Ano: 1997 Vol. 63 Ed. 6 - Novembro - Dezembro - (6º)
Seção: Relato de Casos
Páginas: 583 a 586
TUMOR SEGUNDO PRIMÁRIO EM PACIENTES OPERADOS COM CARCINOMA ESPINOCELULAR DE CABEÇA E PESCOÇO.
Second Primary Tumor in Operated Pacients With Head and Neck Squamous Cell Carcinoma.
Autor(es):
Alessandro Cury Ogata*
Emerson Wander Silva Soares**
Géser Vinícius Silva Soares***
Lauro Toshiharu Araki****
Palavras-chave: carcinoma de cabeça e pescoço, segundo tumor primário
Keywords: head and neck squamous carcinoma, Second primary tumor
Resumo:
Billroth foi o primeiro a desenvolver o conceito de que um paciente poderia ter dois tipos diferentes de câncer. Neste estudo, são avaliados retrospectivamente 125 pacientes com carcinoma espinocelular de cabeça e pescoço, submetidos a tratamento cirúrgico entre 1993 e 1996, e, eventualmente, à radioterapia e quimioterapia. A incidência de tumor segundo primário foi de 10,4% (13 casos). Os locais de ocorrência foram: cavidade oral (quatro casos), esôfago, pulmão e faringe com dois casos cada; e um caso em mama, laringe e melanoma da pele. A utilização de radioterapia ou quimioterapia no tumor primário não aumentou o risco de surgimento de segundo câncer primário. Os autores concluem que a ocorrência de tumor segundo primário em pacientes com carcinoma espinocelular de cabeça e pescoço não é incomum e, devido a isto, merecedor de insistente acompanhamento ambulatorial, clínico e endoscópico.
Abstract:
The concept that a patient could develop cancer twice was first put forward by Billroth. This study, in a retrospective way examines 125 patients with squamous cell carcinoma of the head and neck, that were treated by surgery, and some receive radiation and chemotherapy, between 1993 and 1996. The second primary rate was 10.4% (13 cases). The sites for second tumors were: oral cavity (four cases), esophagus, lung and oropharynx with two cases; and one case in larynx, breast and skin's melanoma. Radiation and chemotherapy to the index tumor was not associated with an increased risk of developing a second tumor. The authors conclude that second primary tumor in patients with squamous cell carcinoma of head and neck are not uncommon and must have a closely ambulatory follow-up with clinical and endoscopy evaluation.
INTRODUÇÃO
Theodor Billroth, há mais de 100 anos, foi o primeiro a sugerir que pacientes curados de um tumor poderiam, mais tarde, desenvolver um segundo1. Com o aumento do diagnóstico precoce, maior utilização de tratamento multimodal e controle da doença, surgiu a possibilidade crescente de desenvolvimento de nova neoplasia. Desta forma, nos últimos 30 anos, a ocorrência de segundo tumor no mesmo paciente deixou de ser acontecimento incomum2. Os critérios para definir um tumor como segundo primário foram estabelecidos por Warren e Gates3 e incluem as seguintes características: a) o tumor deve ser claramente maligno pelo exame histológico, b) cada tumor deve estar em posição geográfica distinta e não conectada por alterações de submucosa ou intraepiteliais e c) deve ser excluída a possibilidade de metástase. Slaughter et al.4 apresentaram o conceito de field cancerization para tentar explicar a presença de múltiplas lesões primárias. De acordo com este conceito, o uso prolongado e intenso de certos agentes (álcool, tabaco etc.) produz efeito carcinogênico na superfície de contato, em que o epitélio pré-condicionado é ativado de forma difusa, permitindo que múltiplos grupos celulares iniciem processo de transformação maligna irreversível. Demonstrou-se que o uso de isotretinóide (ácido 13-cis-retinóico) foi eficaz em diminuir a incidência de tumor segundo primário, embora não prevenisse a recorrência do tumor original5.
É difícil determinar a incidência de câncer segundo primário. Os relatos mais recentes na literatura apresentam porcentagens que oscilam entre 10% e 25%6, 7. Este estudo tem por objetivo determinar a incidência de tumor segundo primário em pacientes com carcinoma epidermóide em cabeça e pescoço, operados nó Serviço de Oncologia do Hospital Nossa Senhora das Graças de Curitiba/ PR.
MATERIAL E MÉTODO
Através da análise de prontuários, foram avaliados, retrospectivamente, 125 pacientes com carcinoma epidermóide em cabeça e pescoço, operados neste Serviço entre janeiro de 1993 e janeiro de 1996. Maiores detalhes da amostra podem ser observados na Tabela 1. Os pacientes foram divididos, em relação ao sítio primário da lesão, em cavidade oral (lábio, mucosa bucal, gengiva, trígono retromolar, assoalho da boca, palato duro e os 2/3 anteriores da língua), laringe, orofaringe, hipofaringe e outros (glândulas salivares maiores, seios paranasais e nasofaringe). A variação da idade foi de 18 a 80 anos com média de 56,3 anos.
