Versão Inglês

Ano:  1940  Vol. 8   Ed. 6  - Novembro - Dezembro - ()

Seção: Trabalhos Originais

Páginas: 429 a 440

 

DAS LOCALIZAÇÕES RARAS DA DIFTERIA: DIFTERIA DO LÁBIO, COM MAIS DE CINCOA NOS DE DURAÇÃO

Autor(es): DR. PAULO MANGABEIRA-ALBERNAZ (*)

Na sessão de 17 de Abril de 1933 apresentava eu, à Secção de Oto-rino-laringologia da Associação Paulista de Medicina, um caso de difteria do lábio com mais de três anos de duração. Mais de dois meses após ter o paciente recebido 208.000 unidades de sôro específico e em seguida a dois exames bacteriológicos negativos, julguei poder considerar o doente curado. Antes, porém, de ser publicado o caso na íntegra, o mal tornou a manifestar-se, pelo que resolvi suspender a publicação. Por mais dois anos a afecção, rebelde a todos os tratamentos, não pôde ser jugulada, até que se recorreu à decorticação do labio pelo bisturi elétrico. O doente curou-se definitivamente, e, depois de mais de quatro anos de curado, é que venho dar a lume a curiosa observação.

OBSERVAÇÃO - A 9 de Outubro de 1931 apresentava-se ao Serviço Ambulatório da Companhia Paulista, no Instituto Cirúrgico Bernardes de Oliveira, o indivíduo Mário D., de côr preta, com 24 anos, casado, eletricista, residente em Rio Claro. Vinha à consulta por causa de uma lesão ulcerosa rebelde, que lhe aparecera havia tempo no lábio inferior, em consequência de um traumatismo (Fig. 1). Após os exames comuns, o médico que o atendeu, o Dr. Bernardes de Oliveira, diretor do Hospital e chefe do Serviço, pediu o exame bacteriológico da secreção da úlcera. Obteve uma resposta em verdade surpreendente: tanto o exame direto, como a cultura e a inoculação em cobáia, revelaram a presença do bacilo diftérico! Ao paciente foi por isso prescrito o uso do sôro específico. O usado foi o de Behring, recebendo o doente, por via sub-cutânea, 45 mil unidades anti-tóxicas. Antes, porém, do emprêgo do sôro, e enquanto era aguardado o resultado do exame bacteriológico, fez o paciente uso, por indicação do mesmo facultativo acima citado, de embrocações diárias com o soluto violête de genciana-fucsina. E sómente então que o Dr. Bernardes de Oliveira, ante a segunda surpresa de não ter a lesão cicatrizado após o uso do sôro, resolve passar o paciente a meu serviço na "Clínica Stevenson", em vista do interêsse que o caso me despertara.

História Clínica - O paciente apresenta-se no meu serviço a 1.° de Março de 1932. Conta que a 21 de Junho de 1930, quando se exercitava num encontro de foot-ball, recebera violenta bolada na face, traumatismo êste que determinara uma lesão algo irregular do lábio inferior. Com tratamentos adequados, verificou-se a cicatrização dentro de trinta dias. Recebe então, mal desaparece a lesão, outro traumatismo, e de novo se abre o talho mal cicatrizado. Sessenta dias são necessários para que se verifique a reparação total, quando um novo trauma, com uma corrente cheia de graxa, reabre pela terceira vez a lesão. Mais de um ano depois do primeiro acidente é que se verifica ser a ulceração, senão causada, pelo menos entretida pelo bacilo diftérico.

Antes dessa verificação, tratou-se o paciente com o médico local, e êste lhe prescreveu um tratamento específico anti-luetico. Recebeu uma série de injeções de bismuto e outra de injeções de neosalvarsan (2 primeiras doses, 2 segundas, 2 terceiras e 2 quartas) num total de 3 grs. O resultado foi nulo. Localmente foi-lhe prescrito o uso de vaselina esterilizada, a princípio, e, depois, de uma pomada com calomelanos.

Após o emprêgo do sôro, e ante o insucesso da medicação, fez uso ainda, por indicação médica, de lavagens da lesão com água oxigenada a 3 %, lavagens estas seguidas de aplicação de uma pomada de óxido amarelo. Todos êstes tratamentos não surtiram o menor efeito.

