Versão Inglês

Ano:  1997  Vol. 63   Ed. 4  - Julho - Agosto - (14º)

Seção: Como eu trato

Páginas: 402 a 404

 

A importância do refluxo gastroesofágico como causa de manifestações otorrinolaringológicas tem sido supra ou infra-valorizada?

Autor(es): 1 - EVALDO DACHEUX DE MACEDO FILHO
2 - WERNER SCHMIDT-HEBBEL

1 - EVALDO DACHEUX DE MACEDO FILHO

A Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE) apresenta amplo espectro de manifestações clínicas, incluindo-se todos os sintomas e as muitas formas de dano tissular secundárias aos conteúdos do material refluído, as quais estão sub-divididas em dois grandes grupos as manifestações esofageanas e as manifestações extraesofageanas (Castell, 1991). As manifestações otorrinolaringológicas (ORL) já vêm sendo referidas desde o século passado, como citado em trabalhos de Virchow (1858), Mackenzie (1880), e também no início deste século, com Chevalier-Jackson (1928).

O interesse da comunidade otorrinolaringológica brasileira pelo assunto tem sido presente e crescente nos últimos quatro anos, quando se passou a observar trabalhos científicos, conferências e mesas redondas a respeito, o que tem valorizado a comprovação crescente da presença da DRGE em muitos casos de pacientes com queixas crônicas faringo-laringológicas e com lesões laringológicas, notadamente localizadas em suas regiões posteriores (Olson, 1991), tais como: granuloma, úlcera de contacto, paquidermia da parede posterior, hiperemia de aritnóides e outras.

Alguns aspectos práticos e polémicos, no entanto, devem ser discutidos:

 Será que estamos superestimando a suspeita da presença de RGE em nossos pacientes?

 Será que estamos interpretando corretamente os achados laringoscópicos?

 Será que estamos fazendo o diagnóstico correto da presença de RGE nos casos suspeitos?

 Será que estamos tratando corretamente nossos pacientes, após o diagnóstico comprovado da presença de RGE?

Percebemos que as questões acima são complexas e difíceis de serem respondidas no âmbito desta revista, porém algumas observações objetivas devem ser feitas.

As manifestações ORL da DRGE devem sempre ser suspeitas nos casos de pacientes com queixas crônicas faringo-laringológicas, desde que, após minuciosa avaliação ORL destes pacientes, sejam afastadas outras entidades clínicas.

O correto diagnóstico laringoscópico é imperativo para interpretarmos quais lesões laringológicas devem ser suspeitas ou correlacionadas com RGE. Por exemplo, para o profissional da voz, falada ou cantada, com úlcera de contacto em processo vocal, deve ser avaliada a presença de síndrome de abuso vocal em seu comportamento, sem, no entanto se, esquecer de que o RGE pode ser importante fator adjuvante, iniciante ou complicante dessa situação.

Os métodos de que dispomos para o diagnóstico do RGE estão divididos em dois grupos: a) para o diagnóstico da presença de RGE e b) para o diagnóstico das lesões decorrentes do RGE. A monitorização do pH intra-esofágico de 24 h (pHmetria de 24 h) é o método mais sensível e específico, principalmente se for realizado com cateter de duplo canal (Jacob e col., 1991; Koufman e col., 1996).

O estudo radiológico contrastado de esôfago (esofagograma) e a cintilografia são pouco sensíveis e pouco específicos. O diagnóstico através de endoscopia digestiva alta é o mais sensível e específico para o diagnóstico da presença de lesões esofágicas causadas pelo RGE. Os exames endoscópicos negativos que não mostram lesões, devido a mecanismos esofágicos protetivos eficientes, não afastam a possibilidade da presença de RGE patológico causando manifestação extra-esofágica. Recomendamos aos nossos pacientes na investigação de DRGE com manifestação ORL, como procedimento inicial, a endoscopia digestiva alta, em razão de sua fácil disponibilidade, praticidade e alta positividade diagnóstica (Macedo-Filho e col., 1995). Quando a EDA for normal, sugerimos pHmetria de 24 h.

O tratamento é etapa importante e fundamental, que deve ser corretamente orientada pelos colegas otorrinolaringologistas. Para o bloqueio da secreção ácida, utilizamos os bloqueadores de bomba de prótons em dose dupla, associados a drogas pró-cinéticas de última geração, por período inicial de três meses, seguidos por manutenção por até um ano (Kahrilas, 1996). Geralmente, notamos que o insucesso terapêutico se deve ao tratamento pouco eficiente inicial (dose incorreta) e de curta duração (Hanson e col.). As lesões laringológicas terão indicação de tratamento microcirúrgico, após avaliação individualizada de cada caso e acompanhamento multidisciplinar (ORL Fonoterapia), como por exemplo nos casos de úlceras de contato, granulomas e leucoplasias.

Em conclusão, percebemos que as manifestações ORL da DRGE apresentam mecanismos fisiopatológicos complexos, além de diagnóstico e tratamento difíceis. Como se trata de assunto palpitante e atual, deve receber especial atenção de nossa parte, os especialistas, para que não incorramos em menor ou maior valorização de sua participação na apresentação clínica de nossos pacientes.

