Versão Inglês

Ano:  1940  Vol. 8   Ed. 6  - Novembro - Dezembro - (31º)

Seção: Trabalhos Originais

Páginas: 651 a 658

 

A MARGEM DE UMA OBSERVAÇÃO

Autor(es): DR. FRANCISCO HARTUNG (*)

Si un médecin se figurait que ses raisonnements ont la valeur de ceux d'un mathématicien, il serait dans de plus grand des erreurs et serait conduit aux conséquences les plus fausses. C'est malheureusement ce qui est arrivé et qui arrive encore pour les hommes que j'appallerai des systématiques.

Claude Bernard. (Extraits).

Entre os inumeros conceitos e ensinamentos legados à medicina e á posteridade pelo genio de Claude Bernard será este, incontestavelmente, um dos mais preciosos e profundos. Percebe-se bem a admiravel plasticidade de espirito do fundador da fisiologia experimental. Rebelde, por principio, aos sistemas e doutrinas filosoficos.

... comme expérimentateur, j'évite donc les systèmes philosophiques. . . ,

si repudia a escolastica ou o materialismo lhe repugna, o preceito citado demonstra que o proprio determinismo em que acomodou o seu raciocinio para os seus opimos experimentos, não lhe oferece em suas conclusões memoraveis o mesmo significado das verdades absolutas e imutaveis proprias dos axiomas das matematicas.

E' esta a atitude que, a seu vêr, convem ao verdadeiro sabio fugir aos sistemas e doutrinas e a tudo o que perturbe a critica elevada.

Mas, si não se acomoda nas doutrinas e sistemas que não lhe satisfazem, não esquece a necessidade imperiosa de um verdadeiro espirito filosófico

... je ne saurais pour cela repousser cet esprit philosophique, que san être nulle part, est partout, et sans appartenir à aucun systême, doit régner non seulement sur toutes les sciences, mais sur toutes les connaissances humaines.

Não será desconhecimento de tais palavras, fruto de tanta sabedoria, que refletem profundamente as reservas e ponderarações de um Claude Bernard, em face ás conclusões no campo da biologia, a causa essencial dos nossos erros e fracassos na profissão? As suposições e idéas falsas havidas como realidades, admiravelmente por ele qualificadas como "des supertitions scientifiques", não pesarão em nossas desilusões na medicina?

Ou dependerá o sucesso clinico tão sómente de conhecimentos básicos de anatomia e fisiologia, de anamneses completas e apuradas, de perfeições em exames de semiotica geral e especializada, de familiaridade no ambiente do laboratorio, de conhecimentos aprofundados de terapeutica e posologia, de tecnicas cirurgicas aprimoradas, enfim, de todos estes fatores imprescindíveis e essenciais, mas dos quais Carrel duvida.

Ni les laboratoires, ni les appareils, ni l'excellence de l'organisation du travail scientifique, ne fournissent à eux seuls le milieu que lui est nécessaire.
Carrel (L'homme, cet inconnu.)

si não forem aproveitados e articulados pela cultura intelectual, pois que

Les savants habitués aux techniques de la mécanique, de la chimie et de la physique, étrangers à Ia philosophie et à la culture intellectuelle, sont exposés à mélanger les concepts des différentes disciplines, et à ne pas distinguer le general du particulier.

Aprecia-se bem a intima coincidencia de idéas dos dois notaveis fisiologistas. Nada se conclue do sentido da verdadeira filosofia, mas se completam, em pensamento, Claude Bernard e Carrel. Para

ambos sem o bruxoleio de um certo espirito filosofico, os erros e contradições, fatalmente, arrastarão o medico e o cientista para a descrença e o cepticismos.

A observação que se segue, não obstante a singeleza do seu substrato clinico, interessa pelas suas dificuldades e ensinamentos de ordem geral.

De inicio, impressão de uma contingencia comum no nosso sector de medicina: um doente portador de mastoidite aguda. A operação demonstra porém que, além da lesão da apofise, havia tambem comprometimento opor contiguidade, das fossas media e posterior do craneo.

O periodo post-operatorio, que prometia ser bonançoso, repentinamente se modifica, parecendo que o prognostico, de bom que era, se tornaria sombrio. O fator tempo e a moderação de gestos, porém, permitiram, ante a discordancia e incoerência de certos fatos clínicos, que tudo evoluísse favoravelmente, não obstante as vicissitudes passadas. Vejamos como.

