Versão Inglês

Ano:  1940  Vol. 8   Ed. 6  - Novembro - Dezembro - (23º)

Seção: Trabalhos Originais

Páginas: 585 a 592

 

SOBRE UM CASO DE TUMOR CEREBRAL. CONTRIBUIÇÃO DO OTOLOGISTA AO DIAGNOSTICO DE LOCALISAÇÃO

Autor(es): DR. MARIO OTTONI DE REZENDE (*)

Sabida a dificuldade que, ainda hoje, existe para a localisação neurologica, de um tumor da caixa craneana, não será destituída de mérito a publicação da observação interessante, de um caso de tumor do tronco do encefalo, diagnosticado e localisado, em vida do paciente, graças, sobretudo, á aplicação dos conhecimentos oto-neurologico expostos por Issac Jones, e que foi encontrado, no ato operatorio, exatamente na região determinada pelo oto-rino-laringologista.

A publicação limitar-se-á, tão somente, a este caso, por ter sido de extrema dificuldade, para o neurologista e para o oto-neurologista, a fixação do lugar em que a lesão se assestava - e porque a intervenção cirurgica, seguida de biopsia, veio confirmar a certeza do dificil diagnostico, pelo qual o paciente foi para a mesa operatoria.

Os estudos complementares deste caso foram praticados pelo Prof. Adherbal Tolosa e a intervenção cirurgica foi executada pelo Dr. Carlos Gama.

Tratava-se de J. T., brasileiro, solteiro, com 26 anos.

Em sua historia havia referencia a um irmão que falecera de sarcoma da perna. Negava qualquer passado morbido e dizia que ha tres mezes vinha sendo sujeito a vomitos expontaneos e em projétil; a dôres de cabeça continuas, assestadas, sobretudo, ao nivel do olho direito; a perturbações visuais, imagens de contornos irregulares, com frequentes aparecimentos de figuras angulares, construídas por linhas retas. Submetido a varios tratamentos as dores de cabeça desapareceram, sem que, no entanto, melhorasse a visão que alcança, hoje, quasi que a amaurose, com diplopia periodica.

Individuo de aspéto normal, caracteres sexuais secundarios normais. Pressão 9-14. Pulso 70.

Psiquismo integro; atitude indiferente; facies indagadora (cégo); ligeira astasia com tendencia á queda para traz; Romberg negativo; não apresenta apraxias, nem paralisias ou paresias; Barré e Mingazzini negativos; força muscular conservada; não mostra incoordenação ás provas de apontar o nariz e de colocar o calcanhar no joelho. Articulações livres; movimentos passivo amplos; ligeira hipotonia quando em repouso. Marcha com ligeiro alargamento da base de sustentação e titubeamento. Perna direita um pouco ceifante. Ligeira dislalia. Não apresenta tremores na motilidade involuntaria. Na provocada mostra reflexos osteo-tendinosos presentes e exaltados em ambas as pernas. Os do membro superior normais. Reflexos cutaneos: esboço de Babinsky, em leque, do lado direito; á esquerda abolição do reflexo cutaneo-plantar. Oppenheim positivo á direita, com abertura em leque excepto o grande artelho. Sinal de Rossolino presente á direita, á esquerda negativo. Reflexos cutaneos abdominais inferiores diminuidos. Clonus da rotula direita presente, assim tambem a trepidação e automatismo. Sensibilidade superficial tactil quasi abolida na planta dos pés. Hipoestesia em ambas as pernas, até a altura do 1/3 superior destas, onde se normalisa. Sensibilidade dolorosa diminuida na planta dos pés, aumentando até se tornar normal ao nivel dos joelhos á esquerda e á direita, mais ou menos seis dedos transversos abaixo deles. Sensibilidade termica abolida na planta dos pés; no restante, de ambas as pernas, hipoestesia mais acentuada para o calor. Sensibilidade profunda normal em suas diferentes modalidades. (Exame neurologico do Prof. Tolosa).

Exame oftalmologico: pupilas isocoricas não reagindo á luz e acomodação. Impossibilidade de olhar para cima, com aparecimento de nistagmo para a esquerda. Nistagmo rotatorio e retractil. Ao olhar para os lados o globo se desvia no sentido late ro inferior, com aparecimento de nistagmo, mais acentuado quando olha para a esquerda. Olhar para baixo normal.

Exame do liquor: S. O. D. Pressão inicial 30; pressão final O.

Volume 15 cc. Quociente Ayala A:0 Qrd:2.

Propriedades fisicas - liquor limpido e incolôr.

Células - 3,6 R. Pandy: positiva
Cloretos - 7,20 R. Nonne: positiva
Albumina - 0,50 Weichbrodt: positiva

Benjoin: 00 12 1.0 122 10.00000.0
Ouro: 002.343.210.000
Takata-Ara: negativa
R. Wassemann: negativa com Icc.
R. M. K. R. II: negativa.