Antecedentes de família - Mãe viva; pai morto, não sabe de que. Tem um filho, mas perdeu três: um de sete mêses, e dois gêmeos, que faleceram de coqueluche aos quatro mêses de idade. A mulher é sadia, e nunca abortou.

Antecedentes pessoais - Gozou sempre de ótima saúde. Não teve nenhuma doença de certa gravidade. Nunca sofreu de anginas, nem teve siquer simples dores de garganta.

Exame clínico - Como vimos, a lesão, que data de menos de dois anos, teve por origem um traumatismo. Não comicha, não dói. Formam-se crostas secas, duras, que espontaneamente se eliminam. Logo que isto se verifica, desenvolve-se uma bolha de água, e volta a úlcera a se formar.

Indivíduo de aspecto sadio. O exame dos órgãos e aparelhos não apresenta o menor interêsse.

Na bôca, nota-se um processo intenso de gengivites hipertrófica. Os dentes são bons; as amígdalas estão reduzidas às proporções da amígdala do adulto. A mucosa é normal por toda parte da bôca, da faringe e do laringe.

O processo localiza-se apenas no lábio inferior. Respeita rigorosamente a parte vestibular, como tambem a parte cutânea, assentando única e exclusivamente na polpa do lábio. Trata-se de uma lesão crustosa, irregular, que traz o lábio muito edemaciado e, por isso, algo pendente.



O paciente e outubro de 1931.



O paciente em 1936, antes da radioterapia.



O mesmo, um mês depois.



O paciente três meses após a cura.



As crostas são duras, secas, gretadas, escuras, quási pretas. Quando se levanta uma delas, sobretudo uma das grandes, ela se destaca facilmente, deixando a descoberto uma mucosa branca, de aspecto leitoso. Noutros pontos, há, sob a crosta, uma pequena depressão cheia de pus amarelo, ligado, espesso.

A palpação das regiões laterais e média superior do pescoço denota a presença de raros gânglios ingurgitados.

Os primeiros exames microbiológicos foram efetuados pelo Dr. J. Schwenck, então chefe do laboratório de análises da Companhia Paulista. O primeiro sôro, empregado na dose de 45 mil unidades, foi injetado em Outubro de 1931. Em Março de 1932 enviei o paciente a S. Paulo, ao Dr. Marcos Lindenberg, para ser feito novo exame da secreção. O exame direto, as culturas em sôro e em meios açucarados, a inoculação em cobáia, demonstraram que a lesão era ainda produzida pelo bacilo diftérico.

Terapêutica - De posse dêsse resultado, comecei a tentar o tratamento do meu paciente.

A primeira terapêutica prescrita foram embrocações combinadas com o soluto de violête de genciana, corante de ação muito enérgica sôbre o bacilo diftérico, e com o soluto de tripaflavina a 2 por mil. Os resultados foram insignificantes.

Resolvi tentar então a luz ultra-violête. Para isso, dirigi-me a um especialista, o Dr. Dias da Silva, chefe do serviço de eletroterapia na Beneficência Portuguesa.
Vejamos o seu láudo, após o tratamento.

"Lâmpada de mercúrio, Hanau. Aplicações locais à distância de 20 cents., estando a pele visinha bem protegida. Foram feitas 28 aplicações sem ritmo, de duração variável, segundo o objetivo, podendo, contudo, ser divididas em três séries distintas, havendo um intervalo de oito dias entre cada uma".

"O objetivo, desde o início, foi provocar um eritema, o qual foi, mantido durante toda a primeira série, havendo o cuidado de removerem-se as crostas que, pela espessura, eram opacas aos ráios ultra-vi-olêtes".

"As séries 2 e 3 visaram provocar respectivamente a vesicação e flictenização, indispensáveis para obter-se o efeito terapêutico desejado a esterilisação da úlcera (Donnelly)".

"Durante o tratamento notou-se melhora sensível, chegando mesmo, no final da 2.ª série, a limitar-se a lesão sómente à metade direita e interna do lábio".

"Um intervalo de 8 dias, exigido pelo estado da mucosa da região clinicamente curada, fez que a virulência dos germes recrudescesses, e, quando o doente voltou, todo o lábio estava de novo invadido".

