Versão Inglês

Ano:  1959  Vol. 27   Ed. 3  - Maio - Junho - ()

Seção: Trabalhos Originais

Páginas: 45 a 51

 

CORPOS ESTRANHOS DA TUBA AUDITIVA

Autor(es): PAULO MANGABEIRA-ALBERNAZ - Professor da Clínica Otorrinolaringológica do Escola Paulista de Medicina, S. Paulo

Em sua monografia, dada à estampa em 1920, já dizia Roure que "quase tôdas as cavidades naturais do homem e da mulher, mesmo as que parecem mais inaccessíveis, são suscetíveis de ser a sede dos mais diversos corpos estranhos. A tuba auditiva não foge a esta regra".

Ainda assim, os corpos estranhos da tuba são da maior raridade, conquanto haja alguns que são encontrados com freqüência maior.

Ao tempo em que era de uso corrente a dilatação da tuba por meio de sondas de barba de baleia, goma endurecida, celulóide, prata virgem ou ouro, tornou-se relativamente comum a observação do encontro de fragmentos destes instrumentos no referido canal. Quase sempre o especialista percebia o fato no momento do acidente, e tratava de fazer a extração do corpo estranho. Houve, porém, casos em que a presença do fragmento passou despercebida. Tal o caso, relatado por Hastings, em que o fragmento de uma sonda de ouro permaneceu in situ por vinte anos, e foi encontrado casualmente no curso de um esvaziamento petromastoídeo.

No momento presente, têm sido assinalados certos casos de um tipo de corpo estranho, que se poderia classificar de profisional. É o caso das partículas de solda. A solda líquida, projetada dos aparelhos, atinge o meato acústico e a cavidade timpânica, e pode localizar-se na tuba. Desta espécie são os casos de Mc Naught (1948) e de Compere (1959).

Segundo o parecer, baseado na experiência clínica, de Heerman e de Mosher, os casos de queimaduras por metais em fusão apresentavam evidente tendência a tornar-se muito freqüentes. No entanto, as lesões não iam além da caixa do tímpano, tanto que nem Heerman nem Mosher observaram um só caso de partícula de solda na tuba auditiva.

O estudo acurado dos casos publicados na literatura, leva-nos a considerações de natureza vária.

Em primeiro lugar, o número de casos. Pesquisa sistematizada na literatura universal revelou haver entre publicados e apenas meniconados, 61 casos de corpo estranho na tuba auditiva, desde o caso de Albers (1838) até começos de 1959. Como se vê, o número é expressivamente reduzido, para o espaço de cento e vinte e um anos.

Em segundo lugar, o corpo estranho mais vêzes encontrado foram de fato os fragmentos de catéter ou de sonda, de que a literatura, desde 1869 (caso de Wendt), registra até hoje (o último caso é o de Mangiaracina, de 1940), dezenove casos. Depois dêstes, o corpo estranho mais observado foram vermes do gênero ascaris - 5 casos, dos quais o mais recente é o de Takahashi (1937).

O tipo dos corpos estranhos pode obedecer a uma certa sistematização. Começaremos pelos que são introduzidos por manobras terapêuticas, feitas pelo especialista. Ocorrem, já o vimos, em primeiro lugar, os fragmentos de sonda de qualquer tipo. Vem, a seguir: 2) fragmentos de estilete para a tuba (caso de Ersner); 3) fragmento de cureta (dois casos ainda de Ersner); 4) tampões de algodão (casos de Haug, de Mc Naught); 5) luminárias (casos de Meyer, de Houton); 6) bico de seringa de borracha (caso de Schalle).

Ainda, entre os animados, citarei o caso de uma môsca, de Oki (1931), e o de Papale, de larvas, que, da caixa, foram à rinofaringe.

Outros casos não são fáceis de conceber tais os de restos de alimentos (casos de Mosset, de Wolf, de Scheibe) e de cristais de cloreto de sódio (caso de Pappenheim).

Um caso ligado à patologia aural, é o de um sequestro ósseo, relatado por Urbantschisch.

Chegamos, por fim ao grupo de corpos estranhos que poderíamos rotular de singulares. Trata-se, em verdade, de verdadeiras extravagâncias. Comecemos pelos metálicos: 1) bala (caso de Ersner); 2) agulha de costura (casos de Albers e de Schwartze); 3) prego de 12 milímetros (caso de Shade); 4) partículas de solda (casos de Mc Naught e de Compere).

Vejamos agora os vegetais: 1) fragmentos de hastes de palha (caso de Urbantschitsch, de Camerer, de Federschmidt, de Fleishmann, de Pifl). Neste último caso, uma haste de capim causou mastoidite, meningite e morte; 2) semente de cereja (caso de Trautmann); 3) grão de aveia (caso de Urbantschitsch).

Restam três casos à parte: 1) pena de ganso (caso de Delstanche); 2) pena de corvo (caso de Heckscher); 3) fragmento de lápis de ardósia (caso de von Hasselt).

