Versão Inglês

Ano:  1997  Vol. 63   Ed. 4  - Julho - Agosto - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 312 a 316

 

AVALIAÇÃO OTONEUROLÓGICA EM PACIENTES HIV POSITIVOS.

Otoneurologic Evaluation in HIV-Infected Patients.

Autor(es): João Carlos Ceccarelli*,
Roberto Alcântara Maia**,
Silvia Lavor Floriano***,
Marisa Lemos****,
Laís Vieira Bonaldi****.

Palavras-chave: AIDS, eletronistagmografia

Keywords: AIDS, electronistagmography

Resumo:
O sistema cocleovestibular de 20 pacientes em fases iniciais ou assintomáticos com diagnóstico laboratorial de AIDS (Acquired Immunodeficiency Syndrome) foi avaliado através de testes otoneurológicos. A alta incidência de sintomas cocleovestibulares (55%) ocorreu associada á grande prevalência de alterações nos exames audiológicos (68%), e a menor, porém relevante, número de alterações nas provas calóricas do exame vestibular (20%). A ação direta do HIV (Human Immunodeficiency Virus) ou infecções oportunistas e drogas ototóxicas habitualmente utilizadas no tratamento de manifestações relacionadas ao HIV devem justificar esta alta incidência de alterações observadas.

Abstract:
The cocleovestibular system of 20 patients in the initial stage of the disease or asymptomatic with diagnosis of AIDS (Acquired Immunodeficiency Syndrome) was investigated by otoneurologic tests. The high incidence of cocleovestibular symptoms (55%) occured associated with high prevalence of alteration in audiologic tests (68%) and lows but considerable number of caloric tests alterations (20%). The direct action of HIV (Human Immunodeficiency Virus) or opportunistic infections and ototoxic drugs customary used for the treatment of HIV-related manifestations must justify the high incidence of these alterations observed.

INTRODUÇÃO

A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, conhecida pela sigla AIDS (Acquired Immunodeficiency Syndrome) foi reconhecida nos Estados Unidos da América no início da década de 80 (Centers For Disease Control, 1981) e desde então, assumiu o porte de pandemia.

É causada por vírus denominado da imuno-deficiência humana (HIV - Human Immunodeficiency Virus), o qual infecta as células dotadas do receptor CDB em sua membrana, como os linfócitos T4 (auxiliadores ou helper), causando alterações na resposta imunológica e repercussões em diversos órgãos e sistemas, propiciando o aparecimento de infecções oportunistas e neoplasias; sendo alguns dos efeitos atribuídos ao próprio vírus.

O Brasil apresenta o segundo maior número de casos de AIDS nas Américas (Organização Mundial de Saúde, 14-1-94), superado apenas pelos Estados Unidos da América.

As manifestações otorrinolaringológicas são comuns em qualquer estágio da doença, constituindo, às vezes, o primeiro sinal. As manifestações vestibulares têm sido pouco estudadas e pesquisadas nesses pacientes.

A finalidade desta pesquisa é a de avaliar, através da vectoeletronistagmografia (VENG), 20 pacientes com diagnóstico de AIDS, com base na classificação do COC (1986) - Centers for Disease Control (Atlanta - EUA).

REVISÃO DE LITERATURA

O termo AIDS foi usado pela primeira vez em 1981 (Centers for Disease Control - CDC, 1981, e GOTTLIEB et al., 1981) para designar a condição de intensa deficiência da imunidade celular que não podia ser explicada por causas conhecidas na época, mas que se acompanhava de infecções oportunistas graves, neoplasias pouco comuns e evolução inexorável ao óbito.

Segundo LEVY et al. (1985), o sistema nervoso é bastante acometido no decurso da infecção pelo HIV, cuja ação determina o complexo demencial da AIDS, a mais freqüente afecção do sistema nervoso central. O quadro caracteriza-se clinicamente por déficits cognitivos, principalmente de concentração e memória, e motores, poupando a linguagem, sendo referido como demência subcortical. Os autores, estudando as patologias que envolvem o sistema nervoso central na AIDS, concluíram ser a toxoplasmose a afecção oportunista mais comum nestes pacientes e relataram um caso de vertigem de causa central devido ao Sarcoma de Kaposi Metastático.