Reacção desvio do complemento para cistocercose: negativa

(Dr. Lange - 6-6-38).

Radiografia do craneo: sela turcica de contornos e dimensões normais. Provavel ligeiro aumento de pressão endocranianas. Ausencia de sombras estranhas de projecção intracraniana. Textura ossea normal da abobada e da base (Dr. Cássio Villaça - 7-6-38).

Exame oto-rino-laringo-neurologico (praticado em 26-7-38 pelo Dr. Mario Ottoni de Rezende).

O paciente apresentava:

1) Motilidade e sensibilidade normais das vias aero-digestivas superiores;

2) Ataxia ligeira que, no caso, poderá estar ligada ao gráu de abaixamento visual;

3) Aponta errado o nariz, com ambos os braços;

4) Apresenta na anamnese vertigens e vomitos em projétil, com tendencia á queda para traz e para a direita, acompanhado tudo de forte abaixamento da visão em ambos os olhos;

5) Ligeiro nistagmo espontâneo para a esquerda, tipo horizontal e que se torna retractil quando do olhar para a esquerda e para cima (angulo esquerdo superior da orbita);

6) Paralisia do olhar para cima em ambos os olhos. A' ordem de olhar para cima produz-se rapida convergência dos olhos e um nistagmo rotatório retractil, bem caracteristico, em ambos os olhos, para esquerda;

7) No olhar para baixo o olho direito olha em frente, ao passo que o esquerdo olha para baixo e para fóra, dando lugar a ligeiro nistagmo rotatorio neste sentido;

8) Desvio espontaneo do index esquerdo (5 cm.) para a esquerda,
apontando certo com o index direito;

9) Prova calorica fria do ouvido direito (10 cc.): latencia 10", desvio conjugado dos olhos para a direita, acompanhado de sensação vertiginosa não muito forte. Inclinação e rotação da cabeça para a direita;

10) Prova calórica fria do ouvido esquerdo (10 cc.): latencia 8", nistagmo forte, de grandes abalos, tipo horizontal, mais acentuado no olho esquerdo, para direita. Vertigens fortes, ligeira sensação de náusea e inclinação e rotação da cabeça para esquerda. Este nistagmo, que durou pouco, foi seguido de desvio conjugado dos olhos para esquerda: sintomas de hiperirritabilidade;

11 ) Prova rotatoria (rotação para direita com cabeça 30° á frente). Pesquiza do canal semi-circular horizontal direito: grandes abalos nistagmicos, tipo horizontal, para direita; vertigem ligeira, sem nauseas e sem sensação de queda;

12) Prova rotatoria (rotação para esquerda com cabeça 30° á frente). Pesquiza do canal semi-circular horizontal esquerdo: ligeiros abalos nistagmicos horizontais para esquerda, acompanhados de intensas vertigens e forte sensação nauseosa. Não apresenta tendencia à queda;

13) Prova rotatoria (rotação para direita com cabeça 90° á frente). Pesquiza dos canais verticais direitos: quéda violenta para traz e para esquerda, sem vertigem e sem nistagmo;

14) Prova rotatoria (rotação para esquerda com cabeça 90° á frente). Pesquiza dos canais verticais esquerdos: quéda violenta para direita, sem vertigem e sem nistagmo;

Após as provas o paciente apresentou grande sinal de fadiga com palidez e suores. Entre uma e outra prova repouso de 10 minutos.

CONCLUSÕES:

Todas as provas falam pela existencia de uma lesão central assestada, com certeza, ao nivel do tronco do encefalo, acima dos nucleos motores oculares do III° IV° e VI° pares cranianos, localizada na parte mediana, comprimindo ambos os hemisférios cerebelarez, sobretudo o direito, e os tuberculos quadrigêmeos (posteriores?), e as vias ópticas de ambos os lados.

As vias condutoras da excitação dos canais semi-circulares horizontais, estão integras, ao passo que a dos canais verticais, sobretudo direitos, estão seccionadas acima de sua divisão, ao nivel da protuberancia e acima, mesmo, talvez, dos nucleos dos nervos motores oculares.

Esta secção produziu a ausência da fase rapida do nistagmo, que é de origem cerebral, conservando tão somente o desvio conjugado dos olhos.

Acredito que a falta da visão está ligada á compressão das vias ópticas, que passam na proximidade da zona citada.

Os fenomenos de origem cerebelar: desvio do index para esquerda, no braço esquerdo; erro no apontar o nariz, com ambos os braços; considerados com a presença de vertigens normais, quando da excitação dos canais semi-circulares, falam mais por uma compressão causando a hiper-irritabilidade deste orgão.

Diagnostico: tumor ao nivel do tronco do encefalo.