OBSERVAÇÃO. G. G., pardo, de 53 acros, é atacado de uma gripe a 28 de Abril. Tem febre, muitas dores de corpo e de cabeça. A 1 de Maio, aparecem-lhe tambem fortes dores no ouvido direito. A 3, manifesta-se desse citado lado, abundantissimo corrimento, de aspeto zero-purulento; decaem então os sintomas geraes, a febre e as dores, mas a otorréa continua intensa. Depois, como parecesse insuficiente a perfuração e houvesse pulsação no ouvido medio, foi este melhor drenado por uma paracentese. O doente usa compressas quentes húmidas e vacinas de Bruschettini.

Só tomámos conhecimento do caso a 17, quando fomos procurados no consultorio, com 19 dias de molestia. Informa-nos a familia que o corrimento continuára com a mesma intensidade durante todo este periodo, e que a temperatura nunca desaparecêra, aproximando-se diariamente de 38. Uma radiografia da mastoide, batida em má, tecnica deixa perceber assim mesmo, á posição de Stenvers, flagrante opacidade. Na ocasião do exame a temperatura é 37,8. Não ha mais dôres espontaneas no ouvido, fato que se explica pela intensidade do corrimento. As cefaléas, do começo da anamnese, desapareceram, mas foram sucedidas por terrível e pertinaz insonia. A' pressão do dedo, ha dôr, mas na ponta da apofise sómente; a região do antro é indolor. Nada se percebe pela inspeção; não ha edema na parte externa da mastoide, contrariamente ao que se dá no interior do conduto, onde é muito pronunciado, sobretudo na parede postero-superior. Timpano extremamente congesto. Perfuração baixa, pulsando.

Sob taes dados anamnesicos e semióticos, dôr datando de três semanas, febre insidiosa, corrimento intenso, persistente e purulento, máu estado geral, cefaléa sucedida por insonia, dôr á ponta da mastoide, edema no conduto, perfuração pulsatil, hesitar não era possivel, urgindo a trepanação. Uma nova radiografia, desta vez obtida sob boa tecnica, revela a extensão do processo e confirma a impressão clinica: mastoidite aguda. Nem se poderia esperar outro o aspeto radiologico, que apenas elucida quanto é larga a destruição da apofise. Por isso, apezar do doente sentir-se melhor, graças á intensidade do tratamento antiflogístico, de modo a não mais encontrar-se ponto algum doloroso, mesmo á pressão, trepanamos.

Confirma-se, pela operação, o quadro radiologico e compreende-se o porque da pequena sensibilidade da mastoide: cortical extremamente espessa, exigindo muito trabalho de goiva para a sua abertura. Pús e granulações em grande quantidade e em toda a parte. Enorme abcesso extra dural e perisinusal, largamente comunicando com a apofise.

O seio e a meninge são então suficientemente expostos, porque a parede sinusial exige cuidado e atenção: perdeu o seu matiz azulado carateristico para tornar-se esbranquiçado. Não fizemos, contudo, punção no seio. Primeiro, porque nada se relatava de suspeito, quanto a ele, na anamnese; segundo porque, á pressão digital, não havia sensação de resistencia, por parte da parede, flacida e depressivel.

Por prudencia, porém, uma vez terminada a trepanação, não suturamos a ferida, precaução, que como veremos, nos valeu. Apenas um agrafo em cima. Vejamos porque.

Passou o operado muito bem o primeiro dia e parte do segundo, mas já neste, experimenta violentissimo calefrio a ponto de sacudir o leito, ao mesmo tempo que a temperatura, de 37,1 sobe célere para 40 graus.

Incontinente retiramos o dreno da ferida operatoria e sangue para hemocultura é colhido sob esta intensa hipertermia.

Injeção de septicemina. (Naquela epoca não havia ainda as sulfanilamidas).

No dia seguinte, de novo. vae a temperatura para 39,7 depois de ter abaixado a 37 e pouco. Faz-se novo curativo, com limpeza geral da ferida, que continha muito pús. Enquanto a ele procedíamos, meditávamos. Temperatura, como fato isolado depois de mastoidectomia, não é causa para maiores cuidados e apreensões; o grande traumatismo cirurgico e a absorpção de toxinas pódem Portela ser responsaveis. No caso em fóco, porém, havia o que ponderar. A temperatura revestia-se de um aspeto septicemico com ondulações entre 37 e 40 graus; demais, taes altos e baixos coincidiam com o calefrio e relembravam o aspeto duvidoso das paredes sinusiais.

Traduziriam estes sinais apenas insultos passageiros de toxemia ou propriamente germens haveria já em circulação no sangue?

Que resolver então? Puncionar o seio seria o melhor recurso, si tal como um Wassermann, fosse positivo o resultado. Negativo nada significaria, pois a parede do seio era de tal modo depressivel, que qualquer trombo que houvesse, devêra ser pequeno. Poderia pois, ser inutil, quando não enganosa tal punção.

