Ano: 1940 Vol. 8 Ed. 6 - Novembro - Dezembro - (7º)
Seção: Trabalhos Originais
Páginas: 425 a 428
ABCESSO EXTRA DURAL DA FOSSA POSTERIOR CAUSANDO NEVRALGIA DO TRIGÊMEO
Autor(es): DR. ILDEU DUARTE (*)
A descripção do caso em apreço pareceu-nos digna de registro e interessante porque, como é noção corrente em otologia, os abcessos extra-durais, a maior parte das vezes, têm evolução silenciosa, constituem achados operatorios de surpresa, não ocupam lugar de destaque nos tratados da especialidade e são, bem vezes, a primeira etapa de outras complicações endocranianas.
De outro lado, portadores de otites agudas e cronicas que manifestam, antes ou depois do tratamento, crises de nevralgia no dominio do trigêmeo, nos colocam de sobreaviso e nos induzem a pensar em processos inflamatorios da piramide do rochedo, por causa da antiga sindrome de Gradenigo e, nos ultimos tempos, das petrosites, em cujo quadro clinico as crises de nevralgia do trigêmeo figuram em primeira plana e constituem um sinal de aviso.
Senhora S., 26 anos, consulta-nos em 31-10-40, relatando os seguintes fatos:
Nos primeiros dias de Setembro, adoeceu de gripe e otite aguda à direita que se manifestou por dôres fortes no ouvido e na mastoide. Como se, achava no ultimo mez de gravidez, não cuidou muito do ouvido. No meado de Setembro, dá-se o parto em condições normais. Para o fim do mez, por causa das dôres no ouvido e na cabeça, é feita uma paracentese que não estabelece drenagem. Continuando a padecer das mesmas dôres, seu medico assistente institui um tratamento por meio de proteinas em injeções, vacinação perifocal (em torna do ouvido doente), sulfamida e, aplicação diaria de raios infra-vermelhos que, como a vacinação regional, produzem exacerbação das dôres. Ha cerca de quinze dias, segunda paracentese que fornece liquido purulento no qual se encontra o estafilococo ao exame microscópico. Não logrando melhoras, é executada mais uma paracentese que, entretanto, não modifica a situação da paciente. As dôres são intensas, manifestam-se no fundo da orbita, região temporal, occipital, nos dentes superiores e inferiores, assim como tambem incomoda uma sensação de queimadura ou ardência na pele da face do mesmo lado direito. Durante a noite as crises dolorosas são terríveis e obrigam a paciente a recorrer a uma serie de medicamentos analgésicos que têm efeito passageiro.
Informa-nos, demais, que após a segunda abertura do timpano, foi assaltada por uma crise de vertigens com nauseas e vomitos que duraram dois dias e foram cedendo gradativamente. O marido, que é medico, afirma que não havia nistagmo por ocasião das vertigens. Durante toda a molestia, a temperatura se elevava quando recebia a dose de vacina e, em seguida, permanecia abaixo de 37,5.
O exame da paciente, em 31 de Outubro, nos revela um estado geral satisfatório, apezar de uma fisionomia abatida pelas crises dolorosas; temperatura normal, dôr à pressão sobre a região do joelho do seio lateral, ligeiro espessamento do periósteo mastoidêo à palpação, conducto normal, secreção purulenta no seio pretimpanico, abertura do timpano em fôrma de lua crescente, nos quadrantes posteriores, e, secreção com reflexo pulsatil. Pela acumetria: voz ciciada a 30 cms., Rinne negativo, discreta redução dos limites inferior e superior. Ausencia de nistagmo espontaneo. Equilibrio normal. Ouvido esquerdo, fossas nasais, seios da face, faringe, normais. Hematias 3.980.000, Leucocitos 7.100, Neutr. bast. 11 Neutr. segm. 52 Eos. 7 Bas. O Mon. 4 Linfoc. 26 por cento. Hemoglobina 72 %. Assinado: Dr.. Benjamin Soares, do Lab. Carlos Chagas. As radiografias revelaram-nos os seguintes dados: do lado são, uma mastoide diploica, pobre em celular (Fig. 1); á direita, as celular estão nubladas e os reptos inter-celulares não têm nitidez (Fig. 2); além disso, para traz da zona da veia emissária da mastoide, .ha duas ilhotas escuras que fazem suspeitar de uma destruição ossea. As figuras 3 e 4 correspondem aos rochedos apanhados em posição de Stenvers. Não se descobre neles anormalidade alguma, exceto pouca nitidez do tecido ósseo na base da piramide direita (Fig. 3) Assig. Dr. José Lins. Radiologista.
Durante os quatro primeiros dias de observação da paciente e enquanto aguardávamos o resultado dos exames acessórios, em que faltou a inspeção do fundo do olho, a doente tem uma fase de melhora e as dôres se atenuam, mas, no quinto dia, sobrevém uma crise forte e com ela uma descarga de pús pelo conduto, que nos indica a existencia provavel de um fóco profundo.
Na manhã seguinte, abre-se a mastoide, sob anestesia local. A cortical é compacta e espessa, a subcortical, diplóica, pobre em celular que estão cheias de granulações e assim tambem o antro que é muito pequeno e profundo. Expõe-se, deliberadamente, a dura do andar medio, que apresenta aspecto normal. Aumentando a trepanação para traz, encontra-se um filete de pús que nos leva a uma fistula. Destapando-se esta, jorra pús, sob pressão, amarelo, espesso, que inunda o campo operatorio. Mais de 10 cc. são aspirados e, do fundo de uma ampla cavidade escura, continua a sair pús animado de pulsações, misturado com liquido cefalo-raquidiano, que deve provir de uma pequena fistula da dura mater. Tratava-se, então, de um vasto abcesso extradural que comprimia e achatava o seio lateral como um tubo de borracha esmagado por um peso.