WECKX et al. (1989) concluíram que as manifestações bucofaríngeas mais freqüentes em 35 pacientes com AIDS, sintomáticos e assintomáticos, foram a leucoplasia pilosa e a candidíase oral.

ROSENHALL et al. (1989) estudaram as alterações otoneurológicas de 24 pacientes HIV positivos assintomáticos, sendo que seis haviam sido tratados para sífilis. Os autores relataram anormalidades na audiometria de tronco cerebral em 38% dos casos e nos testes oculomotores em 50% dos casos, concluindo que a disfunção oculta do sistema nervoso central é freqüente em pacientes assintomáticos.

HART et al. (1989) descreveram, como achados de biópsia cerebral de um paciente com encefalopatia por AIDS e tonturas incapacitantes, a presença de células gigantes multinucleadas ou mononucleadas infectadas com o vírus, degeneração mielínica cortical e subcortical cerebral, cerebelar e de todo o tronco cerebral.

KOHAN et al. (1990) revisaram o estudo tomográfico do osso temporal e do cérebro de 18 pacientes aidéticos com doença otológica. Propuseram que nos pacientes com disacusia neurossensorial, a tomografia computadorizada é útil para afastar como causa de patologia retrococlear a toxoplasmose e para o diagnóstico diferencial com ototoxicidade. Os autores enfatizaram a necessidade de obter uma história completa sobre o uso de medicações ototóxicas comumente usadas no tratamento destes pacientes. A vertigem encontrada poderia ser devida ao uso de aciclovir, antibióticos, aminoglicosídeos, anfotericina B, azidotimidina (AZT), fluocitosina, pentamidina, pirimetamina e sulfametaxazol-trimetoprim.

LUCENTE (1991), discursando sobre as manifestações otológicas em pacientes HIV positivos, citou que os efeitos do HIV sobre o VIII par craniano não foram totalmente elucidados, podendo ser decorrente do neurotropismo característico do vírus. Segundo o autor, a perda de audição neurossensorial é muitas vezes associada com meningites fúngicas, bacteriana, tuberculosa ou viral, ou do uso de medicações ototóxicas para tratar infecções oportunistas.

GLEICH et al. (1992) relataram que a taxa de incidência da otossífilis vem aumentando devido à AIDS, levando a sintomas de hídrops labiríntico e disacusia neurossensorial.

BROTO et al. (1994) relataram elevada incidência de alterações em testes oculomotores e em potenciais evocados auditivos de 30 pacientes aidéticos submetidos a avaliação otoneurológica.

BANKAITIS & KEITH (1995), estudando as alterações audiológicas em pacientes HIV positivos através de potenciais evocados auditivos e testes de processamento auditivo central; relataram elevada incidência de alterações. Discutiram a dificuldade de se poder afirmar se estes achados seriam decorrência da ação direta da doença nas vias auditivas ou conseqüência de ototoxicidade induzida pelas inúmeras drogas em uso por esses pacientes.

MATERIAL E MÉTODO

Este trabalho constitui-se do estudo otoneurológico padronizado no Setor de Otoneurologia do Hospital do Servidor Público Estadual - HSPE, de São Paulo/ SP, em 10 indivíduos HIV positivos, diagnosticados clínica e laboratorialmente pelo Serviço de Moléstias Infecciosas do mesmo Hospital, conforme os critérios do Centers for Disease Control. A faixa de idade dos pacientes variou entre 24 e 49 anos, com idade média de 38 anos, sendo 19 pacientes do sexo masculino e um do sexo feminino. Esses pacientes foram escolhidos aleatoriamente, sendo que se encontravam clinicamente assintomáticos ou em fases iniciais do desenvolvimento da doença.