Esperar o resultado da hemocultura redundaria em perda de tempo e de oportunidade. Enquanto isso, alguma metastase, em caso positivo, viria obscurecer o prognostico, já de si duvidoso.

O exame do fundo do olho, em pesquisa da estase de papila, foi de resultado negativo, portanto favoravel; si, isoladamente não permitia uma orientação definitiva, contudo ficámos sabendo que nada havia de anormal na circulação da papila.

Foi deante de taes dificuldades e conjecturas que nos ocorreu um outro recurso semiológico de particular indicação para o caso: a prova de Queckenstedt. Baseia-se ela, como é sabido, nas leis da hidrodinamica. Comparar a pressão no meio cefalo-raquidiano, em condições normais, com aquela que se verifica quando ha algum impedimento na circulação de retorno. Para isso, por meio de uma punção lombar, toma-se a pressão do liquor em um manômetro. Depois comprime-se, uma das jugulares de cada vez. Em casos normais, á essa compressão, o manômetro, acusa instantaneamente a modificação que se opera no liquido cefalo-raquidiano. Quando porém, ha fatores patológicos que dificultem ou paralisem a torrente sanguinea na jugular, o que se dá nos casos de trombose, então haverá manifesta diferença entre o lado são e o lado doente. Enquanto que no lado são, a agulha do aparelho de desloca de acordo com a manobra, do lado doente ela mantem-se imovel, acusando o bloqueio. (Estas notas explicativas sobre a prova de Queckenstedt, apenas tem por finalidade diferencia-la de outra semelhante, muito em voga nos Estados Unidos, conhecida por prova de Ayer Tobee.) Posta em pratica no nosso operado, do lado são, á compressão da jugular, operou-se uma rapida subida da pressão, do normal que era para 12; ao contrario, no lado esquerdo, lado doente, a agulha manteve-se imóvel e indiferente á pressão da jugular respectiva. Algum obstaculo mecânico devêra pois haver. Era positiva a prova de Queckenstedt, apezar do resultado favoravel do exame do fundo do olho, que não acusava alteração, como era de esperar-se.

Esta prova fôra realisada alta noite. Ao amanhecer, quando deveríamos agir, sabemos que a hemocultura, já com 48 horas de material, semeado retirado em uma temperatura de 40 graus, é negativa. Deante de tal disparidade de resultado e, preferimos esperar mais um dia. Neste instante já era menos arriscado, uma vez que era negativa a hemocultura. Durante esse dia, não se repete o calefrios, ao mesmo tempo que a temperatura não vae acima de 38, nem abaixo de 37,1. Parecia assim começar a consolidar-se a situação, pois que no quarto dia, pela manhã, a hemocultura, já com 72 horas, do instante em que fôra semeada, continuava negativa. Demais, desapareceram as oscilações termicas, tendo o termometro, á tarde, permanecido em 36,5. Tambem o calafrio não mais voltou a acometer o paciente. Do quinto dia em deante, perde qualquer interesse a descrição dos fatos, porque, em verdade, o doente entrou a convalecer. Apenas relatar e acentuar que, não obstante uma ou outra hipertermia, o operado se restabeleceu sem que se lhe tocasse no seio. Curativos, só na mastoide. O unico detalhe seria a lentidão no cicatrisar-se, pelas grandes proporções da trepanação sem sutura e frequencia de limpeza e assepsia nos primeiros dias.

Analisemos agora, em detalhe, os fatos, para depois comenta-los.

A febre inquietante, como se apresentou nos tres primeiros dias, não por ela, mas pelas suas oscilações, terminou por perder este caracter serio, do quarto dia em deante.

O calefrio, apareceu por dois ou tres dias. Sem constituir por si, um sinal de trombose, era um elemento grave, uma vez afastada a possibilidade de erisipela da ferida, e invasão de toxinas de germens nela contidas.

O fundo de olho normal, sem edema da papila, era um fato auspicioso. Talvez mesmo um argumento, para o caso, decisivo. Diz Eagleton, na sua reconhecida autoridade, que a estase é mais comum nas tromboses, como era de suposto o nosso caso, de que nas coleções purulentas do endocraneo. Daí a consideravel importancia de seu resultado negativo.

Finalmente, a prova de Queckenstedt. Dada a sua natureza, baseada em principios hidrodinamicos, o seu resultado positivo deveria exigir uma atuação pronta e rapida: abertura imediata do seio, retirada dos coágulos que nele houvesse, e talvez ligadura da jugular e mesmo da facial. Seria este um primeiro impulso, justificavel. Sopesando bem os fatos, todavia, apareciam objeções. Se de um lado, o seu resultado coincidia com o fator febre em grandes oscilações e com os calefrios do operado, rememorando assim as alterações encontradas nas paredes sinusiais, por outro, ao contrario, a sua positividade se chocava com a normalidade da circulação no fundo ocular, em um exame para o qual tambem o fundamento é odrodinamico.