Acompanhei todo êste tratamento, e cheguei à convicção de que o paciente se curaria com esta terapêutica. Mas infelizmente assim não aconteceu.

Resolvi recorrer então à diatermia. Comecei por fazer aplicação do simples eflúvio. O resultado foi nulo. Passei depois à electro-coagulação. A princípio, fiz pequenas aplicações superficiais, verdadeiro pontilhado da região doente, após a exoneração de todas as crostas e a necessária anestesia. Ainda os resultados foram negativos. Passei à electro-coagulação mais profunda, de que foram feitas quatro sessões. Com isto, a cura chegou a se esboçar, tal como acontecera com os ráios ultra-violêtes. Mas, dentro de pouco, tudo voltou ao estado anterior.

Diante do fracasso da electro-coagulação, consultei o Dr. Afrânio Amaral achou, porém, preferível o emprêgo da anatoxina, tal como se usa diftérica diluída. Desejava tentar o novo tratamento proposto por Chavanon, por meio da própria toxina na trigésima diluição. O Dr. Afrânio Amaral achou, porém, preferível o emprêgo da anatoxina, tal como se usa para a vacinação preventiva. O paciente recebeu as injeções clássicas de um, um é meio, e dois cc. Entre a 2.ª e a 3.ª ficou a lesão quási completamente cicatrizada, mas, apesar de ter eu aumentado a dose até 6 cc. por injecção, e diminuído os intervalos, o resultado foi absolutamente nulo.

Lembrei-me então de voltar ao sôro, combinado a pequenas doses diárias de 914, tratamento proposto recentemente por autores alemães para as formas graves da difteria.

Este tratamento foi iniciado a 26 de Janeiro de 1933. Após os cuidados especiais (esqueptofilaxia) recebeu o paciente 40 mil unidades antitóxicas (sôro de Butantan). Logo que se retirou da Clínica, apareceram urticária intensa, tonturas, mal estar, etc., o que mais tarde em parte se atenuou. A urticária, porém, aumentou, e o paciente chegou ao Serviço, na manhã de 27, sentindo-se muito mal. Foi-lhe feita uma injeção intravenosa de 0 gr,15 de 914 diluída em 10 cc. de calfenil. A tarde tinha desaparecido todo e qualquer sinal de urticária. Nêste dia começa o paciente a fazer uso da soluto benzo-salicilado de Vincent, que foi empregado continuadamente até o fim do tratamento. O sôro, nêste dia, como nos seguintes, foi usado da seguinte maneira: dois terços por via subcutânea e um terço por via intra-muscular. No dia 28 recebe o paciente mais 40 mil unidades; a 29, pela manhã, 0 gr,30 de 914 em 10 cc. de calfenil, e à tarde, 40 mil unidades. No dia 30 pela manhã, igual dose de 914 no mesmo veículo, e à tarde 44 mil unidades de sôro. A 31, nova dose de neosalvarsan pela manhã, e à tarde a última dose de sôro (44 mil unidades). Recebeu, pois, o doente, uma dose global de 260 cc. de sôro com 208 mil U.

Durante êste tratamento, a lesão foi regredindo a olhos desarmados. Mas a cicatrização total não se deu.

O paciente é de novo enviado ao analista. Debaixo da única crôsta existente, encontra o Dr. Souza Mariz, analista do Hospital "Circolo Italiani Uniti", amplo material, em que, nem o exame direto, nem o cultural, pôde revelar a presença de bacilos diftéricos. Nas culturas, bem semeadas, mas muito pobres em colônias, só se desenvolveu o estafilococo branco.

Voltou o doente para casa, tendo-lhe eu prescrito embrocações com mercuro-cromo a 2 %. Uma semana depois estava ainda a lesão com alguns pontos sem cicatrizar. Receito-lhe uma vacina antipiogênica polivalente. A 10 de Abril a lesão é insignificante. Vai de novo ao analista (Dr. Souza Mariz) que consegue obter material reduzidíssimo para o exame. Este resultou negativo.

A 16 de Abril vejo ainda o doente, e posso dizer que a cicatrização é completa.

Após alguns meses, vim, no entanto, a saber que a cura fôra apenas aparente. Surgira, certo dia, no lábio, à esquerda, uma pequena vesícula que, aumentara de tamanho, rompera-se, e se transformara em lesão idêntica às anteriores: úlcera rasa coberta por uma crosta sêca. O paciente só muito depois voltou à minha presença (Figa. 2 e 3).

Nada mais me ocorrendo, resolvi indicar a radioterapia, para o que o paciente foi enviado ao serviço radiológico do Hospital Irmãos Penteado, a cargo do Dr. Dias da Silva, onde o doente se apresentou a 28 de Fevereiro de 1936. O tratamento consistiu em 6 aplicações de 100 ri, com intervalos de 2 a 4 dias, uma porta de entrada, campo de 6 x 8, filtragem de 1 mm.de Al; kvl. = 120 e ma. 4.

Os resultados foram nulos. Propoz-me então o Dr. Dias da Silva a decorticação do lábio pelo bisturi elétrico, o que foi efetuado a 1.° de Dezembro de 1936. Anestesia por infiltração com novocaina a 0 gr. 50 % com sulfato de potássio. Decorticação total do lábio inferior, de que foi retirada uma camada de alguns milímetros de espessura. Sobre a lesão operatória, penso simples, após aplicação de pomada de violête de genciana a 1 %. A 14 de Dezembro o paciente saiu do hospital.

A cicatrização foi relativamente lenta e total. Um mês depois, o paciente estava curado. Seis meses após, foram feitas as fotografias das Figs. 4 e 4-A. Até a presente data (26 de Novembro de 1940) está o paciente curado.

Em resumo, verifica-se que o processo difterico, apurado embora em Outubro de 1931, devia datar de cêrca de um ano antes. Quer isso dizer que perdurou por mais de cinco anos, só cedendo à decorticação com o bisturi elétrico. A dose enorme de soro que elevou o paciente a verdadeiro campeão (entre nós não são utilizadas as grandes doses empregadas no estrangeiro), não influiu senão passageiramente
sôbre o mal.

O caso que acabo de descrever é um dêsses cuja raridade não pode ser discutida. Pesquisa bibliográfica acurada não me permitiu encontrar, quer em revistas especializadas, quer em tratados e monografias, nenhuma observação semelhante.

Eivine e Schoenbaum publicaram, em 1934, um estudo referente às localizações raras da difteria. Tomando por base os 91 casos observados em Kiew (Rússia), na quarentena de Julho e Outubro de 1933, observaram 25 casos de difteria cutânea, 14 de difteria ocular e, entre outros, apenas 2 de difteria da bôca. Estudando os casos de difteria cutânea, registram 4 em redor da bôca. Dentre as observações verdadeiramente curiosas, assinalam a de uma áia, que apresentou supuração em uma fissura do polegar, e a de uma freira, em que se manifestaram panarícios em três dedos. Em ambos os casos, o estudo bacteriológico provou que o agente causal fôra o bacilo diftérico.

J. Martinho da Rocha observou na Secção de Pediatria do Hospital de S. Sebastião, no prazo de seis anos (1.° de Janeiro de 1931 a 31 de Dezembro de 1936), 374 casos de difteria. Dêstes, havia apenas oito casos de difteria labial. Não só nos casos de Eivine e Schoenbaum, como nos do autor brasileiro, não pude apurar se tratava de difteria isolada do lábio.

O caso por mim observado tinha por sede o lábio inferior, e exclusivamente a parte do lábio exposta ao ar, mas, ainda assim, só a parte mucosa. No entanto, pode se dizer que apresentava todas as características da difteria cutânea.

Em estudo exaustivo publicado a respeito da difteria da pele, diz Rabelo Junior que ela é quási sempre uma afecção diftérica atípica, isto é, que se assemelha às dermatoses vulgares. Assim, de fato, se verifica, pois, não raro, só a pesquisa bacteriológica permite chegar-se a diagnóstico.

Tal se deu no meu caso. A lesão tinha o aspecto clássico da impetigem, da chamada impetigo figurata. Vejamos a descrição deste mal, quando localizado no lábio, segundo Nogué: Pequenas manchas eritematosas de tamanho que varia do da cabeça de um alfinete ao de uma ervilha, processo seguido da formação de bolhas claras que não tardam a romper-se, dando escoamento a serosidade côr de âmbar. Esta se congrega em crostas espessas e amareladas, que se alastram pela mucosa, e sob as quais a superfície doente continua a exsudar. Foi a esta afecção que Marfan deu o nome de fabialite impetiginosa difteroide.

Outra afecção que se apresenta sob aspecto algo semelhante é o eczema. Na impetigem há endurecimento local, a secreção é purulenta ou sero-purulenta e amarela. No eczema, é serosa e clara. Sob as crostas finas, a mucosa apresenta rachaduras longitudinais ou transversas muito dolorosas. O herpes simples não apresenta dificuldade diagnóstica; dá preferência ao limite entre a mucosa e a pele, e não apresenta crostas extensas, como a impetigem e o eczema.

Dois tipos outros de inflamação do lábio são assinalados pelos autores alemães. A chilitis exfoliativa, que só se observa no lábio inferior, caracteriza-se por infiltração pronunciada da mucosa e secreção discreta; o lábio apresenta-se muito aumentado de volume. A chilitis glandulares apostematosa ou myxoadenitis labialis ou doença de Baelz, descrita por este autor e por Unna, caracteriza-se por infiltração das glândulas labiais com secreção muco-purulenta, que dá origem a crostas. Termina pela formação de fístulas que conduzem a micro-abcessos profundos.

Biberstein, em sua classificação da difteria da pele, encara vários tipos, de acôrdo com o aspecto morfológico da lesão, e de acôrdo com a parte da pele atingida. Vejamos o quadro.


I - Formas epidérmicas -
1) impetiginoide
2) ectimatoide
3) eczematoide

II - Formas cutâneas ou dermohipodérmicas profundas -
1) ulcerosa
2) flegmonósa
3) gangrenosa

III - Formas especiais -
1) panarício
2) dif. cut. pseudomembranosa
3) diftéricos


O caso por mim observado enquadra-se perfeitamente na primeira chave e no primeiro tipo desta classe. No entanto, parece pertencer realmente à 2.ª classe das formas especiais, a isto que se chama difteria das feridas (Wunddiphterie). Nesta, de fato, as localizações preferenciais são os limites cutâneo-mucosos, as dobras cutâneas, as orelhas, os lábios, a conjuntiva.

O caso apresentado assemelha-se muito ao que Melchior estudou em 1937 sob o nome de difteria das feridas granulosas, muito diversa da que vemos nas feridas recentes, na incisão da traqueotomia nos diftéricos, por exemplo.

Só em 1919 a difteria das feridas granulosas saiu do quadro das curiosidades bacteriológicas. Surgiram, na Alemanha, verdadeiras epidemias do mal, sendo as primeiras observadas em Kiel e em Magdeburgo. Em Breslau, onde então clinicava Melchiór, tomou o surto epidêmico violência tal, que lembrava de longe as famosas epidemias da podridão dos hospitais, a gangrena nosocomial, que Vincent demonstrou ser devida à simbiose fusoespiroquética, hoje considerada, por certos autores, em vista dos estudos de Sanarelli, como formas diversas de um mesmo germe, o heliconema Vincenti.

Melchiór acentua, nesta forma, a benignidade do mal. Faltam por completo os acidentes tóxicos; o estado geral não se mostra atingido. Parece - diz o autor - que o tecido granuloso opõe uma barreira sólida à penetração das toxinas (se é que existem), tal como se dá no tétano.

Curioso é assinalar que a difteria das feridas, quanto à frequencia, segue pari passu a da difteria comum. O sôro, porém, tal como no meu caso, não produz nenhum efeito. As lesões são em extremo rebeldes, e a difteria naturalmente impede ou dificulta sobremaneira a cicatrização da úlcera. "Para fazer cessar esta fonte de infecção e tornar possível a cura, é de importância capital fazer desaparecerem as bactérias da lesão". Isto é sobremodo difícil, e certos autores, como Löhr, reputam mesmo inexequível. O soro não dá resultado. "Como o soro comum não é bactericida, e como, além disso, é de se supor que as bactérias presentes nas lesões fiquem independentes das influências humorais do paciente, não admira tal verificação".

Convém pôr em evidência o efeito do soro na difteria cutânea. Asseveram Meyer e Nassau que tal terapia só é útil nos casos em que se manifestam elevação térmica e sintomas de reação geral (palidez, abatimento). Rabelo Júnior apurou, em 95 casos da literatura nos quais havia referências ao tratamento, que em 61, a seroterapia específica determinou a cura completa. Falhou, porém, em 31 dos pacientes. Nos casos de difteria das feridas o efeito do soro tem sido nulo.

Em vista da falência do soro na difteria das feridas, recorreu-se aos tópicos: tintura de iodo, eucupina, rivanol, água oxigenada, etc., ou mesmo à electro-coagulação. Mas tudo isso tem falhado. O mesmo diz Melchior da helioterapia, e da luz ultraviolête. Em 17 anos, o autor só obteve resultado com a pulverização de 0 gr,. 10 a 0 gr., 20 de azul de metileno puro, sôbre a lesão. Assinala Melchior um fato digno de registro: o tratamento pelo azul deu sempre resultado favorável; no entanto in vitro, o poder do corante sôbre o bacilo diftérico não é muito pronunciado.

Biberstein preconiza a eucupina a 5 % diluida em igual volume de alcool; depois, aplicação de pomada de eucupina ou de vuzina a 1 ou 2%. Com isso, consegue-se a esterilização dos focos cutâneos em 48 horas. Na difteria das feridas tal, porém, não acontece, como assinala Melchior, e como se viu no caso por mim relatado, em que foram empregados sem êxito corantes de ação tão bactericida quanto os preconizados por Biberstein.

No meu caso, a lesão não era cutânea, e sim mucosa. Mas é evidente a semelhança com a difteria das feridas granulosas, observada em geral na pele. Fica patente que a ação do germe é mais local do que geral, que não se observam fenômenos decorrentes da toxina. Mas, as ações humorais se manifestaram: o paciente chegou a ficar quási curado com a segunda aplicação do soro, e com o uso da anatoxina. A cura, entretanto, não pôde ser conseguida. Trata-se, em casos desta ordem, de verdadeiras difterias cirúrgicas, pois só a eliminação completa, verdadeira erradicação, do foco, pôde conferir cura definitiva.

Em casos como os do meu paciente, e em casos de difteria cutânea, torna-se necessário apurar se o agente causal é na realidade o bacilo diftérico verdadeiro, o corynebacterium diphterias de Klebs e Loeffler, ou os pseudo-diftéricos. Como é sabido, há dois germes que apresentam grande semelhança com o bacilo diftérico, e que são hospedes frequentes da pele: o corynebacterium commune ou bacilo de Hofmann e o corynebacterium sutis commune ou bacilo de Nicolle. Os caracteres morfológicos e culturais dêste são extremamente semelhantes aos do bacilo diftérico. Nem as granulações metacromáticas de Babes-Ernst, postas em evidência por métodos de coloração específico (como os de Albert, de Laybaum, etc.) permitem a distinção entre os dois germes. Torna-se preciso recorrer a processos culturais com os açúcares para firmar o diagnóstico bacteriológico. Ainda assim, não é fácil a prova, pois a diferença é algo sutil: o diftérico fermenta a glicose e excepcionalmente a sacarose; o bacilo de Nicolle fermenta energicamente a sacarose, e inconstantemente a glicose. Recorrer-se-á com mais segurança à inoculação na cobaia. Ainda aqui, se a prova fôr negativa, o exame não merece valor absoluto, por isso que o diftérico verdadeiro pode, às vezes, apresentar-se destituído de virulência. Resta a prova da hemólise: o diftérico determina-a em 3 a 48 horas na temperatura de 37 graus; o de Nicole só produz hemólise ao fim de 5 dias.

Não se pense que os pseudo-diftéricos não possam possuir ação patogênica. Kuster relatou um caso de ulcerações múltiplas do couro cabeludo com formação de sequestros ósseos, que só cedeu ao cabo de cinco anos, e cujo agente causal foi um pseudodiftérico.

No caso por mim apresentado, tratava-se de bacilo diftérico, o que ficou demonstrado pela prova de fermentação dos açúcares e pelo resultado positivo da inoculação na cobaia.