Todos os indivíduos foram submetidos às seguintes avaliações:

1. Anamnese.

2. Exame otorrinolaringológico.

3. Exame audiológico:

3.1 Audiometria tonal e vocal.

3.2 Imitânciometria.

4. Exame vestibular.

Os pacientes foram instruídos a absterem-se de café, fumo, bebida alcoólica ou qualquer medicamento que pudesse interferir nas respostas, durante as 72 horas anteriores à realização do exame vestibular. É importante ressaltar que dos 20 pacientes analisados, 10 faziam uso de Zidovudine (AZT), quatro do Sulfametoxazol Trimetropin (Bactrim), dois de Pentamedina, um havia usado previamente Anfotericina B e um Didanoise (DDI).

4.1 Estudo do equilíbrio estático e dinâmico.

Os pacientes foram submetidos às provas de Romberg, Romberg-Barré, Unterberger e prova da marcha, com olhos abertos e fechados.

4.2 Vectoeletronistagmografia.

O estudo foi realizado com o vectoeletronistagmógrafo da marca Berger, modelo VN 106/3, utilizando-se o programa IV com três canais de registro, corrente alternada e constante de tempo igual a 1 segundo.

4.2.a Calibração dos movimentos oculares.

4.2.b Pesquisa do nistagmo espontâneo e semi-espontâneo.

4.2.c Pesquisa do rastreio pendular.

4.2.d Pesquisa do nistagmo optocinético.

4.2.e Prova rotatória pendular decrescente.

4.2.f Prova calórica.

Foi realizada a prova calórica padronizada por FITZGERALD & HALPIKE (1942), sendo utilizado o otocalorímetro da marca Berger, modelo OC-114.

Procedeu-se à,análise dos seguintes parâmetros de interesse à semiologia da função vestibular: ocorrência dos desvios às provas de equilíbrio estático e dinâmico; regularidade da calibração dos movimentos oculares; ocorrências e velocidade angular da componente lenta (VACL) máxima do nistagmo espontâneo e semi-espontâneo e tipo de rastreio pendular; ocorrência e VACL máxima do nistagno optocinético às rotações anti-horária e horária do tambor e cálculo da preponderância direcional; e ocorrência e VACL máxima do nistagmo per-rotatório. Em especial, na prova calórica; os parâmetros considerados foram a hiper-reflexia absoluta (valores de VACL superiores a 51%) e a hipo-reflexia absoluta (valores de VACL inferiores a 3%); e os parâmetros de normalidade para os cálculos de preponderância direcional do nistagmo e predomínio labiríntico foram determinados de acordo com ALMEIDA et al. (1987), que correspondem aos critérios adotados pelo Setor de Otoneurlogia do Hospital do Servidor Público Estadual, de São Paulo/ SP (preponderância direcional do nistagmo > ou = a 26% e predomínio labiríntico > ou = a 21%).

RESULTADOS

Os resultados dos sintomas referidos pelos pacientes encontram-se na Tabela I. O zumbido foi o sintoma mais freqüente, referido por 10 pacientes (50%); e nove pacientes (45%) não apresentaram queixas cocleares ou vestibulares. A vertigem foi relatada por sete pacientes (35%), sendo referida, ainda, hipoacusia em cinco pacientes (25%). A sensação de plenitude auricular ou pressão nos ouvidos foi referida por três pacientes (15%); tonturas não rotatórias por dois pacientes; e, cefaléia inespecífica por quatro pacientes (20%).

A Tabela II mostra os resultados obtidos no exame vestibular. Não foram encontradas quaisquer alterações nos seguintes testes: equilíbrio estático e dinâmico; nistagmo de posição; calibração dos movimentos oculares; nistagmo espontâneo; nistagmo optocinético; rastreio pendular; e prova rotatória pendular decrescente. Na prova calórica, a hiper-reflexia unilateral foi observada em um dos pacientes avaliados (5%); preponderância direcional significativa em um paciente; e predomínio labiríntico relevante em dois pacientes.

Quanto aos achados obtidos nos exames audiológicos, na audiometria tonal, dos 38 ouvidos avaliados, 20 exames apresentaram hipoacusia neurossensorial, seis apresentaram hipoacusia mista e 12 encontravam-se dentro dos limites de normalidade. O índice de reconhecimento da fala (IRF) foi normal em todos os casos e, dos 10 casos submetidos à imitanciometria, sete pacientes revelaram resultado normal e três pacientes apresentaram exame alterado com curva do tipo C.