2 - WERNER SCHMIDT-HEBBEL

A importância do refluxo gastro-esofágico como causa de manifestações otorrinolaringológicas tem sido supra ou infravalorizada?

Em 1968, foram publicados, simultaneamente, o primeiro relato clínico e a primeira evidência experimental a respeito de alterações laríngeas secundárias a refluxo gastro-esofágico. Desde então, essa associação tem sido aceita e foram incluídas outras manifestações otorrinolaringológicas além das laríngeas.

Porém, até hoje, não há comprovação dessa associação, que não apresenta qualquer característica típica que permita o diagnóstico.

Em primeiro lugar, as queixas dos pacientes, no caso, não diferem das apresentadas por outros com as mesmas lesões, porém de etiologia diferente.

Os sintomas de esofagite ou de regurgitação são raros nos pacientes com manifestações otorrinolaringológicas atribuídas ao refluxo gastro-esofágico, assim como os achados de exame subsidiário que comprovem a esofagite de refluxo.

Além disso, as próprias alterações otorrinolaringológicas não são patognomônicas do refluxo gastro-esofágico, pois seu aspecto físico e histopatológico sobrepõe-se perfeitamente às secundárias a outros fatores etiológicos.

Algumas causas de refluxo gastro-esofágico também são consideradas como sendo das próprias alterações otorrinolaringológicas atribuídas ao refluxo gastroesofágico, ficando difícil estabelecer qual mecanismo prepondera. Por exemplo, a leucoplasia tem sido considerada conseqüência do refluxo gastro-esofágico em fumantes e etilistas, pois o consumo de tabaco e de álcool propiciaria o refluxo. Particularmente nesses pacientes, é muito mais plausível que a leucoplasia seja provocada pela ação direta destes agentes na mucosa laríngea-do que pela via indireta, propiciando o refluxo.

O modelo fisiopatológico das manifestações ligadas ao refluxo também é controvertido. A teoria mais em voga atualmente propõe que a ação direta do líquido refluído sobre a mucosa da laringe, faringe e cavidade nasal provoque as alterações nessas estruturas (neste caso, seria mais adequado falar em refluxo gastro-laríngeo, gastrofaríngeo ou gastro-nasal). Levando em conta esta teoria, a pH-metria ambulatorial de 24 horas faríngea, associada à esofágica baixa, seria o exame subsidiário mais apropriado; porém, sua sensibilidade é questionável em razão de fatores técnicos, como o ressecamento da ponta de prova, a presença de secreção nas vias aéreas superiores e ao fato de a faringe constituir espaço real, podendo ocorrer refluxo sem haver contato do mesmo com a sonda.

Outra teoria afirma que a irritação esofágica causada pelo refluxo levaria ao pigarro, devido a reflexo vagal, o que provocaria as lesões da região posterior da região glótica. Neste caso, a pH-metria esofágica baixa seria o exame subsidiário mais adequado. Esta teoria não fornece explicação plausível para outros sintomas otorrinolaringológicos, como disfonia e manifestações otológicas.

Por outro lado, o valor da pH-metria, como exame padrão para o diagnóstico de refluxo gastro-esofágico, é polêmico, porque ela apenas demonstra o refluxo de ácido clorídrico, o qual, segundo algumas evidências, não é tão agressivo como a bile e enzimas proteolíticas, que podem estar presentes no suco gástrico devido a refluxo duodeno-gástrico.

Outros exames subsidiários, como a manometria, a endoscopia digestiva alta e o videodegluto-esofagograma apresentam sensibilidade e especificidade inferiores aos da pH-metria ambulatorial de 24 horas.

Os trabalhos publicados apresentam resultados terapêuticos promissores com o uso prolongado e em doses elevadas de bloqueadores de H2 ou inibidores da bomba de prótons. Do ponto de vista metodológico, todas essas publicações apresentam falhas, como a utilização de grande gama de métodos diagnósticos não uniformizados, a inclusão prévia de pacientes selecionados e/ou não randomizados, a ausência de grupo controle, usando placebo e análise estatística inadequada. Portanto, as conclusões desses estudos, inclusive as do primeiro relato a respeito desta associação, publicado em 1968, devem ser vistos com desconfiança quanto ao valor do valor científico.

Portanto, atualmente, esta associação de manifestações otorrinolaringológicas com refluxo gastro-esofágico não tem comprovação científica. Como a Medicina baseia-se em fatos comprovados e não apenas em suposições, podemos dizer que a importância do refluxo gastro-esofágico como causa de manifestações otorrinolaringológicas tem sido supravalorizada. É certo que este assunto merece investigação profunda, com estudos baseados em premissas científicas, para poder responder às dúvidas que se levantam a seu respeito. E isso só será possível com estudos envolvendo número adequado de pacientes, o que, por sua vez, só será exeqüível com a participação de várias instituições médicas.

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