Versão Inglês

Ano:  1983  Vol. 49   Ed. 3  - Julho - Setembro - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 31 a 35

 

ABSCESSO CEREBELAR COMO COMPLICAÇÃO DA OTITE MÉDIA COLESTEATOMATOSA

Autor(es): M.GRELLET 1
J. F. COLAFEMINA 2

Resumo:
As infecções agudas e crônicas do ouvido médio podem provocar complicações intracranianas dentre elas o abscesso cerebral e cerebelar. Dessas infecções, as crônicas são responsáveis pela grande maioria das complicações sendo a otite média crônica colesteatomatosa a mais freqüente dentre elas. Quando nos deparamos com um paciente apresentando colesteatoma e um quadro sugerindo comprometimento intracraniano, considerando a gravidade do mesmo, procuramos através da radiografia computadorizada do crânio um diagnóstico rápido e seguro que nos possibilita o planejamento e intervenção cirúrgica conjuntamente com o neurocirurgião. O abscesso cerebelar provoca fundamentalmente transtorno da coordenação, perturbações das extremidades e nistagmo espontâneo. A intervenção rápida e precisa do otologista e neurocirurgião pode determinar ótimos resultados no tratamento das complicações cranianas otogénicas. Quando a patologia e as condições do paciente permitem a realização do exame otoneurológico completo o nistagmo é um dado semiológico importante na patologia do cerebelo podendo aparecer antes dos sinais neuro-otológicos sugerindo disfunção cerebelar.

INTRODUÇÃO

O colesteatoma representa uma das patologias não malignas do ouvido médio que provoca alterações anatômicas e funcionais de resoluções eficientes das mais difíceis, principalmente devido a seu comportamento recidivante.

Por ser um tumor expansivo pode provocar complicações extra e intracranianas. Isto ocorre por estar a caixa do tímpano relacionada por continuidade e contigüidade com a mastóide, labirinto e a cavidade intracraniana.

Os abscessos (extradural, subdural, cerebral e cerebelar), as meningites otogênicas e a tromboflebite do seio lateral constituem as complicações intracranianas.

Pretendemos abordar a maneira como nos conduzimos durante uma das complicações da otite colesteatomatosa, o abscesso cerebelar.

SINTOMATOLOGIA

Um jovem de 18 anos de idade foi examinado por nós em caráter de emergência por apresentar há alguns dias tonturas giratórias, escurecimento visual, visão dupla dos objetos e dificuldades para enxergar longe, dor intensa no olho direito, vômitos aquosos, cefaléia halocrânica iniciando na orelha direita e afebril. Referia purgação de ambos os ouvidos desde criança com mau cheiro do lado direito. À otoscopia o ouvido direito apresentava a parte tensa da membrana timpânica hiperemiada e perfuração da parte flácida com presença de descamação esbranquiçada sugerindo colesteatoma.

Ouvido esquerdo retração da membrana de Shrapnef. Neurologicamente o paciente se apresentava, consciente sem deficit motor ou sensitivo. Reflexos profundos normais. Equihbrio estático, paciente sentado, olhos fechados e braços estendidos com tendência a queda para a esquerda; em pé, com olhos abertos e fechados havia oscilação sem lado preferencial e com braços estendidos desvio para a esquerda. Marcha atáxica, "ebriosa" com desvio para a esquerda.

Na coordenação o movimento index-nariz mostrou decomposição no final do movimento à direita.

O movimento index-index foi realizado adequadamente. Eudiadococinesia. Tônus musculares e trofismo preservados. Força muscular preservada. Normorreflexia profunda. Ausência de rigidez de nuca. Sensibilidade tátil e dolorosa preservada. Pesquisa dos nervos cranianos revelou comprometimento do VIII par referindo queda da audição à direita. Observamos presença de nistagmo semi-espontâneo horizontal bidirecional. Demais nervos cranianos sem alterações.

MEIOS DE DIAGNÓSTICO

Devido a emergência de conduta terapêutica frente a sintomatologia apresentada optamos pelos exames mais . imediatos e objetivos constituindo da politomografia do temporal e radiografia computadorizada do crânio.

A politomografia revelou quadro radiológico compatível com otite média crônica colesteatomatosa e fístula do canal semicircular lateral à direita (Fig. 1).

A tomografia computadorizada do crânio mostrou lesão expansiva na fossa posterior, cerebelo (Fig. 2).



Fig. 1 -Politomografìa do osso temporal - Guillen. Fístula do Canal Semicircular Lateral Direita.



Fig. 2 - Tomografia Computadorizada do Crânio. Lesão expansiva na fossa posterior.



Com este diagnóstico e dado a emergência de tratamento, não submetemos o paciente à demais exames principalmente otoneurológicos,

Realizamos mastoidectomia radical encontrando colesteatoma epitimpanal invadindo o antro e mastóide. O meso e hipotimpano não estavam comprometidos pelo colesteatoma. O canal semicircular lateral apresentava erosão óssea. Fizemos a limpeza do colesteatoma derrubando parcialmente a parede posterior do canal auditivo externo deixando cavidade única.

A seguir no mesmo ato operatório o neurocirurgião realizou craniotomia occipital a direita encontrando volumoso abscesso (5x5 cm nos seus maiores diâmetros) encapsulado, localizado no hemisfério cerebelar direito aspirando-o e ressecando totalmente sua cápsula.A cultura do abscesso cerebelar revelou Proteus morganii a bacilo Gram-negativo não fermentador.

O exame histopatológico revelou colesteatoma e cápsula compatível com abscesso cerebelar.

Evolução pós-cirúrgica

O paciente evoluiu bem e no vigésimo dia pós-operatório estava sem sintomatologia e ausência de nistagmo clinicamente visível.

Dois meses após a cirurgia continuava sem sintomatologia. A otoscopia do ouvido direito seco e com bom aspecto cirúrgico.

O exame otoneurológico mostrou discreto desvio para a esquerda no exame da marcha.

Provas cerebelares normais

Audiometria mostrando o ouvido direito com disacusia mista de moderada para grave.

O exame electronistagmográfico revelou arreflexia do labirinto direito à prova calórica (Fig. 3).



Fig. 3 - Arreflexia pós-calórica do labirinto direito.



A vetoeletronistagmografia realizada com a cadeira pendular decrescente, estando o paciente posicionado com a cabeça fletida 30º para frente em seguida com a cabeça 45° para a direita e 60° para trás, mostrou resposta do labirinto direito semelhante ao esquedo na freqüência e amplitude (Figs. 4 e 5).



Fig. 4 - Vetoeletronistagmografia: Cabeça fletida 30° para frente.



Fig. 5 - Vetoeletronistagmografia: Cabeça 45° para a direita e 60° para trás.



Dois meses após a cirurgia a politomografia temporal à direita revelou erosão da parede do canal semicircular lateral e a tomografia computadorizada do crânio mostrou-se sem a imagem do abscesso cerebelar (Fig. 6).

DISCUSSÃO

A otite média crônica colesteatomatosa pode levar a formação do abscesso cerebelar através de infecções

do ouvido médio para estruturas intracranianas, erosão óssea por osteíte ou colesteatoma, via pré-formada por traços de fratura, via labiríntica através do canal auditivo interno, aqueduto vestibular ou coclear, hiato subarcuato, fissura petroscamosa, tromboflebite de pequenos vasos através de osso intacto, via extradural, subdural ou espaço subaracnóide, tromboflebite dos seios venosos intracranianos ou vasos cerebrais ou por infecção do espaço perivascular de Virchow-Robin:



Fig. 6 - Tomografia computadorizada do crânio. Ausência da lesão expansiva na fossa posterior.



Muitas condições patológicas são diagnosticadas no ato cirúrgico. O edema da papila é evidência clara de aumento da pressão intracraniana. A labirintite supurativa e a tromboflebite do seio lateral são causas mais freqüentes do abscesso cerebelar e a labirintite é a mais freqüente das duas.

Os abscessos infratentoriais são geralmente de origem otogênica. O abscesso endocraniano otogênico compromete mais freqüentemente o cérebro do que o cerebelo.

A ocorrência do abscesso no cérebro e cerebelo simultaneamente é rara. O abscesso cerebral ou cerebelar otogênico em 20% dos casos é devido a otite média aguda e 80% devido a otite média crônica; destas 40% é colesteatomatosa.

No paciente por nós tratado há dados importantes de comprometimento intracraniano: aumento da freqüência da cefaléia, náuseas e vômitos, visão dupla, marcha atáxica com desvio para a esquerda, dissinergia e nistagmo espontâneo horizontal bidirecional.

O cerebelo recebe projeções dos receptores aferentes da visão e músculo ocular e envia fibras aferentes para o núcleo vestibular e oculomotor e para a formação reticular pontina. Estas conexões tornam possíveis distúrbios do controle oculomotor nas doenças cerebelares.

A lesão expansiva tumoral benigna diagnosticada como abscesso do hemisfério cerebelar direito provocou alteração da função do cerebelo com conseqüente transtorno da coordenação levando a marcha atáxica, desvio para o lado oposto da lesão, perturbações das extremidades superiores manifestadas pela decomposição final do movimento index-nariz como também nistagmo espontâneo horizontal bilateral.

Os achados eletronistagmográficos pós-calóríco e a vetoeletronistagmografra pendular decrescente demonstraram que a arreflexia vestibular direita à prova calórica, não impede que haja registros deste labirinto quando estimulado durante o movimento da cadeira rotatória pendular decrescente. Podemos interpretar este resultado considerando que ao colocarmos, por exemplo, a cabeça do paciente 45° para fora à direita e 60° para trás dois canais semicirculares serão estimulados, o canal semicircular superior direito e o posterior esquerdo.

Como verificamos pela prova calórica que há arreflexia do labirinto direito era de se esperar que na prova rotatória pendular decrescente o registro do nistagmo quando predominasse o estímulo do labirinto fosse menos evidente em amplitude e freqüência em relação ao labirinto esquerdo. Mas paradoxalmente encontramos registros semelhantes como se não houvesse arreflexia labiríntica direita. Parece que podemos explicar este registro devido compensação central que permitiria que o canal semicircular posterior esquerdo, que também estava sendo estimulado simultaneamente, embora com menor intensidade compensasse a falta do estímulo do canal semicircular superior direito.

O labirinto periférico não é o gerador da atividade neural do núcleo vestibular após labirintectomia unilateral pois essa atividade foi demonstrada experimentalmente após labirintectomia bilateral.

O envolvimento do hemisfério cerebelar e vermes evidencia ataxia do tronco e da marcha, hipotonia
muscular, dismetria, assinergia e disdiadococinesia.
O não envolvimento dos nervos cranianos podem indicar a localização ou extensão da lesão do sistema cerebral. Nas afecções do cerebelo essencialmente de origem tumoral, degenerativa, infecciosa (abscesso do cerebelo), existe freqüentemente nistagmo horizontal múltiplo ou vertical.

A disritmia no nistagmo pós-calórico associada ou não a dismetria ocular, a hiperexcitabilidade vestibular, aparecem menos freqüentemente que o nistagmo invertido, sugerindo envolvimento cerebelar.0 nistagmo invertido; pode indicar lesão do cerebelo ou dos pedúnculos cerebelares do sistema cerebral.

A não observação do nistagmo em doença cerebral crônica pode ser devida a adaptação do sistema de controle do motor ocular devido a disfunção cerebelar.

Em lesões centrais, o paciente ao olhar para frente pode não apresentar nistagmo, entretanto ao desviar o olhar para um dos lados aparece nistagmo espontãneo e geralmente é bidirecional nas lesões centrais. Voltando a olhar para frente aparece nistágmo espontâneo com direção invertida em relação ao olhar para os lados (nistagmo invertido).

Quando o nistagmo espontâneo é do tipo central este nistagmo invertido é diminuído ou abolido ao eliminar a fixação do olhar; isto é, fechando os olhos. Este tipo de nistagmo invertido pode ser um sinal de doença cerebelar crônica podendo aparecer antes de qualquer sinal neuro-otológico sugerindo disfunção cerebelar.

O nistagmo é um dado semiológico importante na patologia do cerebelo apresentando no abscesso cerebelar com oscilações evidentes, baixa freqüência e arritmia.

O fato de encontrarmos arreflexia do labirinto direito sugere que a propagação da infecção do ouvido médio possa ter sido através do labirinto, lesando-o.

As lesões cerebelares podem provocar alterações vestíbulo-oculares (nistagmo espontâneo, nistagmo postural, preponderância direcional, hiperexcitabilidade, transtorno da habitação e da compensação) traduzidos como sinais de desinibição.

A trombose infectada do seio venoso lateral pode se estender por meio das veias tributárias para o cerebelo. O nistagmo, devido a lesão cerebelar, pode ser devido a pressão sobre os núcleos vestibulares ou ação direta do cerebelo alterando os impulsos inibidores.

Como o paciente não apresentava rigidez de nuca, edema de papila e a radiografia computadorizada não revelou alteração ventricular cerebral, parece mais provável que a alteração desses impulsos inibidores e não a pressão sobre os núcleos vestibulares tenha sido responsável pela presença do nistagmo horizontal bidirecional.


SUMMARY

The acute and chronic infections diseases of the middle ear may provoke cerebral and cerebelar abcesses among other intracranial complications. The chronic infection, mainly those of cholesteatomatous nature, are the most frequent causes of such complications.

Considering the gravity of a patient who has a cholesteatoma and shows sinus of intracranial involvement we try with the aid of the.computadorized radiography to make e clear and rapid diagnosis in order to plan and perform the surgical operation in conjunction withthe neurosurgeon. The cerebelar abcesses provokes disturbances of coordination, other abnormalities of the extremities and spontaneous nystagmus. When the pathology and the patient general conditions permit a careful and complete otoneurologic examination, the presente of nystagmus is a very important semiological data. It may even precede the otonaurological signals suggestive of cerebelar disfunction. The rapid and precise intervention of the otologist and neurosurgeon may determine good results concerning these otogenic complications.

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1 - Professor Adjunto, Chefe da Disciplina de Otorrinolaringologia do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP.
2 - Professor Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - U.S.P.

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