Fig. 1



Fig. 2



Fig. 3



Em 16-8-38 o Dr. Paulo Toledo praticou novo exame radiologico, do craneo do paciente, cujo resultado foi o seguinte:

"Estrutura normal do esqueleto do craneo. Ligeira disjunção da sutura lambdóide e da sutura temporo-parietal, sem outros sinais gerais de hipertensão. Erosão do dorso da séla turcica, com abaixamento acentuado do assoalho da mesma, com atrofia da téla ossea e saliência das partes moles no interior do seio esfenoidal. Rarefação ossea da ponta da piramide direita."

Ventriculografia: alargamento consideravel do 3.° ventriculo que se apresenta dilatado, luxado para a frente, cavalgando a séla turcica. A porção posterior do 3.° ventriculo acha-se completamente deformada, guardando uma impressão tumoral direita, com estenóse do aqueduto de Sylvius. Não houve passagem do lipiodol para o 4.° ventriculo. Ligeiro desvio do 3.° ventriculo para esquerda. Diagnostico: tumor cerebral comprimindo a porção posterior do 3.° ventriculo. Vide figs. 1. 2 e 3.

Intervencão cirurgica (praticada em 24-8-38 pelo Dr. Carlos Gama). Anestesia: clister de avertina mais infiltração local pela percaina a 1 (40 cc.). Operação praticada sobre o occipital e parietal direito. Retalho dura-mater de base voltada para linha mediana. Pólo occipital herniou fortemente devido a grande hipertensão endocraniana. Puncionado o ventriculo lateral direito deu saída a grande quantidade de liquor e ocasionando notavel colapso da hernia. Libertado o hemisfério direito, ao nível do ocipital, de pequenas aderencias vasculares com o seio longitudinal superior e com granulações de Pacchioni, houve pequena hemorragia que logo cedeu. Afastado para longe, da foice do cerebro, o pólo ocipital por meio de espátulas e mechas de gaze, imbebidas em sôro fisiologico quente, facilitando, assim, a exposição da foice do cerebro, da tenda do cerebelo e do corpo caloso.

Logo atraz do esplenio do corpo caloso, foi notado um espaçamento da aracnóide, sob a forma de uma membrana esbranquiçada que proeminava devido a saliência de um tumor, de côr vinhosa e que foi isolado aos poucos. Era do tamanho de uma avelã e estava fixado, inferiormente, por inserção resistente, Macroscopicamente, e pela séde, julgou-se tratar de um pinealoma. O tumor cavalgava a foice do cerebro sendo que sua porção esquerda parecia maior que a direita. A craneotomia foi praticada, intencionalmente, á direita. Não tendo sido conseguida a extirpação total do tumor, foi, o mesmo, excisado, em pequenos bocados, por uma pinça saca-bocados.

A visibilidade muito bôa, graças ao afeatador iluminado. Hemostasia bôa, praticada pela aspiração e deixada, in loco, um retalho muscular. Feita a excisão do tumor e a hemostasia da zona operada, o hemisfério foi reposto, a dura suturada com seda preta finíssima. Recolocado o retalho osteo-musculo-cutaneo, sendo que os musculos e a aponevrose foram aproximados a catgut, e deixado um dreno de crina de Florença. Pele fechada a pontos separados de seda grossa.

No mesmo dia da intervenção, ás 9 horas da noite, o doente veio a falecer com um sindrome bulbar, provavelmente edematoso.

Diagnostico histo-patologico: Periteliotna. (Dr. E. Maffei).

COMENTARIOS

Analisemos, mais detalhadamente, alguns dos sintomas, quer expontaneos, quer provocados, observados no paciente de nossa observação, afim de chegarmos a demonstração do porque da afirmativa localisadora de nosso diagnostico que, conforme se lê na descrição da intervenção cirurgica, e no achado que ela proporcionou, estava certo em quasi todos os seus pontos.

Senão vejamos: a) o apontar errado do nariz indicava uma compressão dos centros coordenadores do cerebelo e, assim, uma lesão alta; b) a anamnese com vomitos em projétil nos dizia das proximidades da fossa posterior e o abaixamento interno da visão, em ambos os olhos, desde o inicio da afecção, fala por uma perturbação das vias opticas posteriores - propriamente nos tuberculos quadrigêmeos posteriores; c) o nistagmo horizontal expontaneo, sem componente rotatorio, que se torna retractil quando do olhar para esquerda e para cima, a convergência dos olhos, quando da ordem de olhar para cima, a que se segue um nistagmo rotatorio retractil, bem caracteristico, em ambos os olhos, para esquerda; d) o olhar em frente do globo ocular direito, quando o esquerdo olha para esquerda e para fóra, na ordem de olhar para baixo; e) o desvio conjugado dos olhos para direita, na prova calórica fria do ouvido direito; f) o nistagmo horizontal, mais acentuado no olho esquerdo, para direita a que se seguiu, logo, um desvio conjugado dos olhos para a esquerda; g) os resultados normais das provas rotatórias, 30° à frente, para os canais horizontais, cujas fibras seguem, segundo Jones, os pedúnculos cerebelares inferiores intactos em nosso caso; h) a ausencia de nistagmo, tanto a direita quanto a esquerda, nas provas rotatórias, 90° á frente, para pesquiza da função dos canais verticais - Todos esses achados falam por uma lesão assestada alta no tronco do encefalo, ao nivel da parte posterior do 3.,° ventriculo e comprimindo o aqueduto de Sylvius e os tuberculos quadrigêmeos posteriores.