O diagnóstico do corpo estranho da tuba depende, é claro, das condições em que êle penetra. Há casos em que o paciente tem pleno conhecimento do que sucedeu; ou o especialista, no caso de corpo estranho resultante de manobras cirúrgicas. Em outros casos - corpos estranhos metálicos - a otite média supurativa, resultante de sua presença, leva ao radiodiagnóstico, e êste demonstra a existência do fragmento rádio-opaco.

Em muitos casos, porém, o diagnóstico ou é uma surprêsa cirúrgica ou uma surprêsa necroscópica. No caso de Hastings, só a operação permitiu vir-se a ter conhecimento do corpo estranho. Nos de Pifl e de Urbantschitsch (grão de aveia), os corpos estranhos foram descobertos na necroscópia, sendo que, no segundo caso, o paciente não apresentou, durante a vida, sinais clínicos de sua existência.
O corpo estranho da tuba pode atingir o dueto tanto pela extremidade rinofaríngica, como pela timpânica. Não é, porém, obrigado a seguir a via tubal, podendo penetrar em qualquer parte do dueto, sem fazê-lo por qualquer dos dois óstios. Já se vê que esta última hipótese é muito menos freqüente do que a citada em primeiro lugar. É aliás extremamente fora do comum que o corpo estranho penetre na tuba sem ser por um dos dois óstios.

O tratamento está na dependência do diagnóstico. Nos casos de corpos estranhos cirúrgicos, o tratamento é feito imediatamente, e também é cirúrgico. No seu caso, Mangiaracina idealizou um aparelho muito curioso, que, posto a funcionar por dentro de um catéter de Itard e sob fiscalização do rinofaringoscópio, permitiu a apreensão e a retirada do fragmento de sonda. No caso n.º 5 de Ersner, de uma ponta de cureta tubal, a radical foi feita e, só com muita dificuldade, e após repetidas tentativas, pôde o corpo estranho ser removido.

Conforme a espécie de corpo estranho a sondagem ou a pressão aplicada, quer em um, quem em outro dos óstios, pode lançar para fora do dueto o elemento a desalojar. No caso de Compere,
a partícula de solda pôde ser, com dificuldade, forçada, por via rinofaríngica, para dentro da cavidade timpânica, de onde veio a ser retirada, por meio de aspirador através da perfuração, já existente, da membrana.

A verdade é que representa sério problema, na maioria dos casos a remoção de corpos estranhos da tuba auditiva.

As considerações que se acabam de ler foram determinadas por um caso extremamente singular dêste gênero de corpos estranhos, que nos veio cair às mãos.

O menino José Tadeu M., de 5 anos de idade, residente em Jau, apareceu em nossa clínica particular no dia 3 de junho de 1958, acompanhado pelo progenitor. Desde meados de novembro do ano anterior sofria a criança de supuração profusa e rebelde do O.D.

Foi, logo que adoeceu, levado a um médico, que prescreveu umas injeções (que o pai não sabe informar de que eram), e gotas para instilar no meato acústico externo. No caso de não melhorar, disse o médico, tornava-se necessária a intervenção cirúrgica. As melhoras não se verificaram, e foi a criança levada a um especialista que passou a fazer curativos diários, tratamento sob o qual permaneceu durante um mês. Foi prescrito, ao mesmo tempo, o uso de terramicina em injeções, de que foram aplicadas seis. O tratamento arrastou-se por mais trinta dias, mas o resultado foi pouco apreciável. Resolveu o pai levar o filho a outro especialista, que indicou operação imediata, pois, encontrou no meato, um pequeno pólipo. Sob anestesia geral foi feita a extirpação dêste, e foi prescrito o uso de vacina antipiogênica. Como o especialista tivesse falecido, o pai da criança tomou a resolução de trazê-la a Campinas. Procurou um otologista que, após exame cuidadoso, solicitou o exame radiográfico. As radiografias foram feitas; nada revelaram de especial. Havia já nova formação poliposa, que foi extirpada. A criança após alguns curativos, voltou para casa, com a ordem de apresentar-se novamente ao especialista, no prazo de vinte a trinta dias. A supuração continuou profusa e constante. Foi então que, por indicação de um colega, o pai resolveu trazer o doentinho a nosso serviço, pois a secreção era tão abundante que exigia limpeza três vêzes por dia.
O exame revelou tratar-se de um menino pálido e mal nutrido. O exame especializado nada deixou perceber de anormal para o lado das fossas nasais, da bôca, da garganta. O.D. Secreção purulenta amarela, um tanto condensada, de odor pouco perceptível. Após enxugamento, apareceu logo, na parte média do meato acústico externo, um pólipo róseo, que obliterava por completo a luz do canal. Foi pedido o exame radiográfico. Como já havia sido feito havia um mês, o pai do doentinho apresentou as rádios, nas três incidências: de Schueller, de Stenvers, de Mayer. O estudo acurado das chapas revelou que: 1.º - o sistema pneumático do temporal direito apresentava-se bem desenvolvido; 2.º - não havia diferença de transparência entre os lados direito e esquerdo, cujo aspecto, aliás era normal; 3.º - não havia veladura ou áreas suspeitas de osteíte ou de destruição óssea na região da cavidade timpânica, do aditus ou do antro; 4.º - apenas na incidência de Mayer, a região da cavidade timpânica direita apresentava transparência diminuída, o que se tornava mais evidente por comparação com o lado esquerdo. Devemos aliás declarar que isto não nos mereceu maior importância, dada a história clínica do caso.