DISCUSSÃO

Com relação aos resultados obtidos, inicialmente chama atenção a elevada incidência de alterações relacionadas à função auditiva. O zumbido foi a queixa mais referida (50% dos casos); e, dos 38 ouvidos investigados, 20 apresentaram hipoacusia do tipo neurossensorial e seis do tipo mista. A literatura mundial estima que 20% a 50% da população HIV positiva apresenta diferentes níveis de perda auditiva neurossensorial. Entretanto, persiste a dúvida quanto a essas alterações serem decorrentes da ação direta do HIV e de outras eventuais infecções oportunistas nas vias auditivas ou serem decorrentes de ação ototóxica medicamentosa (BANKAITIS & KEITH, 1995). É comum a associação de inúmeras drogas anti-virais, anti-fúngicas e anti-bacterianas nestes pacientes, cuja ototoxicidade, principalmente em associações múltiplas, é pouco conhecida mas altamente provável.

Com respeito à função vestibular, observamos que a sensação referida de vertigem foi a segunda queixa em freqüência (35% dos casos). As alterações verificadas no exame vestibular ocorreram apenas nas provas calóricas que, em quatro pacientes (20%), demonstraram algum tipo de alteração. Além disso, nossos resultados mostravam-se concordantes com ROSENHALL et al. (1989), cujas alterações eletrofisiológicas foram comparativamente mais significativas em pacientes aidéticos assintomáticos. Novamente, pode-se discutir quais fatores seriam responsáveis por estas alterações: infecciosos, ototóxicos, medicamentosos ou mesmo fatores neurovegetativos que também estão presentes de forma importante nestes pacientes (KOHAN et al., 1990). Não encontramos qualquer sinal sugestivo de acometimento de vias vestibulares centrais.








CONCLUSÕES

1. Sintomas otoneurológicos foram freqüentemente referidos nos pacientes HIV positivos pesquisados.

2. O zumbido em. 50% dos casos e a vertigem em 35% dos casos foram as queixas mais freqüêntes nesta população.

3. Alterações no audiológicas foram observadas em número expressivo de ouvidos (68%). Estes achados podem estar relacionados a diferentes fatores: ação direta do HIV e de outras infecções oportunistas nas vias auditivas ou ação ototóxica de drogas habitualmente utilizadas nestes pacientes.

4. As provas calóricas do exame vestibular foram as únicas, entre as inúmeras provas vestibulares realizadas, que apresentaram alguma alteração fidedigna (20%).

5. A utilização de provas audiológicas e vestibulares mostra-se válida para pesquisar afecções do sistema cocleovestibular e monitorização terapêutica de pacientes com AIDS.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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6. WECKX, L. L. M. et al. - Manifestações otorrinolaringológicas na síndrome de imunodeficiência adquirida. Acta WHO, 8; 25-30, 1989.
7. ROSENHALL, V. et al. - Otoneurological abnormalites in asymptomatic HIV - seropositive patients.Acta Neuro Scand., 79; 140-5, 1989.
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11. GLEICH, L. L. et al. - Otosyphilis: a diagnostic and therapeutic dilema. Laryngoscope, 102: 1255-1259, 1992.
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13. BANKAITIS, A. E. & KEITH, R. W. - Audiological changes associated with HIV infection. ENT Journal, 74; 353-9, 1995.
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15. MAIA, R. A., ALMEIDA, V. S. & KINOTO, Y. - Subsídios para a padronização e normatização do exame otoneurológico em adultos. Rev. Med. do IAMSPE, 19; 6-11, 1988.




* Ex-residente da Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Estadual, de São Paulo/ SP.
** Médico Encarregado do Setor de Otoneurologia da Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Estadual, de São Paulo/ SP.
*** Médica do Setor de Otoneurologia da Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Estadual, de São Paulo/ SP.
**** Fonoaudiólogas do Setor de Otoneurologia da Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Estadual, de São Paulo/ SP.

Trabalho realizado na Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Estadual, de São Paulo/ SP.
Endereço para correspondência: Rua Pedro de Toledo, 1800 - CEP: 04039-004 - São Paulo/ SP.
Artigo aceito em 30 de Outubro de 1996.

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