BIBLIOGRAFIA

1- Eivine, P. et Schoenbaum, N. - Sur les localisations rares de la diphtérie -Archives de Médecine des Enfants 37: 337 (Juin) 1934.
2- Rocha. J. M. - Difteria do intestino in Difteria de J. M. da Rocha e colaboradores - Livr. Méd. Edit. - Rio, 1937.
3- Rabelo Junior, E, - "Difteria cutânea" in Difteria de laboradores - Livr. Méd. Edit. - Rio, 1937.
4- Nogué, R. - "Maladies de la bouche" in Traité de Stomatologie de Gaillard e Nogué - J. B. Bailliere - Paris, 1924.
5- Mikulicz, J. e Kümmel, W. Die Krankheiten des Mundes - 4ª. ed. - G. Fischer - lena, 1922.
6- Biberstein - cit. Rabelo Junior.
7- Melchior, E. - Diphtérie des plaies bourgeonnantes - Presse Médicale - p. 1668 (24 Nov.). 1937.
8- Meyer. Prof. L. F. e Nassau, E. - Tratamento da Difeteria. Therapie der Gegenwart n.° 10, 1927, p. 454 in Brasil Médico 41: 1293 3 Dez. 1927.
9- Küster - cit. Martinho da Rocha Junior - Sôbre um caso de difteria cutânea - Brasil Médico 41: 1284 3 Dez. 1927.
10- Lereboullet. Prof. P. e Boulanger - Pilet. G. - Manuel clinique et thérap. de la diphtérie - J. B. Bailliére - Paris, 1928.
11- Carriére, G. - La diphtérie - Masson - Paris, 1936.
12- Grancher. Prof, J. Boulloche, P. e Babonneix, L. - "Diphtérie" in Nouveau Traité de Médec. et Thérap. de Brounardel e Gilbert - J. B. Bailliére - Paris, 1905.

Addenda

À inflamação dos lábios, ou de um lábio, dá-se o nome de queilite (cheilite na ortografia mixta). Provém o termo do vocábulo grego cheilos, lábio, com acréscimo do sufixo ite, desigtivo de processo inflamatório.

Os vocabulários médicos antigos não consignam a palavra, mas registram outras formadas com o mesmo radical. Encontramos no Lexicon Medicum Graeco-Latinum de Bartolomeu Castelli (nova edição, Genebra 1746) a palavra cheilocace, designação grega da conhecida boqueira (perlèche dos franceses). O mesmo vocábulo vem assinalado na Onomatologia Medica Completa de Albrecht von Haller (Francf orte e Leipzig, 1756) e no Medizinisch - chirurgisch - terminologisches Wörterbuch de Knackenstedt (3.ª edição, Erfurt 1814). Kraus, no seu famoso Kritisch - etymologisches medizinisches Wörterbuch (2.ª edição, Getingue e Viena, 1826), registra a palavra cheilitis e uma série de outras formadas com a mesma raiz: cheilalgia, clheilinus, cheilocace, cheilocarcinoma, cheilophyma, cheilorrhagia, etc- Mas consigna igualmente os mesmos vocábulos com o radical chilo: chilitis, jchilophyma, chilorrhagia, etc. No suplemento de sua obra, publicado em 1832, lê-se: "cheiloplastia, bei Cambrelin = chiloplastice".

Nos dicionários mais modernos, quer franceses e italianos, quer alemães e ingleses, encontramos cheilite, cheilitis, e quási todos os derivados formados com o radical cheilo.


O Dicionário Médico de Dorland (14.a ed. 1927) registra quási exclusivamente o radical cheilos. No entanto, o Century Dictionary and Cyclopedia (cuja última tiragem é de 1906) registra: "cheilo - veja chilo. Nesta palavra, lê-se: "chilo [N L chilo e Gr. cheilos, lábio. Elemento em certas palavras de origem grega, o qual significa lábio. Escrito às vezes cheilo". Todos os derivados são, porém, registrados com chilo: chiloangioscope, chilodon, chiloma, chilomonas, chiloplasty, chilopoda. Isto prova o pouco caso com que foi feito o dicionário de Dorland.

No autorizado vocabulário de C. Robin (Nouveau Dict. Abregé de Médicine - Paris 1886) já se pode ler, à palavra chei:

"chei - Le diphthongue ei du grec se rendam par i, les mots commençant ainsi, qui ne sont pas ici, sont à Chi".