Diante disso, foi prescrito novamente tratamento, durante trinta dias, com vacina antipiogênica lisada, em injeções subcutâneas de 1 cm3, feitas em dias alternados.

Findo o prazo, apresentou-se o doentinho nas mesmas condições: grande pólipo no meato acústico, supuração algo abundante.

O aspecto radiográfico não permitia a indicação operatória, mas a evolução do caso nos levou a aconselhá-la e levá-la a efeito.

A criança sob anestesia potencializada, combinada a anestesia local, foi submetida a esvaziamento petromastoídeo econômico, pela técnica intra-aural de Lempert (6-VII-1958). Exposta a bigorna, parecia normal. Aberto o epitímpano, nada havia de estranho além do edema intenso da mucosa. A membrana estava largamente perfurada. Extraídos a bigorna e o martelo, passou-se à limpeza da cavidade timpânica, cheia de fungosidade embora os ossículos estivessem em perfeito estado. Ao ser feita a curetagem da mucosa infiltrada da parte inferior da cavidade, surgiu à vista algo de insólito: uma fita, como um ligamento, que provinha da tuba ou de sua vizinhança imediata. Com um aumento de seis diâmetros, foi estudada a estranha formação o que aliás, não permitiu compreender-lhe a espécie. Por exploração com um estilete agudo fino, observou-se pequeno movimento. Diante disso, foi feita a apreensão e, atraída para cima e para fora, com todo cuidado, pôde a pequena haste ser retirada da cavidade. Era já evidente que se tratava de corpo estranho que da trompa passava à cavidade timpânica. Uma vez extraído, verificou-se, após limpeza das secreções, tratar-se de pequeno fragmento ponteagudo de madeira.



A operação foi terminada com a adaptação do retalho, O tratamento pós-operatório seguiu os trâmites normais, ficando o pequeno completamente curado ao cabo de uns quarenta dias.

Só depois da operação, é que fomos apurar de que modo corpo estranho daquele tipo pudera vir localizar-se na tuba auditiva, invadindo já a cavidade timpânica. Narrou-nos o pai da criança que, a 6 de novembro de 1957, estava ela brincando, trazendo na bôca uma haste de madeira (pinho), das usadas nos chamados sorvetes de pauzinho (ou picolés), quando caiu de bruços e a lâmina veio a penetrar nos tecidos. A mãe, acudindo à criança, arrancou o fragmento de madeira, e levou-a, com a bôca tôda ensanguentada a uma farmácia, onde aplicaram água oxigenada. Com isso a hemorragia cessou. No dia seguinte, começou a manifestar-se processo inflamatório, localizado na parte inferior ao pavilhão auricular direito, e a criança não conseguia abrir a bôca, queixando-se ainda, de dores intensas. Levada a um clínico geral, êste diagnosticou parotidite epidêmica e prescreveu aplicações locais e injeções de penicilina, em número de quatro ou cinco. O processo foi regredindo mas, quatro dias depois, surgiu supuração no O.D. E começou então a história da otite média purulenta já narrada no comêço da observação.

É evidente que, ao cair a criança e haver a penetração da haste de madeira no véu, uma lasca ficou retida na região da trompa, vindo a penetrar na cavidade timpânica. O corpo estranho devia ter atingido o dueto em sua parte mais próxima do aparelho aural.

O diagnático, no caso só poderia ter sido feito, como o foi, durante a intervenção. Mesmo que o especialista viesse a ter conhecimento do acidente primitivo, não lhe poderia ocorrer à idéia que uma haste de pinho pudesse estar implantada na tuba auditiva, ainda mais quando, em todos os casos conhecidos de corpos estranhos deste canal, nem um siquer era de tipo semelhante ao que ora foi descrito.

O corpo estranho permaneceu in loco por oito meses.

SUMÁRIO

Os corpos estranhos da tuba auditiva são verdadeira raridades. Entre os casos relatados e os apenas mencionados, registra a literatura universal, de 1838 até a época presente (jan. 1959), nada mais que 61 casos.

Os corpos estranhos mais freqüentes foram, em certa época, os fragmentos de sondas, que se partiam em manobras terapêuticas. Há casos verdadeiramente singulares, como um prego, uma agulha de costura, fragmento de penas de ave, etc.

O caso ora referido, único no gênero, é de uma lasca de pinho que, num acidente, penetrara pelo véu palatino. Determinou otite média supurada rebelde, com formação de pólipos recidivantes, o que exigiu o esvaziamento hetromastoídeo, após oito meses de permanência. No ato cirúrgico foi achado o corpo estranho, que mediu 27,5 milímetros de comprimento, encravado na tuba.

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