Versão Inglês

Ano:  1987  Vol. 53   Ed. 2  - Abril - Junho - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 43 a 45

 

Otite externa maligna

Autor(es): Roberto Alcantara Maia*
Lisete Pessoa de Oliveira**

Resumo:
Dois casos de otite externa maligna, rebeldes ao tratamento clínico clássico, são apresentados. Em ambos os casos, a infecção causada pela Pseudomonas aeruginosa assume importante agressividade, com penetração para tecidos profundos das proximidades. Esta disseminação é seguida por outras complicações, inclusive recidiva do processo. Discute-se a utilidade da cintilografia óssea do crânio como método diagnóstico e preconiza-se a terapêutica prolongada de seis semanas da associação carbenicilina mais tobramieina como forma de controle ,das recidivas.

Introdução

Em 1968, Chandler propôs o termo diagnóstico "otite externa maligna" ao descrever uma série de pacientes com quadro infeccioso de uvido externo causado por Pseumonas aeruginosa de evolução otencialmente letal. Na descrição e Chandler, todos os pacientes eram dosos e diabéticos, fatores estes redisponentes para a gravidade da afecção.

Classicamente considera-se que estes três fatores - diabetes, idade vançada e Pseudomonas aeruginoas - associados a um quadro de otite externa rebelde ao tratamento antiibiótico, tanto local como sistêmico clássico e em cuja evolução nota-se aparecimento de tecido de granulação em conduto auditivo externo, fecham o diagnóstico de otite externa maligna.

Pela mortalidade elevada desta afecção, pela sua ocorrência pouco freqüente e por suas conseqüências diagnósticas e terapêuticas é nosso propósito apresentar dois casos rebeldes ao tratamento clínico e cirúrgico clássico. É feita uma revisão do tema, discutindo-se as contribuições mais recentes em termos diagnósticos (cintilografia óssea) e terapêuticos (antibioticoterapia prolongada).

Apresentação dos casos

Caso 1

W.O., 54 anos, sexo masculino.

Paciente diabético insulino-dependente, com insuficiência renal crônica, apresentando história de otalgia e otorréia no ouvido esquerdo de dois meses de duração, acompanhada de paralisia facial periférica à esquerda há uma semana. Tratado com antibióticos locais e sistêmicos sem resultado. Ao exame observou se pólipo ocupando o terço médio do conduto auditivo externo, drenando secreção purulenta. Diante dos achados radiológicos suspeitos, optou-se por uma mastoidectomia exploradora, onde pôde ser visualizado antro mastóideo e caixa do tímpano normais; erosão extensa da parede inferior do conduto auditivo externo por onde emergia tecido de granulação. Foi feito o debridamento com remoção de todo o tecido de granulação. Tendo sido obtida cultura com Pseudomonas aeruginosa, concluiu-se pela hipótese diagnóstica de otite externa maligna, optando-se pela terapêutica com gentamicina mais carbenicilina e curativos locais. Diante da insuficiência renal severa do paciente, a terapêutica foi interrompida no 15° dia. Obteve-se a normalização do aspecto do conduto auditivo externo, bem como a melhora dos sintomas locais, embora persistisse o comprometimento do VII par. Clinicamente houve compensação do diabetes e da função renal, como também melhora clínica dos sintomas dolorosos, sendo dada alta hospitalar. Trinta dias após, o paciente foi reinternado com descompensação do diabetes e da função renal, apresentando cefaléia hemicraniana esquerda e sinais de comprometimento do IX e X pares cranianos. Houve o reaparecimento de otorréia amarelada no ouvido esquerdo, com perfuração da membrana timpânica. A cultura da secreção revelou Pseudomonas aeruginosa. Decidiu-se pela reintrodução da terapêutica com gentamicina e carbenicilina, ocorrendo evolução para óbito no segundo dia de terapêutica.

Caso 2

J.L.G., 38 anos, sexo masculino.