O abcesso descolara amplamente a dura mater, recalcando para dentro da fossa posterior, o seio lateral e o cerebelo, de tal modo que se podia ver a face posterior do rochedo livre e exposto até bem proximo do conduto auditivo interno. Ressecando a parede ossea para traz, puzemos a mostra todo o seio transverso, que se achava coberto de granulações, assim como a dura circumvizinha muito espessada e com o aspecto típico da paquimeningite aguda.
A intervenção sobre a mastoide e a drenagem do abcesso extra-dural
proporcionam à paciente um alivio completo e o desaparecimento total das dôres.
Comentarios: O achado operatorio nos demonstrou a existencia de um vasto abcesso extra-dural da fossa posterior que, talvez devido ao seu volume e compressão, ocasionou irritação acentuada no dominio do trigêmeo, fazendo-nos pensar na hipotese de uma petrosites.
Esta circunstancia nos dispertou a atenção e nos levou a consultar a literatura otologica sobre a materia.
No que se refere aos abcessos extra-durais de um modo geral, e, particularmente, sobre aqueles que se desenvolvem na fossa cerebral posterior, os autores manuseados são acordes em manifestar a sua pobreza de sintomatologia, a não ser que, pelo seu volume, acarretem fenomenos de compressão.
H. Luc, nas suas magníficas lições sobre supurações do ouvido medio, à pagina 401, descrevendo o ábcesso extradural, diz: "L'un des traits les plus remarquables de la physionomie clinique de l'abcès extra-dural est l'insidiosité habituelle de son développement". Mais abaixo, continúa: "En somme, la cephalalgie est le symptome le plus constant de l'affection: elle est généralement unilatérale et peuts'acompagner de vertiges, nausées et de vomissements".
G. Laurens, no seu livro sobre cirurgia da especialidade, à pagina 309 informa: "L'abcès extra-dural est indiagnosticable très souvent, car dans bien des cas il ne s'acompagne d'aucun symptome".
Alexander, em Die Ohrenkrankheit im Kindersalter, à pagina 228 declara: "Die Pachymeningitis externa und der Extraduralabscess der mittleren Schaedelgrube sind in der Mehrzhal der Faelle mit lokalisierten Kopfsschmerzen verbunden. Der Kranke klagt ueber stechende, auf bestimmte Stellen des Kopfes beschraenkte Schmerzen".
Nossa doente padecia de dores nevrálgicas insuportaveis, com exacerbação noturna, localizada no fundo da orbita, na região temporal e ocipital com irradiação para os dentes superiores e inferiores.
Kopetzky e Almour, ao estudarem as petrosites, tem 1930, manifestam a importancia que tem a nevralgia do trigêmeo, particularmente a do ramo oftalmico, para o diagnostico daquela grave afecção. Desde então, os que se ocupam do assunto vêm tendo sua atenção voltada para o valor d'aquele sinal que Mündnich denomina de "Warnungszeichen".
Kopetzky faz, todos os anos, nos Archives of Otolaryngology, um resumo da literatura mundial a respeito das petrosites. Percorremo-lo de 1936 a 1939 e, em todos os comentarios, o proprio autor do quadro clinico daquela entidade resalta o valor do sinal "nevralgia do trigêmeo".
Não se tendo encontrado uma petrosites na nossa paciente, a despeito das intensas dores nevrálgicas, como se poderá explicar a presença deste sinal em um caso de abcesso da fossa posterior que, uma vez drenado, afastou completamente as crises dolorosas?
A nosso ver, a explicação é de ordem anatomica.
A dura mater que reveste os recôncavos dos andares anterior e posterior da cavidade craneana, recebe inervado proveniente de ramos da primeira divisão do trigêmeo. O andar anterior é inervado por ramos do etmoidal, ramificação do oftálmico. A dura do andar posterior, tenda do cerebelo, folhetos da dura mater que envolvem o seio lateral são inervados tambem, por um ramo do oftálmico que dele se destaca antes de sua penetração na orbita. Aquele ramo inclina-se para traz, segundo Testut, cruza ou perfura o patético, mete-se na tenda do cerebelo, onde se divide em ramos internos que se destinam ao seio reto e ramos externos que inervam o seio lateral.
Daí, conceber-se claramente que um abcesso da fossa posterior, comprimindo a dura mater desta região e o seio lateral, produza dores no territorio do trigêmeo.
BIBLIOGRAFIA
ALEXANDER G. - Die Ohrenkrankheiten im Kindesalter. 1927.
ALONSO e REGULES - Las petrosites - Revista Oto-laryng, de São Paulo Julho e Agosto de 1936.
KOPETZKY and ALMOUR - The suppuration of the Petrous Pyramid, etc. Annals of Otolog. etc 1930 e 1931.
KOPETZKY - Archives of Otolaryngology 1936, 37, 38 e 39.
LAURENS G. - Chirurgie de L'oreille, etc 1924.
LUC, H - Leçons 1910.
MUNDNICH, KARL - Arch. Ohr-usw-Heilk. 144 B. 3Heft.
PANSE, RUDOLF - Pathologische Anat. des Ohres. 1912.
TESTUT, L - Anat. Humaine. Vol. 2 1921.
(*) Catedratico de Clinica Oto-rino-laringologica na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte.