Ano: 1959 Vol. 27 Ed. 2 - Março - Abril - (2º)
Seção: Trabalhos Originais
Páginas: 25 a 30
ALTERAÇOES DO VIIIº- PAR ENCEFÁLICO PRODUZIDAS PELA KANAMICINA (*) DR. JOSUÉ
Autor(es):
DR. JOSUÉ
TOLEDO DE GODOY (**) - São Paulo
(*) Médico da Clínica Otorrinolaringológica (Serviço do Prof. Raphael da Nova) do Hospital das Clínicas - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
(**) Trabalho apresentado na Reunião Ordinária da Seção de Otorrinolaringologia da Associação Paulista de Medicina, em 17 de marco de 1959).
Tendo sido observados na Clínica de Otorrinolaringologia (Serviço do Prof. Raphael da Nova) do Hospital das Clínicas dois casos de surdez na vigência de tratamento com a kanamicina, pareceu-nos oportuna a apresentação dos mesmos, já que o anti-biótico tem uso muito recente em nosso meio.
A kanamicina, antibiótico de largo espectro, foi descoberta no Japão por Umezawa e cols.. Foi obtido à partir do Streptornyces kanamiceticus (1). Quimicamente está relacionada com a neomicina e a streptomicina (2). É um antibiótico solúvel n'água, melhor isolado como sulfato cristalino, forma como é usada por via intramuscular; é bactericida (3) e ativo contra os mais freqüentes germes patogênicos, aeróbios gram-positivos e negativos e Mycobacteria. Os pneumococos, estreptococos e pseudomonas mostram-se em graus variáveis, moderada a altamente resistentes à kanamicina (2). O maior valor do antibiótico está na sua atividade contra os estafilococos.
A absorção e excreção da droga, injetada por via intramuscular, são rápidas no homem (4). O máximo de concentração sangüínea é obtido dentro de uma hora, e, 50 a 80% são recolhidos na urina após vinte e quatro horas. A administração dê 15 mg por Kg de pêso corporal, e por dia nos dá uma concentração da kanamicina no sangue suficientemente ativa contra os organismos sensíveis, segundo Finegold e cols. (6).
Os efeitos colaterais observados mais freqüentemente são: irritação local de pequena intensidade, eosinofilia sem manifestações alérgicas ostensivas, transtornos urinários e alterações do VIII par craniano (2, 4, 6).
A lesão do VIII par é geralmente bilateral e de intensidade variável. Inicialmente as freqüências mais agudas são as atingidas e nos casos mais avançados pode haver perda de audição para tôdas as freqüências. Os transtornos vestibulares são raros (4, 6).
Está definitivamente assentado que a lesão do VIII par é diretamente proporcional à quantidade da droga administrada e ao tempo de administração (4, 6, 7).
Bunn e cols. (4) tratando trinta e cinco pacientes por períodos variáveis com doses de 1-3 gramas por dia, tiveram perda definitiva e severa da audição em quatro ou seja 11,5% dos casos. Wright e cols. tratando doze tuberculosos com a kanamicina, por períodos variáveis de quinze a cento e vinte dias, com 0,50 a 1,0 grama por dia, tiveram hipoacusia em dois dêles, isto é, em 16,6% dos casos (5). Donomae e cols. (7) estudando trinta e cinco pacientes, com a administração de 6 gramas de kananicina por semana, observaram os seguintes sintomas relacionados com o VIII par: Tinnitus em 23% dos pacientes à partir do 1.º mês; vertigem em 6% dos pacientes à partir do 1.° mês; queda da audição pela audiometria: 17%: acima de 6.000 C.p.s. e 3% abaixo de 6.000 C. p. s. Os mesmos Autores verificaram uma incidência acentuadamente menor dos sintomas relatados, em pacientes tratatos com doses inferiores a seis gramas por semana. Finegold e cols. (6) em oitenta pacientes tratados com kanamicina obtiveram vinte casos de alterações do VIII par craniano; quatro dêles apresentaram perda da audição social.
Os dois casos observados por nós foram-nos enviados por outros serviços do Hospital, após o uso da droga, sem exame otorrinolaringológico prévio rigoroso. O 1.º caso tratava-se de:
C. Z., 13 anos, sexo feminino, brasileira, branca, solteira, doméstica, Natural e procedente de São Caetano do Sul (S.P.). Portadora de "permaraêncïa de canal arterial", foi internada em 17-3-58 na Segunda Clínica Médica. Foi operada em 25-3-58 de fechamento do Ductus Arteriosus"; seis meses aptas, luar apresentar um quadro de Púrpura foi amigdalectomisada. Passou bem por um período de dois meses, quando foi então acometida de Endocardite Bacteriana, tendo sido medicada com kanamicina, na dose diária de dois gramas; após sete dias de tratamento com acentuada melhora do quadro infeccioso, paciente apresentou surdez súbita, razão pela qual foi enviada ao nosso Serviço. Sem outras queixas, exceto surdez, além da amigdalectomia já relatada, referiu como antecedentes otorrinolaringolágicos: cefaléia frontal e epistaxes esporádicas. Audição prévia normal. n exame otorrinolaringológico revelou orelhas normais à otoscopia, trompas permeáveis, cavum e orofaringe normais. Ausência de lesões nasal e laríngea. O audiograma realizado em 24-11-58 revelou um quadro de cofose (fig. 1 ). A prova calórica fria, realizada pela técnica de Hallpike a 28-11-58 mostrou uma hiporreflexia vestibular bilateral (fig. 2).. O seguimento da paciente feito até a presente data, mostra inalterado o seu estado de surdez. A prova calórica, realizada três meses após a supressão do medicamento, evidenciou uma arreflexia vestibular (fig. 3).
FIGURA 1 - Audiograma da paciente C. Z. mostrando um quadro de cofose. Foi realizado duas semanas após a supressão da kanamicina.
FIGURA 2 - Prova Calórica fria realizada na paciente C. Z. duas semanas após a supressão da kamamicina Hiporreflexia vestibular.
FIGURA 3 - Calorígrama da paciente C. Z. realizado 3 meses após a supressão da kanamicina. Verifica-se uma inatividade vestibular.
O 2.° caso tratava-se de:
L. D., 24 anos, feminina, solteira, branca, brasileira, doméstica, procedente de S. Paulo. Operada de Hérnia discal em 31-7-58 no Serviço de Neurologia do Hospital das Clínicas, apresentou retenção urinária no post-operatório, pelo que foi sondada por trinta dias aproximadamente. Apresentou em seguida um quadro de Pielonefrite aguda, devido a Aerobacter aerogenes, resistentes à todos antibióticos com exceção à novobiocina e kanamicina. Medicada com kanamicina, na dose de dois gramas diárias apresentou acentuada melhora da infecção. No 13º dia de tratamento queixou-se de tinnitus e surdez. Suspensa a medicação a paciente nos foi enviada para exame especializado. A anamnese revelou ausência de antecedentes otorrinolaringológicos. Audição prévia normal. Para o lado geral apresentava anemia. Ao exame ORL orelhas normais à otoscopix, boa permeabilidade tubária, cavum, orofaringe, nariz e laringe sem dados dignos de nota A audiometria mostrou dez dias após à supressão do tratamento, um quadro de cofose (fig. 4). Não foram realizadas provas vestibulares, pois a paciente recebeu alta hospitalar à pedido, logo à seguir.
AUDIOGRAMA
FIGURA 4 - Audiograma da paciente L. D. mostrando um quadro de cofose.
A kanamicina mostrou-se, nos dois caso relatados, um antibiótica de grande valor pela sua ação hactericida. Em ambas as pacientes houve domínio da infecção e melhora clínica evidente dentro de poucos dias. Por fugir à finalidtade do trabalho deixamos, entretanto, de realçar êste aspecto relevante do antibiótico, para realizarmos a maior limitação que há ao uso do mesmo: a sua toxicidade para o VIII par craniano.
Pareceu-nos claro a surdez decorrer do uso da droga nos dois casos de nossa observação. A falta de evidência clínica que a vinculasse à infecção inicial e a exclusão de outras causas de hipoacusia pelo exame otorrinolaringológico foram convincentes neste sentido. Chamou-nos a atenção a maneira súbita com que se instalou a cofose em ambas as pacientes. Dois casos dos observados por Bunn e cols. (4) também tiveram abrupta instalação do quadro. Apenas um, relatou tinnitus poucas horas antes. Não foram observados em nossas doentes qualquer queixa ou sinal prévio indicativo da intensa lesão eminente. Finegold e cols. (6) também não os tiveram em cinco de dezesseis pacientes que apresentaram alterações audiométricas ao usar o antibiótico.
A paciente C. Z. teve pequena alteração vestibular evidenciada pela prova calórica fria realizada duas serranas depois de ser suspensa a kanamicina. O teste realizado cêrca de três meses após, mostrou uma total inatividade vestibular. Finegold e cols. (6) comprovaram ação tóxica retardada da droga para as alterações cocleares. Em seus casos as variações audiométricas geralmente se fizeram dentro da primeira semana após a supressão do medicamento, à partir da qual os audiogramas permaneceram inalterados. Não relataram os autores citados qualquer alteração semelhante para a porção vestibular do nervo, entretanto. Nosso caso é sugestivo de que tenha havido uma ação tóxica retardada para o ramo vestibular. Infelizmente não foram realizados testes em número suficiente, durante o seguimento da doente, que pudessem apoiar esta suposição.
A paciente L. D. tomou por seis dias, até dois dias antes de iniciar o uso da kanamicina, um grama de streptomicina cada 24 horas. Neste caso, queremos salientar a possibilidade de um efeito cumulativo de duas drogas eletivamente ototóxícas.
Finalmente resta-nos realçar a irreversibilidade da surdez produzida pela kamamicina em nossa paciente C. Z., da qual tivemos seguimento. Este fato já constatado por outros autores (4, 6), pelo menos é válido para as lesões mais intensas, geralmente produzida pelas doses elevadas e pelos tratamentos prolongados,
Parece-nos criteriosa a recomendação de doses menos liberais do medicamento. Finegold e cols. aconselham como ideal a dosagem máxima de 15 mg por Kg de pêso corporal e por dia, com a qual a toxicidade do medicamento fica bastante reduzida. Doses menores ainda poderão ser usadas, sem comprometimento da ação bactericida da droga, com conseqüente diminuição dos efeitos tóxicos da mesma (6). Segundo Bunn e cols. (4), não se deve administrar quantidade total superior a, 40-50 gramas, prevenindo-se assine um maior risco de lesão de VIII par. Testes audiométricos freqüentes deverão ser realizados durante tratamento com a kanamicina, tendo-se desta forma um seguro sinal de alarme, que são as perdas para as freqüências superiores à 6.000 C. p. s., as quais podem aparecer em 17% dos casos (7). Pelo menos, como recomenda Maxwell Finland (2) faça-se testes audiométricos nos casos de tratamento prolongado, nas dosagens elevadas da droga e em face de pacientes com lesão renal. Desta forma acreditamos, poder-se-á lançar mão do antibiótico com segurança, contando-se sempre com um valioso fator, o audiograma, na prevenção do efeito colateral indesejável.
RESUMO
O autor relata dois casos de surdez na vigência de tratamento com a kanamicina. Conclui pela necessidade de se fazer testes audiométricos freqüentes na vigência de tratamento com a droga, pelo que se poderá surpreender precocenente as alterações do VIII par craniano, devida à toxicidade do medicamento.
BIBLIOGRAFIA
1 - UMEZAWA, H. - Kanamycin: Its Discovery. Ann, N. Y. Acad. Sei, 76:20-26, 1958.
2 - FINLAND, M. - Sumary of the Monograph on the Basic and Clinical Research of the New Antibiotic, Kanamycin, Ann, N. Y, Acad. Sci, 76: 391-408, 1958.
3 - GOURGEVITCH, A. ROSSOMANO, V. Z,; PUGLIASI, T. A.; TYNDA, J. M. & LEIN, T. - Microbiological Studies with Kanamycin. Ann. N. Y. Acad. Sci. 76:391-408, 1958.
4 - BUNN, P. A.; BALTCH, A. & KRAJNYK, O. - Clinical Experiences with Kanamycin. Ann, N. Y. Acad. Sci. 76:109-121, 1958.
5 - WRIGHT, K.; RENZETTI, A. D.; LUNN, J. & BUNN, P. A. - Observations on the Use of Kanamycin in Pacients in a Tuberculosis Hospital. Ann. N. Y. Acad. Sci. 76:157-162 1958.
6 - FINEGOLD, S. M.; WINFIELD, M. E.; AROUSOHN, R. B.; HEWITT, W. L. & GUZE, L. B. - Clinical Experiences with Kanamycin. Ann. N. Y, Acad. Sci: 76:318-347, 1958.
7- DONOMAE, L.; GOME, J.; HORAI, Z.; KAIDA, K.; KAWAI, N.; KAWAMORI, Y.; KITAMOTO, O.; NAITO, M.; OKA, S.; SHIMAMURA, K. & SUNAHARA, S. - Clinical Studies of Kanamycin treatment of Pulmonary Tuberculosis. Ann. N. Y. Acad. Sci. 76:166-187, 1958.
CLÍNICA OTORRINOLARINGOLÓGICA DA F.M.U.S.P.
HOSPITAL DAS CLINICAS - 6.º ANDAR