Os critérios para diagnóstico de tumor segundo primário basearam-se nos propostos por Warren e Gates, cone modificações realizadas por fones et al.8: a) ambos es tumores foram diagnosticados como malignos em exame histológico, b) as lesões estavam separadas por distância mínima de 2 cm de mucosa normal. A presença de displasia nesta mucosa foi considerada aceitável. A ocorrência de segundo tumor no mesmo local do primeiro após intervalo de cinco anos também foi considerada como tumor segundo primário e c) todos os esforços foram feitos para excluir a possibilidade do segundo primário representar metástase do tumor inicial. Com relação às lesões pulmonares, este estudo baseou nos critérios utilizados por Jones et al.8, onde carcinoma pulmonar na presença de tumor de cabeça e pescoço T1 ou T2, sem metástase regional, foi considerado como segundo tumor primário. Da mesma forma, se um tumor prévio de cabeça e pescoço foi tratado sem evidência de recorrência, a presença de carcinoma de pulmão foi considerada como segundo primário. Entretanto, lesões avançadas de cabeça e pescoço, com metástase em linfonodos cervicais e ocorrência simultânea de tumor pulmonar, foram consideradas metastáticas. O tempo médio de seguimento dos pacientes, através de anotações dos prontuários, foi de 25 meses, sendo o mínimo de 12 meses após a primeira cirurgia.
RESULTADOS
Dos 125 pacientes operados com carcinoma espinocelular de cabeça e pescoço, 13 (10,4 %) apresentaram segundo tumor primário. A idade destes variou entre 48 e 79 anos (média = 62,9 anos). As características do grupo com tumor segundo primário são mostradas na Tabela 2. O tipo histológico mais freqüente foi o carcinoma espinocelular (11 casos), havendo também um adenocarcinoma de mama e uni melanoma de região inguinal. Outros tumores malignos de pele (carcinoma basocelular e espinocelular) não foram considerados nesta pesquisa. O local mais freqüente de tumor segundo primário foi a cavidade oral, com quatro casos. Os demais sítios foram: orofaringe, esôfago e pulmão, com dois casos cada, e laringe, mama e melanoma de pele, com uma ocorrência. A Tabela 3 compara o sítio do tumor inicial em relação ao segundo primário.
O intervalo médio observado entre a cirurgia do tumor primário e o diagnóstico do segundo tumor primário foi de 22 meses. Entretanto, a mediana foi de 11 meses. Este fato se deve a dois pacientes cujos intervalos foram de 110 e 63 meses, respectivamente.
A persistência do tabagismo entre os pacientes com tumor segundo primário foi zero. Não obstante, houve persistência acima de 10% nos pacientes que não tiveram tumor segundo primário.
Entre os pacientes que receberam quimioterapia (pré e/ou pós-operatória), três de 33 desenvolveram segundo tumor primário, comparado com 10 em 92 que não receberam. Esta diferença não foi estatisticamente significativa. De 59 pacientes submetidos à radioterapia (pré e/ou pós-operatória), 7 tiveram segundo tumor, comparado com 6 de 66 que não receberam radioterapia; esta diferença também não foi estatisticamente significativa.
DISCUSSÃO
A incidência de tumor segundo primário em 125 pacientes submetidos a procedimento cirúrgico (excluíram-se os pacientes terminais, bem como os que receberam apenas tratamento não cirúrgico como radioterapia e quimioterapia) e acompanhados por período médio de 25 meses foi de 10,4%.
Em estudo semelhante, realizado no Memorial Sloan-Kettering Cancer Center9, avaliando 114 pacientes com carcinoma epidermóide avançados de cabeça e pescoço (estádios III e IV), submetidos à cirurgia, acompanhada ou não de radio e/ou quimioterapia, 16 desenvolveram segundo tumor primário (14 %), sendo o de esôfago o local mais freqüente, com sete casos (44%). No atual estudo, o sítio com maior incidência de segundo tumor primário foi a cavidade oral (38%). No trabalho realizado por Jones et al., com 3.436 pacientes cujo tumor inicial era um carcinoma espinocelular de cabeça e pescoço, 274 (9,1%) desenvolveram segundo tumor primário em seguimento prospectivo de 372 meses. O tempo médio para surgimento do segundo tumor foi de 36 meses e o sítio mais freqüente foi o pulmão (34%).