Era evidente o paradoxo que desarticulava o raciocinio, Enquanto sobre ele meditávamos, e o sangue com 4 dias de semeado, continuava esteril em hemocultura, as melhoras e a euforia do operado, ás vezes aliás, tão enganosa, convidavam-nos a prudencia e á moderação. Por isso, mas sem eufemismos, não nos esquecíamos do pensamento dos nossos maiorais da medicina.

Não ha, não haverá nunca uma medicina matematica, que consinta no problema clinico, complexo como a vida de que ele é apenas uma expressão fragmentaria e fugitiva, o rigor das equações na simplicidade dos sinais algebricos.

Francisco de Castro.

E' bem claro o sentido deste comentario, geral e filosofico. E' evidente que o notavel clinico e pensador patricio, como Claude Bernard, não pretende com estas palavras, criticar a aplicação da ciência das quantidades aos estudos de biologia, quando necessaria; o que ambos se negam a aceitar é a infalibilidade matematica nas conclusões. No nosso caso, ninguem poderia negar o deslocamento da agulha do manometro do lado são e a sua imobilidade do lado doente. Mas quem afirmaria, observada a normalidade da circulação na papila, deante da complexidade dos fenomenos vitaes, que tal imobilidade correspondesse unica e fielmente a uma obstrução da jugular?

Em seu famoso livro já citado, diz Carrel, em proposição inicial:

II y a une étranger inégalité entre les sciences de la matière inerte et celle des êtres vivants.,

pensamento fundamental, ratificado pelo eminente fisiologista em capilo posterior:

Les lois de la mécanique, de la physique et de la chimie s'appliquent complétement à l'univers matériel. Partiellement à l'être humain.

Mas afinal, que teria acontecido a tal doente? Houve, de fato trombose do seio venoso, ou simples fenomenos de toxemia? E si houve trombose, como se curou sem a abertura do seio?

A' ultima pergunta respondem as estatisticas: ha tromboflebite que se curam sem tocar-se no seio. Certa parte dos clássicos e entre eles Lillie, é contraria á intervenção. Demais, dizem eles, a ligadura da jugular e da facial não impede que os germens circulem pelas pequenas anastomoses e que uma vez limpo e erradicado o foco inicial em nada adianta a rutura do seio.

Contudo, são opiniões. E' incontestavel que muitos dos vultos mais eminentes da otologia, que por serem tantos não é mister citados, pregam e recomendam a remoção do trombo e a ligadura dos troncos venosos. Tambem nós, seguindo essas autoridades, temos sido felizes em mais de um caso.

De qualquer modo, porém, a cura sem sinusectomia, si não prova, Tambem não afasta a possibilidade de trombo. Seria então simples toxemia? E' possivel e provavel, embora não haja elemento algum comprobatorio.

Ha, porém, uma variante de raciocínio, capaz de conciliar as duas hipoteses: trombo e toxemia, mas esta ultima de origem na cavidade mastoidéa e não na luz do seio. Vejamos. Fôra encontrado um grande abcesso perisinusal. Este abcesso, desprendendo gazes, gerados pelos seus microorganismos, particularidade de que gozam certos tipos deles, produziria uma compressão das paredes do seio. Daí, a diminuição ou desaparecimento da luz do mesmo e a formação do trombo. E' o trombo de compressão, aséptico, admitido por Ruttin, da escola vienense, e cujo mecanismo não é raro em patologia geral.

Aceita essa hipotese, com tal trombo se explicariam as perturbações circulatorias acusadas pela prova de Queckenstedt e se compreenderia a hemocultura negativa, enquanto que a febre e os calefrios teriam sua origem, não dentro do seio, porém na sua visinhança.

São porém conjecturas e por isso terminemos.

E' bem verdade que

"Pensée fait la grandeur de l'homme,"

ensina Pascal. Mas o proprio filosofo da Port Royal é o primeiro a advertir-nos contra a confiança ilimitada no poder da razão humana.

BIBLIOGRAFIA

BERGSON. - Claude Bernard. Sa philosophie.
A. CARREL. - L'homme, cet inconnu.
EAGLETON. - Archives of Otolaryngology.
LILLIE. - Archives of Otolaryngology.
PASCAL. - Oeuvres.
RUTTIN. - Apontamentos.




(*) Adjunto da Clinica de O. R. L. da Sta. Casa de Misericordia de S. Paulo.

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