E registra chialgie, chilocace, chilodactylie, chiloplastie, etc. O mesmo se vê em Littré-Gilbert (Dictionnaire de Médecine, 21.ª edição, 1905).

"Cheilalgie. V. Chilalgie. La diphtongue ei du grec se rend régulièrement yen i".

Cândido de Figueiredo nos Vícios da Linguagem Médica, 2.a edição, diz que o certo é chiloplastia e não cheiloplastia. O mesmo vem registrado no Dicionário de Têrmos Médicos do Prof. Pedro Pinto, 2.ª edição.

Chilitis, em latim, ou quilite, em português, é o certo. Não há dúvida que o ditongo grego ei só pode dar i no latim, e, portanto, em todas as línguas vivas: chirurgia, não cheirurgia; clitóris e não cleitoris; terapia e não terapia; Dario e não Dareio; semiologia e não semiologia; "romancía e não queiromancéia; clidomastóideo e não cleido-mastóideo (como é comum).

Aí está por que motivo o certo é quilite (em latim Chlitis), e não quilite (em latim cheilitis), como se encontra em geral nos dicionários médicos.

Merece referência à parte a designação labialite, proposta por Marfan. E' um termo duplamente absurdo: 1.°) porque foi formado quando já existia a denominação adequada quilite; 2.°) porque e mal formado. A regra é juntar a desinência grega ite a uma raiz também grega. Quando há absoluta necessidade de se recorrer ao latim, o sufixo ite tem de ser juntado a um substantivo, no caso labium, e não a um adjetivo, labialis. Labute pareceu de certo, pouco eufônico, e o celebrado mestre quiz contornar a dificuldade criando, destarte, um termo inaceitável.

RÉSUMÉ

P. MANGABEIRA-ALBERNAZ - Sur les localisations rares de la diphtérie: diphtérie de la lèvre inférieure avec plus de cinq ans de durée.

L'A. rapporte un cas de diphtérie de la lèvre inférieure, datant de plus de cinq ans.

Le malade, un eléctricien de 24 ans, a reçu un traumatisme dana la lèvre inférieure. Celui-ci donne naissance à un ulcère crouteux, irrégulier. Le médecin rui fait faire un traitement spécifique (914, Bi). Au bout d'un an la lésion continue dana le même état. C'est alora que l'examen de la secrétion révèle la présence du bacille diphtérique. Le malade n'a eu ni angine, ni autre manifestation diphtérique. On rui prescrit 45.000 U. I. de sérum. La lésion ne cicatrize paz, et le malade est envoyé á l'A.

Plusieurs traitements ont été essayés: Violet de gentiane local, trypaflavine locale, les rayons U. V. l'étincellage diathermique, l'éléctro-coagulation légère, et après, plus énergique, etc. Au bvut de près de trois ans, on fait de nouveaux examens, et on trouve encore dez bacilles diphtériques vrais (épreuve dez sucres, inoculation). L'A. décide alors d'employer dez grandes doses de sérum. Le malade reçoit 208.000 U. I., (260 cc.) et de petites doses de néonalvarsan (0,15 à 0,30), diluées dans du calphenil (chlorure de chaux). On emploie aussi la solution benzo-salicylée de Vincent.

Après le sérum, un nouvel examen démontre l'absence dez bacilles diphtériques; on trouve seulement quelques rares staphyloccoques branca.

Mais environ deux mois après, les vésicules et les croutes réapparaissent. On ensaie la radiothérapie, mais les resultata sont nuls. C'est alora qu'on songe à la décortication de la lèvre, au moyen du bistouri électrique (1936). La guérizon est obtenue et se maintient junqu'à présent (Novembre 1940).

L'A. fait une étude dez localisations rares de la diphtérie et classe ce cas parmi ces que les auteurs allemands ont décrit sous le nom de diphtérie dez plaies et surtout dez plaies bourgeonnantes.

Dans une large bibliographie consultée, on n'a paz pu trouver un seul cas dans ce genre et d'une telle durée.




(*) Professor de Clínica Oto-rino-laringológica da Escola Paulista de Medicina (S. Paulo), oto-rino-laringologista do Hospital da Santa Casa e da Clínica Stevenson (Campinas).

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