Segundo o conceito de Batsakis10, o local do tumor segundo primário é determinado por fatores comuns, como o consumo de álcool e o tabagismo. Este conceito é sustentado na presente pesquisa. De cinco pacientes com tumor inicial em cavidade oral que desenvolveram segundo tumor primário, três foram novamente em cavidade oral e um em esôfago. Dos 13 pacientes com câncer segundo primário, 10 eram tabagistas com mais de 20 anos/ maço e etilistas. A persistência do tabagismo foi observada em 11% dos casos. A hipótese de que o hábito de fumar persista naqueles pacientes que recebem tratamento menos agressivo e possuem doenças em estadio inicial foi demonstrado por Ostroff et al.11. Estes autores correlacionam a percepção da seriedade da doença com o estímulo de parar o tabagismo nos pacientes que se submetem a grandes cirurgias e radioterapia pós-operatória, acrescentando que o comprometimento funcional e a xerostomia provocados pelo tratamento também contribuem para a cessação do tabagismo. Entretanto, a persistência do tabagismo entre os pacientes que tiveram segundo câncer primária foi nula nesta pesquisa. Vikram et al.9 demonstraram que a incidência de segunda neoplasia não é influenciada pela fato de os pacientes pararem ou não de fumar, quando compararam os submetidos à laringectomia total (presumindo-se que percam a capacidade funcional de inalar a fumaça de tabaco) com aqueles que não foram laringectomizados.
A sobrevida dos pacientes com tumor segundo primário não foi avaliada neste estudo. Jones et al. demonstraram estatisticamente que a sobrevida não foi influenciada pela presença de segundo primário, mas sim pela idade avançada, estado nodal, sítio da lesão primária (melhor em laringe e cavidade oral, pior em faringe) e a presença de segunda primário fora da região da cabeça e pescoço.
Atualmente, discute-se a realização de pan-endoscopia (laringoscopia direta, broncoscopia e esofagoscopia) na avaliação de pacientes com câncer de cabeça e pescoço. Haughey et al.12, em revisão de 24 estudos sobre tumor segundo primário de cabeça e pescoço, mais sua própria série retrospectiva com 5.246 pacientes, demonstraram que estudos prospectivos com pan-endoscopia tiveram rendimento 2,5 vezes maior que os estudos retrospectivos em que a pan-endoscopia não foi utilizada de rotina.
Em conclusão, o presente estudo demonstrou que 10,4% dos pacientes com tumor espinocelular de cabeça e pescoço, submetidos à cirurgia neste Serviço, apresentaram segundo tumor primário. Esta porcentagem, provavelmente, seria maior se fossem incluídos os pacientes tratados apenas com radioterapia e aumentado o tempo de acompanhamento dos pacientes que participaram da amostra.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. BILLROTH, T. - Ein Gesamtbericht über die chirurgische kliniken in Zürich und Wien wãhrend der jahre 1870-1876. Erfahrungen auf dem gebiete der prakriscben chirugie, Berlin: Hirschwald, 1879. 258.
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3. WARREN, S.; GATES, O. - Multiple primary malignant tumors: survey of the literature and statistical study. Am j Cancer, 16: 1358-414, 1932
4. SLAUGHTER, D. P.; SOUTHWICK, H. W.; SMEJKAL, W. - Field Cancerization in Oral Stratified Squamous Epithelium: Clinical Implications of Multicentric Origin. Cancer, 6: 963-68, 1953.
5. HONG, W. K. ET AL. - Prevention of second primary tumors with iostretinoin in squamous-cell carcinoma of the head and neck. N Engl J Med, 323: 795-800, 1990
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10. BATSAKIS, J. G. - Tumors of the head and neck, 2nd ed, Baltimore, Williams & Williams, 1979. 171-2.
11. OSTROFF, J. S.; JACOBSEN, P. B.; MOADEL, A. B. - Prevalence and Predictors of continued tobacco use after treatment of patients with head and neck cancer. Cancer, 75: 569-76, 1995.
12. HAUGHEY, B. H.; GATES, G. A.; ARFKEN, C.L. - Metaanalyis of second malignant tumors in head and neck cancer: The case for an endoscopy screening protocol. An. Oto. Rhin. Laring., 101, 105-12, 1992.
* Médico do Serviço de Oncologia do Hospital Nossa Senhora das Graças - Curitiba / PR
** Doutorando em Medicina na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
*** Acadêmico de Medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
**** Cirurgião de Cabeça e Pescoço do Serviço de Oncologia do Hospital Nossa Senhora das Graças - Curitiba/ PR
Trabalho realizado no Serviço de Oncologia do Hospital Nossa Senhora das Graças (HNSG) - Rua Alcides Munhoz, 433 - Mercês - CEP 80810-990 - Curitiba/ PR
Artigo recebido em 30 de junho de 1997. Artigo aceito em 22 de julho de 1997.