Paciente apresentando história de otalgia contínua à esquerda, acompanhada de otorréia há aproximadamente um ano. Diabético pré-clínico, referiu piora do quadro nos últimos três meses, com dor irradiada para as regiões occipital e pré-auricular esquerda. Ao exame físico observou-se edema acentuado e tecido de granulação no assoalho do conduto auditivo externo com secreção mucopurulenta, cuja cultura revelou Pseudomonas aeruginosa. Tendo o paciente sido tratado por diversas ocasiões com antibióticos locais e sistêmicos, inclusive gentamicina, foi feita a hipótese diagnóstico de otite externa maligna. O paciente foi internado e submetido à terapêutica endovenosa com carbenicilina mais amicacina durante 28 dias, e curativos locais. Teve alta hospitalar no 28° dia de terapêutica. Evoluiu com persistência da otalgia à esquerda, sem otorréia. O conduto auditivo externo com edema, significativo, porém a pele e a membrana timpânica de aspecto normal. Foi submetido a novos exames radiológicos e à cintilografia, esta última mostrando áreas de hipercaptação em osso temporal esquerdo (Figs. 1 e 2). Em função dos achados cintilográficos e da persistência do sintoma dor, foi novamente internado três meses após a alta anterior. Introduziu-se a associação carbenicilina mais tobramicina endovenosa por seis semanas. Neste período foi programada a exérese cirúrgica da pele do conduto auditivo externo. Observou-se intraoperatoriamente erosão óssea da parede posterior do conduto auditivo externo em seu terço médio e comunicação com a região do antro mastóideo. Realizados antrotomia e debridamento das partes comprometidas. O paciente evoluiu com estenose do terço inferior do conduto auditivo externo, diminuição do quadro doloroso e bom estado geral. Alta hospitalar no 37° dia de terapêutica. Na evolução a médio prazo (seis meses) notou-se clinicamente o controle do processo infeccioso. Através da repetição da cintilografia óssea do crânio, observou-se captação normalizada na região temporal acometida.

Discussão

A Pseudomonas aeruginosa é o agente usualmente encontrado em associação com o Staphylococcus aureus nas otites externas em geral. Sua agressividade e capacidade de tornar-se resistente a antibióticos é notória. Em indivíduos normais portadores de otite externa, a antibioticoterapia local, associada ou não à sistêmica, deve levar à cura em menos de duas semanas. No indivíduo diabético, a Pseudomonas aeruginosa encontra condições locais do hospedeiro que favorecem sua agressividade e disseminação. Nestes pacientes a reação de defesa leucocitária deficitária associada à endoarterite diabética propicia que enzimas líticas e endotoxinas se disseminem pelos tecidos e ossos adjacentes ao conduto auditivo externo.

A região de transição osteocartilaginosa do conduto, particularmente no seu assoalho, onde temos as chamadas fissuras de Santorini, é a via de disseminação preferencial da Pseudomonas aeruginosa. Através destas fissuras a infecção se propagaria pelos tecidos moles profundamente até atingir em estádios finais a base do crânio.

Atualmente, prefere-se dizer que a otite externa maligna afeta preferencialmente idosos diabéticos, já que foram descritos casos de acometimento de lactentes e mesmo adultos não diabéticos.

Clinicamente, a doença evolui no período inicial de modo insidioso. A despeito dos tratamentos clínicos usuais, a otorréia é persistente. Aparece, geralmente, ao nível do assoalho do conduto auditivo externo, tecido de granulação com exposição de paredes ósseas ou mesmo formações polipóides, como observado no caso 1. A membrana timpânica permanece íntegra até as fases mais evoluídas do processo. A dor profunda é habitualmente referida; em ambos os casos descritos foi o sintoma principal indicativo da persistência do processo infeccioso. Com a evolução da infecção para tecidos profundos, o acometimento de pares cranianos pode aparecer; inicialmente o VII par, e progressivamente são comprometidos o IX e X pares.

A presença de neuropatias é sinal de mau prognóstico. A propagação da infecção leva, algumas vezes, a falsas avaliações clínicas. Em ambos os casos apresentados, após o tratamento antibiótico sistêmico e local intensivo, observou-se um conduto de bom aspecto, sugerindo um controle da infecção, quando na verdade processo progredia em tecidos profundos, sendo a dor a única manifestação clínica evidente. Esta seria a principal razão de se manter a antibioticoterapia por longo perlo evitando-se assim a recidiva do quadro.

Nas fases iniciais, os exames radiológicos pouco contribuem - alterações ósseas, radiologicamente visíveis, só aparecerão em fases muito avançadas da infecção. A cintilografia óssea, descrita recentemente, oferece grandes subsídios no diagnóstico precoce e controledeJ tratamento desta afecção. A cintilografia com o tecnécio 99 mostrará como no caso 2, áreas hipercaptantes no osso temporal e base de crânio que refletem zonas de osteomielite com intensa atividade osteoblástica A cintilografia com o tecnécio 99 é útil, portanto, como um teste precoce para detecção de osteomielite já que não depende, como o Rx, uma desmineralização de até 50% matriz óssea para evidenciar alterações. Esta hipercaptação permanece por longo tempo. A cintilografia com o gálio 67 demonstra também á hipercaptantes refletindo focos infecciosos no osso em atividade; sim que houver esterilização, a captação retorna ao normal. É porta nto o exame ideal para controle de cura e indicação do momento da interrupcão da terapêutica.

O tratamento visa à abordagem clínica sistêmica e à terapêutica clinico-cirúrgica local. Em termos sistêmicos, é fundamental o controle rigoroso do diabetes. A antibioticoterapia preconizada é a associação sinérgica da carbenicilina com aminoglicosídeo. A tobramicina é o aminoglicosídeo de escolha por melhor atividade contra Pseudomonas aeruginosa e menor toxicida A associação deve ser mantida durante seis semanas, devido aos altos níveis de recidiva da infecção. A função renal será periodicamente controlada. O tratamento local deve ser rigoroso; todo o tecido de granulação deve ser removido; a limpeza do conduto deve ser feita diariamente, com a colocação de gotas antibióticas de aminoglicosídeos juntamente com o colistin.

A não resposta ao tratamento clínico indica a terapêutica cirúrgica, sendo o procedimento inicial a remoção em bloco de toda a pele do conduto, como foi realizado no caso 2. Em casos mais avançados do processo infeccioso, procedimentos cirúrgicos mais radicais são indicados para remoção de áreas de seqüestro ósseo; nestas eventualidades a mastoidectomia radical ou mesmo a petrosectomia subtotal têm sido descritas.

Conclusão

Todo quadro de otite externa em paciente idoso diabético deve ser cuidadosamente acompanhado. Se após duas semanas de tratamento clínico adequado observar-se tecido de granulação em conduto auditivo externo com otorréia persistente, esta secreção deve ser encaminhada para exame bacteriológico. Uma vez confirmada a presença de Pseudomonas aeruginosa, faz-se o diagnóstico de otite externa maligna. A cintilografia óssea pode contribuir significativamente para o diagnóstico na fase inicial e o controle do tratamento. Atualmente preconiza-se a antibioticoterapia na associação carbenicilina mais tobramicina pelo período de seis semanas, devido à alta incidência de recidiva da infecção. A exérese em bloco da pele do conduto é indicada quando o tratamento clínico não se mostrar suficiente isoladamente.

Summary

Two cases of malignant external otitis wich do not respond to classic medical treaiment are presented. In both cases, the infection caused by Pseudomonas aeruginosa show high degree of agressiveness with dissemination to the deep tissue in its vicinities. This dissemination is followed by other complications including recurrences of the process. The usefulness of bone scintigraphy of skull is discussed as a diagnostic method and the prolonged drug therapy (six weeks of carbenicillin with tobramycin) is recommended as means of avoiding recurrences.

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Endereço para correspondência:
DR. ROBERTO ALCANTARA MAI Av. Ibirapuera, 981- 7°- andar, Otorrin 08570 - São Paulo - SP

*Médico preceptor da Clínica de ORL do Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo.

**Médica residente da Cünica de ORL do Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo.

Trabalho realizadoo na Clínica de ORL do Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo -
Serviço do Prof. Moysés Cutin.

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