófise direita também se alongada, ela não apresentava curvatura para dentro da faringe, o e foi comprovado pelo exame IRL. Além do mais, o paciente só apresentava sintomatologia do lado esquerdo.

Tratamento

É essencialmente cirúrgico. A técnica de Eagle envolve encurtamento do processo através da fossa amigdalina. Os músculos são removidos da ponta do processo que é então excisado usando-se um cortador de osso.

Uma via externa para a. remoção do processo estilóide foi descrita por Loeser e Caldwell. Uma incisão transversa é feita anteriormente ao músculo esternocleidomastóideo, medialmente ao ângulo da mandíbula. O fáscia parotídeo é refletido superiormente e a bainha da carótida é deslocada posteriormente. Com isso consegue-se adequada exposição do processo estilóide. O osso é então removido por cisalha de Linston após a dissecção de toda a fáscia e dos músculos inseridos na apófise.

No nosso caso optamos pela técnica de Loeser e Caldwell devido ao comprimento exagerado da apófise.
Normalmente a apófise estilóide apresenta um comprimento médio de 25 mm. O segmento da apófise que retiramos media cerca de 40 mm. O segmento deixado no paciente media cerca de 20 mm, com todo o processo medindo aproximadamente 60 mm.

A cirurgia foi realizada sob narcose e entubação orotraqueal pelo anestesista Dr. Saul Faierchtein, no Hospital São Vicente de Paulo, no Rio de Janeiro.

O pós-operatório transcorreu normalmente. Quarenta e oito horas após a cirurgia retiramos o dreno de Penrose e após 72 h o paciente recebeu alta hospitalar. Com exceção da dor local, decorrente do traumatismo cirúrgico, os demais sintomas não eram mais referidos. Houve desaparecimento da sensação de corpo estranho e das dores neurálgicas.

Passados dois meses da cirurgia, o paciente encontra-se assintomático.

Conclusão

O presente caso diagnosticado como Síndrome de Eagle, na sua forma atípica, confirma-se na prática pelo desaparecimento dos sintomas após a cirurgia.

Conclui-se que os sintomas são comuns a outras enfermidades e, por isso, chegar-se a um diagnóstico de certeza é necessário, antes de tudo, pensar-se na sua existência, ter um conhecimento profundo dos seus aspectos clínicos e lançar mão de todos os meios semióticos para alcançar-se o diagnóstico de certeza.

Pela revisão bibliográfica, verifica-se que o diagnóstico da Síndrome é demorado, com tratamento mal orientado durante vários anos, e acreditamos que muitos pacientes levaram suas queixas por toda a vida sem nenhuma solução para os seus problemas.

Não fosse por outras causas, o presente trabalho tem o mérito de chamar a atenção para os médicos em geral e, em particular, para aqueles que atuam na área de Cabeça e Pescoço, no sentido de que toda a dor localizada e irradiada, sensações parestéricas, disfagias sem causa aparente sejam valorizadas, sem o rótulo simplista de psicogênico e pensar sempre na existência dessa Síndrome.

Referências bibliográficas

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11. ANSON, B. J.; DONALSON, J. A.: The Surgical Anatomy of the Temporal Bone and Ear. London, W. B. Saunders Company,1967.




Endereço dos Autores:
Praia do Flamengo, 82, ap. 502 Flamengo
22.210 - Rio de Janeiro/RJ

*Chefe do Serviço de Cirurgia da Cabeça e Pescoço do Hospital do IASERJ
**Chefe do Serviço de Odontologia do Hospital Souza Aguiar
** *Residentes do Serviço de Cirurgia da Cabeça e Pescoço do IASERJ

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