1) O nistagmo perverso quanto o inverso indicam uma lesão do tronco cerebral. Nem uma, nem outra destas formas de nistagmo podem ser produzidas por uma lesão do labirinto ou do VIII° nervo; uma lesão periférica produziria um nistagmo fraco ou nenhum nistagmo, mas uma resposta falsa, á excitação, indicará, necessariamente, lesão do tronco do encéfalo.

2) O desvio conjugado dos olhos, quer espontâneo, quer provocado, em vez do nistagmo, a ausencia do componente rapido deste, indicará lesão na base da crura cerebral, onde as fibras provenientes do cérebro são distribuídas aos nucleos motores oculares, ou em qualquer outro ponto mais elevado da via cerebro-ocular.

3) Ainda de maior importancia diagnostica é o nistagmo retractil, quer espontâneo, quer provocado - que apresenta o nosso paciente. Constitue sintoma de grande raridade sobretudo quando observado com a clareza com que demonstrou o exame de nosso caso. "Constitue este nistagmo na penetração brusca do globo ocular na orbita, seja quando dos movimentos dos globos oculares, seja sem ele. Os primeiros casos observados foram apresentados por Körner, que, tambem, o batisou com esta denominação. Alguns foram autopsiados entre eles o de R. Salus, Elsching e Barany. No de Salus tratava-se de uma vesicula de ciscessar a inervação dos movimentos do olhar, de tal forma que no Sylvius; no de Elsching de um nervo-epitelioma gliomatoso, que partindo do ependimo caminhou pela parede posterior do 3.° ventriculo e desenvolveu-se no aqueduto de Sylvius.

O movimento retractil foi explicado por Elsching como sendo a consequencia de uma pressão difusa sobre os nucleos dos musculos oculares ainda intactos, e cujas vias e as do feixe longitudinal posterior favoreceriam esta especie de perturbação no se processar a inervação dos movimentos do olhar, de tal forma que o movimento ocular voluntario, este impulso voluntario passaria todo para a musculatura externa dos olhos. Tendo em vista a preponderância dos musculos rétos sobre os obliquos, uma retracção do globo ocular seria a consequencia.

A convergência dos olhos foi observada tanto no caso de Salus quanto no de Elsching e no nosso - Este ultimo autor atribue o fenomeno da convergencia, não a uma inervação de convergência, mas a predominancia dos adutores sobre os abdutores.

O aparecimento do nistagmo retractil é, tambem, característico dos tumores do cérebro, que obstruam o aqueduto de Sylvius e que não provêm nem dos tuberculos quadrigêmeos, nem da base do mesencéfalo. No entanto, tambem os tumores dos tuberculos quadrigêmeos podem ocasional-o (Barany), neste caso ele estará combinado ao nistagmo expontaneo e, como no nosso caso, a paralisia vertical do olhar (Hans Brunner, Hand. der Neurologie des Obres - vol. 1, pg. 960).

4) Finalmente, a ausencia do nistagmo provocado pela prova rotatoria, isto é, a ausencia do nistagmo rotatorio quer quando da excitação do ouvido direito, quer quando da do esquerdo, fala, claramente, por uma lesão destrutiva do feixe longitudinal posterior que, aqui, estaria colocada alta, junto aos nucleos oculo-motores, cujo funcionamento se achava completamente perturbado: paralisia do olhar para cima; persistencia do olhar em frente com o olho direito, quando o esquerdo olhava para fóra e para baixo.

De conjunto sintomatico tão caracteristico ressaltou o diagnostico feito que foi confirmado pela intervenção cirurgica.

A curiosidade e a nitidez sintomática oto-neurologica apresentada por este caso nos faz traze-lo, agora, á consideração dos colegas brasileiros e em homenagem ao Prof. João Marinho, que festeja seu jubileu professoral.




(*) Chefe das Clinicas de Oto-rino-laringologia da Sta. Casa de Misericordia de S. Paulo e do Hospital Municipal de S. Paulo.

Imprimir:

BJORL

 

 

 

 

Voltar Voltar      Topo Topo

 

GN1
All rights reserved - 1933 / 2024 © - Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial