Ano: 1940 Vol. 8 Ed. 6 - Novembro - Dezembro - (11º)
Seção: Trabalhos Originais
Páginas: 467 a 472
PAROSMIA E PARACEUSTIA CONSECUTIVA A TRAUMA CEREBRAL
Autor(es): PROF. DR. MAURILLO DE MELLO (*)
Parosmia e parageustia, sem perturbação mental tal como se vê no alcoolismo e na schizophrenia, é excepcional, e desconhecemos qualquer referencia a respeito.
Folheamos (1) toda coleção da Revista Mensal terapêutica de oto-rino de Vienna destes ultimos 10 annos, e só encontramos referencias, em 3 unicos numeros, de traumatismos do osso frontal reflectindo-se aos seios da face, á estructura ossea, e ás partes molles; não havendo, no entanto, a menor allusão relativa a complicações cerebrais decorrentes.
Pela raridade, portanto, do caso vertente, com uma bibliografia de todo silenciosa sobre o assunto, achamos não ser desmerecedora de atenção para os neurologos como para os especialistas, a observação que se segue, e que, se vem a publico é sómente á guiza de um simples e despretensioso registro. Eis o nosso intuito, nada mais.
OBSERVAÇÃO
M. A. J. - soldado n.° 431 - 3ª. classe - 2ª. Cia. Telegrafista do Corpo de Bombeiros, 36 annos de idade, cor branca, casado, brasileiro, residente em lrajá.
Historio da doença atual - Datam de 2 mezes os seus males, após uma queda que sofreu. Certo dia, estando em serviço na Estação de intendente Magalhães, tocou em um fio condutor de energia electrica colocando-se em curto-circuito e sendo deste modo eletrocutado.
Nos primeiros momentos, sentiu-se preso ao cabo electrico em que tocára, mas logo caiu, juntamente com a escada que o sustentava, tocando o solo com a cabeça e o thorax.
Perdido o conhecimento durante certo tempo e voltando a si, sentiu-se vertiginoso com forte cefaleia e ligeira epistaxis.
Mesmo assim, apezar deste estado, conseguiu chegar até ao Hospital do Corpo de Bombeiros, pelos seus proprios meios, baixando imediatamente á enfermaria, com o seguinte protocolo de entrada.
"Apresenta-se logo indiferente, vertiginoso. e com forte cephálea. Zumbidos. Visão confusa. Epistaxis. Pulso 80. Temp. 36,4 - Pressão arterial - mx. 13 ma. 8.
O exame clinico não revela, no momento, signaes de fratura da aboboda craneana pois saio ha feridas contusas ou escoriações na cabeça. Logo após a baixa ao hospital, no dia seguinte, teve um escarro homoptoico.
Obteve alta no fim de 26 dias; durante sua estadia hospitalar apresentou-se com uma congestão pulmonar, intercorrente de que se curou sem sequelas.
Na ocasião de sua alta, já apresentava as perturbações atuais e que motivam a sua consulta ao nosso serviço, isto é, sensação desagradavel de peso na cabeça e perturbações da gustação e da olfação. De nada mãe se queixando.
Exame do liquor: em 45-7-40 - Puncção na linha Ruffier (4ª. e 5ª. lombar); liquido de aspecto rosado; para não-haver duvidas de ferimentos de algum vaso, no trajeto, foi feita, no mesmo momento, outra punção entre a 12ª. dorsal e 1ª. lombar; mesmo aspecto rosado.
O resultado foi o seguinte:
Ausencia de germes, Gram positivo e Gram negativo; alguns lymphocitos, raros polymorphonucleares, raros mononucleares. Numerosas hematias. Após centrifugação, xantocromia do liquido sobrenadante.
Exame radiografico em 16-7-40. Duas posições: Fratura do frontal irradiado ao andar anterior da base. (Dr. Damasceno).
Exame otorino - ligeiro desvio cie septo a esquerda. Mucosa normal, ausencia de secreção e de polypos nasais. Amygdalas atrophiadas sem cripta e sem cazeum. Os dentes os que existem, e que são poucos, estão tratados.
No exaure sensorial, o paciente distingue o amargo do doce, e do salgado, assim como as demais sensações gustativas porem, com uma perversão: o gosto do azinhavre. Em relação ao olfato não sabe distinguir as sensações agradaveis ou não, todos os odores se assemelham tambem ao azinhavre.
Exame neurologico
Marcha: normal Estáticas: não ha lateropulsação Romberg negativo.
Motibilidade voluntaria: normal
Força muscular: membros superiores e inferiores normaes.
Fig.1
Fig.2
Fig.3
Fig.4 - CENTROS CEREBRAIS DA OLFAÇÃO E DA GUSTAÇÃO(Terracol)
1- centro da gustação ( subiculum cornu Ammonis de Ferrier).
2- centro olfativo principal (lobulo de hipocampo).
3- raizes olfativas internas e externas.
4- pedunculo e bulbo olfativo.
5- centro olfativo secundário (circumvolução do corpo caliso).
Reflexos: tendinosos, vivos nos membros superiores e inferiores mas simétricos.
Cutaneos: os abdominais estão presentes - os cremasterinos: normaes.
Cutaneo plantar em flexão de ambos os lados.
Sensibilidade
- Superficial
- tactil
- dolorosa - todas Normaes
- termica
Atitudes segmentadas: normal
Não ha paresia facial. (Ass.: A. Akerman).
Ligeiras considerações.
Para melhor comprehensão do presente caso, não será de todo desvaliosa uma rapida recordação das localisações e funcções cerebrais referentes ao assunto.
Deixando de lado o territorio nervoso periferico, por não interessar á observação, somente recapitularemos o territorio encefalico onde se alojam os centros corticais da alfacção e gustação.
A figura que acompanha este modesto artigo, fallará melhor e avivará recordação, pois a anatomia da região já é sobejamente conhecida.
Os auctores são acordes, mais ou menos, sobre as localisações cerebrais olfativas e gustativas; ligeiras discrepâncias, pequenas diferenças, apenas, sobre sua extensão ou visinhança.
Para Terracol (2) os centros olfativos se acham nos centros hippocampico, calloso, orbitario e centro temporal; e acrescenta: hoje em dia tende-se a admitir que o lobulo do hipocampo e o uncus constituam os centros principaes da olfação. Von
Economo, citado por Lhermitte (3), diz que a arca olfactiva corresponde a parte media, do lobulo límbico e a arca gustativa ao uncus do hipocampo.
Já Bianchi, tambem citado por Lhermitte, localisa a arca olfactiva no uncus do hipocampo e a gustativa um pouco para atraz dele.
São arcas, entretanto, no parecer de todos os anatomistas, que tendem a desaparecer pois se acham em franca regressão no homem; observando-se o contrario nos animais macrosmaticos, que se apresentam em grande desenvolvimento. No homem, conclue Lhermitte, o papel da circulação do uncus é preponderante na olfação e na gustação, tanto assim que lesões, nesta zona, sempre determinam perturbações do olfato e do gosto.
Na verdade os centros da gustação, não se achando bem definidos, os autores os entrosam e misturam com os centros da olfação, maxime na porção posterior da circunvolução do hipocampo, no corno de Ammon ou subiculum cornu Ammon de Ferrier.
Segundo Stuart Rowe (4) as perturbações olfativas associadas as perturbações gustativas tem um grande valor para a localisação de uma lesão organica cortical.
José Portugal (5) em recente trabalho diz, com grande minudencia anatomica que, havendo perturbações olfativas e gustativas não basta se localisar a lesão no lobulo temporal; é necessario maior precisão; -na circunvolução do hippocampo, no uncus e no corno de Ammon, é que deverá ser localisada a referida lesão".
Esta localisação é reforçada ainda pela autoridade de Curshmann-Kramer (6) conformando que os centros corticais do olfato se acham na circunvolução do hippocampo e no corno de Ammon.
Charles Elsberg (7 ) depois de apresentar uma serie de artigos importantíssimos sobre o olfato, nos tumores cerebraes, diz que a hyposmia ou anosmia é frequente depois dos graves traumatismos cranianos. Elle não se refere, entretanto, nem uma só vez ás parosmias.
O mesmo autor, sem sereferir ainda ás parosmias, narra que nas craneotomias transfrontaes, com a elevação, na manobra cirurgica do lobo frontal o traumatismo das fibras do nervo olfactivo determina o aparecimento de uma anosmia do mesmo lado.
Purwes Stewart (8) definindo a parosmias como perversão do sentido diz que é sempre cortical a sua origem. As perturbações subjetivas do olfato ocorrem em certas doenças mentais, especialmente nas paranóias, tipo schizophrenico e nas psychoses chronicas do alcoolismo.
Estas perturbações tambem estão presentes nas grandes lesões do uncinatus gyrus, centro cortical do olfato.
Charles Thomas (9) affirma serem symptomas principais, em certas lesões centres do cortex olfactoria, especialmente no uncinatus gyrus de ambos os lados, a somnolencia e as perturbações do olfactos.
Por uma razão qualquer estes odôres são usualmente de natureza desagradavel e multiforme. Para Charles Thomas são de grande valor nas localisações tumoraes estas perturbações olfativas, pois significam sempre lesão das partes anteriores do lobo temporal.
Klippel e Lhermitte (10) citam de passagem, em simples menção, a parosmia parasítica na tabes.
Em 55 casos de tumores temporais constatados, Frazier (11) observou em 48 pacientes disturbios do olfato, alucinações, mas não cita nem um de parosmia.
De trabalhos e artigos compulsados, não encontramos nenhum caso semelhante ao nosso. Não observamos nem mesmo uma citação em toda a bibliografia sobre traumatismo craniano, provocando concomitantemente a parosmia e a parageustia.
Já os casos de anosmia, entretanto, são comuns, e vemos citados todos os dias nos traumatismos cranianos, maxime quando existem lesões do nervo olfativo, consequentes a fracturas da lamina crivada. Sabido tambem é o "transtorno do gosto tanto nas enfermidades como nos traumatismos dos nervos cranianos (facial trigemio e glosso pharingeo).
Na nossa observação o paciente, consoante o exame neurológico, não apresenta nada de anormal para estes nervos.
Como provam as radiographias, é de admirar que em uma tão extensa fractura do frontal, haja ausencia absoluta de qualquer exteriorização local, como sejam: vermelhidão, ferida contusa e escoriações de pele e do couro cabeludo. Nada.
Portador, na verdade, de uma epistaxis no momento do accidente, caminhando por si mesmo de tão longe, em direcção ao hospital, sem otorragia, sem dar impressão clinica de fratura de base, é tambem de admirar a feliz ideia do colega que ao socorrer o paciente, lembrou-se de uma radiographia craniana, á primeira vista aparentemente prescindível. Portanto, nos traumatismos do craneo, mesmo ligeiros, uma radiographia nunca será demasia, sempre se impõe.
CONCLUSÕES
Pelo traumatismo soffrido, pela rhinoscopia negativa (aliás sempre negativa nas parosmia), pelo exame neurológico, pelas radiographias, pela symptomatologia subjetivas ainda hoje presente, pelos symptomas objetivos constatados nos exames acessorios por ocasião e apos ao accidente (puncção lombar, laboratorio e R. X) não julgamos afoiteza nossa o diagnostico seguinte: "parosmia e parageustia, de origem traumatica por CONTUSÃO do lobo temporal da sua porção anterior (circunvolução posterior do hipocampo, uncus e corno de Ammon)".
Embora a fratura seja no frontal, segundo Cushing, (¹²) nos traumatismos do craneo com irradiação para base (vide 1ª. e 2ª. radiografias) a ponta do lobo temporal e a base do lobo frontal são as regiões mais frequentemente lesadas. Além disso, dada a extensa fratura observada e dado o minimo de sinais neurologicos objetivos, devemos nos inclinar para uma contusão originada por um micro-traumatismo do cortex. Este facto é ratificado e objetivado, além disso, pela razão de que o doente logo apoz o traumatismo se apresentou com a sindrome post-commocional de Pierre Marie e Behague (191 7) - (cephaléa, vertigem e falta de attenção).
O paciente está em sua plena atividade de trabalho. Sem consolidação a sua fratura, receiamos para o futuro alguma complicação pois, a parosmia e a parageustia sendo de origem sempre cortical devem ser encaradas com seriedade. Prenunciam uma lesão organica cerebral, bem localisada, e seu prognostico será funcção da reacção da glia ao abalo cortical.
BIBLIOGRAFIA
1 - Monatsschrift fuer Ohrenheilkunde und Laryngo-Rhinologie, Vienna, 1934 - 1935 - 1938.
2 - Les maladies des fosses nasales. J. Terraeol, 1936 - Pag. 9.
3 - Precis d'Anatomo - Physiologie Normale & Pathologique du Systheme nerveux central. Jean Lhermitte, par Pierre Masquin & J. O. Trelles - Pag. 423 - 1937.
4 - Verified of the Temporal Lobe. Rowe Stuart, (Arch. Neurol & Psychiatry. - (30 - 833 - 1933).
5 - Cura cirurgica de um grande meningioma com signaes de compressão do lobo temporal. José R. Portugal. "O Hospital, Fevereiro 1938.
6 - Tratado de las enfermidades del sistema nervioso. Curschmann - Kramer. Editoral Labor, 1931.
7 - The sense of Smeil. Bulletin "Neurological Institut of New York", Charles Elsberg, Vol. IV - 1935 - 1936.
8 - Diagnosis of nervous Diseases. Purwes Stewart - 1937.
9 - Neurology. Grinker, 1937 - Editor Charles Thomas.
10 - Klippel Lhermite - Semaine Medical, le 17 Février 1909.
11 - Localization of function in the cerebral cortex. 1934. Pag. 255 - Charles H. Frazier and Stuart Rowe.
12 - Subtemporal decompressive operations for the intracranial complications associated with bursting fractures of the skull. By Harwey Cushing M. D. - Volume XLVII - May 1908. Pag. 641 - n.° 5.
(*) Catedratico de clinica oto-rino-laringologica da Faculdade Fluminense de Medicina.