Ano: 1997 Vol. 63 Ed. 2 - Março - Abril - (9º)
Seção: Relato de Casos
Páginas: 159 a 163
TROMBOSE DE VEIA JUGULAR INTERNA: RELATO DE 2 CASOS.
Internal jugular Vein Thrombosis: Report of 2 Cases.
Autor(es):
Fabiana Araújo Sperandio*
Sabrina Maria de Castro*
Luís Ubirajara Senne**
Ivan Dieb Miziara***
Palavras-chave: Trombose, veias jugualares
Keywords: Jugular veins, thrombosis
Resumo:
A trombose da veia jugular interna é desordem vascular incomum que facilmente passa despercebida, sendo subdiagnosticada. É uma patologia que resulta de diversas condições clínicas capazes de alterar o fluxo sangüíneo, a parede do vaso, ou a coagulação sangüínea. Apresentamos dois casos de trombose de veia jugular interna que se manifestaram como massa cervical de aparecimento súbito, o que ilustra a importância dessa patologia dentro da Otorrinolaringologia.
Abstract:
Internal jugular vein trombosis is an unnusual vascular disorder that is easily overlooked or misdiagnosed. It results from diverse clinical conditions which alter vascular blood flow, induce endothelial damage, or increase systemic coagulability. We report two cases of internal jugular vein thrombosis presenting as a neck mass of sudden onset, that show us the importance of this diagnosis for Otolaryngology.
INTRODUÇÃO
A trombose de veia jugular interna (TVJI) é patologia incomum que resulta de diferentes condições clínicas, as quais alteram o fluxo sangüíneo ou promovem modificações na parede do vaso, bem como na coagulação do sangue1.
A doença foi primeiramente descrita por Long, em 1912. Cinco anos depois, Goodman reportou um caso, conseqüente a quadro de amigdalite, sugerindo que a trombose resultara de contaminação bacteriana por drenagem linfática do foco em orofaringe.
Na era pré-antibiótica, a doença era comumente associada a infecções de cabeça e pescoço. Nos dias atuais, entretanto, a TVJI tem sido mais freqüentemente relacionada à cateterização venosa central ou ao abuso de drogas intravenosas, Ela pode ser vista também como conseqüência de neoplasias malignas2.
De qualquer modo, a doença está sempre associada à triade de Virchow, em que há dano à camada íntima vascular, bem como alteração do fluxo sangüíneo e estado de hípercoagulabilidade do sangue1.
Muitas vezes, o diagnóstico da TVJI é difícil e causa embaraços ao especialista3. Dependendo de sua forma clínica de apresentação, o doente é inicialmente encaminhado ao otorrinolaringologista ou ao cirurgião de cabeça e pescoço, para investigação de "massa cervical a esclarecer". Visto que a história e o exame físico são inespecíficos, alto grau de suspeição clínica é requerido para se fazer o diagnóstico.
Os dois casos que apresentamos a seguir mostravam como sinais físicos proeminentes a presença de massa tumoral em região cervical, cuja investigação demandou algumas etapas diagnósticas que serão discutidas e analisadas neste trabalho.
RELATO DE CASO
Paciente 1
Paciente de 72 anos, sexo masculino, deu entrada no Pronto Socorro ORL do Hospital das Clínicas da FMUSP, apresentando história de abaulamento cervical lateral à direita, doloroso, súbito e sem fator desencadeante, há 4 dias. Sua história médica pregressa incluía perda ponderal de aproximadamente 20 kg em 3 meses. Como antecedentes pessoais, o paciente era tabagista e não etilista. Fazia uso de Tigason(@) para psoríase pustulosa.
Ao exame físico, o paciente mostrava abaulamento de consistência amolecida ocupando o triângulo posterior do pescoço à direita, estendendo-se para a fossa supra-clavicular, bem como cordão venoso palpável. A massa tumoral, de limites imprecisos, não estava aderida a planos, as quais profundos e nem apresentava sinais flogísticos, como vermelhidão e calor local (Figura 1). O exame otorrinolaringológico não revelou nada digno de nota, tanto à orofaringoscopia quanto à laringoscopia indireta. A rinoscopia anterior e a otoscopia não evidenciaram lesões capazes de promover o quadro referido. O exame geral mostrava sinais de derrame pleural (DP) à direita.
Quanto aos exames complementares, o raiocervical sugeria aumento de partes moles em região lateral direita do pescoço, não comprometendo coluna aérea. O ultra-som doppler evidenciou sinais consistentes de TVJI extensa (Figura 2). Á tomografia computadorizada (CT) com contraste do pescoço, foram achados sinais concordantes com a hipótese diagnóstica de TVJI, não se evidenciando abscessos ou outras massas (Figura 3).
Com base nesse diagnóstico, o paciente foi internado junto à Divisão ele Clínica Médica, para investigação etiológica.
Figura l. Paciente apresentando massa cervical à direita
Figura 2. Ultrassom-dopler evidenciando a não circulação sangüínea à altura da veia jugular interna.
Figura 3. CT mostrando abaulamento da região cervical à direita (3) e trombose total da veia jugular interna (1).
A conduta frente à TVJI foi pedante. Durante a internação, foi realizado CT de torax e abdome que mostrou DP bilateral, ascite e sinais carcinomatose peritoneal. Foi realizada punção abdominal ele líquido ascítico e feita biópsia de pleura, cujas analises levantaram a hipótese de carcinoma epidermóide metastático. Com base nesses achados, procedeu-se também a endoscopia digestiva alta, colonoscopia e ultra-som abdominal à procura do foco primário da lesão neoplásica, o qual não foi encontrado.
O paciente recebeu alta sob observação; e, após 12 dias, veio a óbito em sua residência. Em vista disto, não foi realizada necropsia.
Paciente 2
Paciente elo sexo feminino, 48 anos, deu entrada no mesmo Pronto Socorro ORL, apresentando há 3 semanas abaulamento de região cervical direita, doloroso, associado a febre e queda elo estado geral. Da história pregressa, constava neurocirurgia para ressecção de meningioma há 1 mês, com cateterização de veia jugular interna direita durante a internação. Negava tabagismo, etilismo, uso de drogas e contraceptivos orais. Estava em uso ele Hidantal® evielo à neurocirurgia.
Ao exame físico, a paciente apresentava abaulamento em região cérvico-lateral à direita, que se estendia desde região pré-auricular até a fossa supra-clavicular, doloroso à palpação e mostrando calor e hiperemia local. À orofaringoscopia, a amígdala direita estava rechaçada para a linha mediana, devido a provável abaulamento extrínseco.
Figura 4. CT do paciente número 2 evidenciando trombose da veia jugular interna.
A paciente foi internada com hipótese diagnostica de abscesso parafaríngeo. Realizado CT cervical com e sem contraste, este mostrou TVJI extensa, cota sinais de processo inflamatório perivascular (Figura 4). O tratamento foi feito com antibiótico sistêmico (clindamicina), obtendose boa evolução do quadro após 4 dias, quando então recebeu alta para seguimento ambulatorial.
DISCUSSÃO
A TVJI é evento de grande magnitude, que pode ter complicações fatais e eleve ser lembrado no diagnóstico diferencial das massas cervicais. As complicações incluem tromboembolisrno pulmonar (TEM, edema cerebral e embolia séptica2.
Atualmente, a grande maioria elos casos decorre de cateterização venosa central e abuso ele drogas intravenosas4. Em ambas as situações, ocorre dano endotelial por trauma da parcele vascular, assim como existe a possibilidade de introdução direta de microorganismos patogênicos.
A presença de neoplasias malignas pode levar à TVJI por diversas formas. Tecido tumoral extrínseco é capaz de comprimir o vaso e diminuir o fluxo sangüíneo, favorecendo a formação do trombo. A manipulação adjacente ao vaso, na dissecção cervical de cirurgias para tumores ele cabeça e pescoço, também pode ser fator predisponente.
Mais raramente, estados de hipercoagulabilidade podem estar associados a doenças de caráter maligno (síndrome de Trousseau). Também é descrita trombose espontânea nesses casos, associada à elevação dos níveis de fator VIII e produção aumentada de tromboplastina5. Os tumores mais comumente associados à TVJI envolvem pâncreas, pulmão, boca, ovários e muitas vezes tumores malignos ocultos.
Em nosso primeiro caso, a origem da TVJI, sem dúvida, foi quadro de tumor maligno oculto. Infelizmente, devido ao avançado estado da doença, não foi possível chegar a diagnóstico conclusivo quanto à localização do mesmo.
Por outro lado, as tromboflebites podem ocorrer em decorrência de infecções de cabeça e pescoço, tais como tonsilite, abscessos periamigdalianos ou cervicais profundos, bem como manipulações dentárias. Nesses casos, á trombose resulta de contaminação bacteriana da veia jugular interna, via drenagem linfática de foco infeccioso primário.
O diagnóstico diferencial da TVJI inclui celulites e abscessos profundos do pescoço, linfadenites cervicais e, é óbvio, presença de trombo na veia jugular externa6.
A história e o exame físico em TVJI são inespecíficos, dificultando e retardando o diagnóstico. Edema pode envolver face, região periorbitária e pescoço. Muito raramente, há cordão venoso palpável ou sinais de tromboflebite. Antecedentes de infecções de orofaringe, manipulação dentária, cateterismo central, abuso de drogas e neoplasias podem estar presentes.
Em nosso segundo caso, a manipulação para cateterização venosa provocou o quadro trombótico. Esta, para a maioria dos autores, parece ser a causa primordial de formação deste tipo de trombo nos dias de hoje. Em estudo prospectivo realizado por Chastre et al.7, com pacientes que foram submetidos à inserção de cateter de Swan-Ganz na veia jugular interna, 66% apresentavam evidências radiológicas ou achados de necrópsia sugestivos de TVJI.
O melhor exame para comprovar o diagnóstico é a venografia2, porém é método invasivo que envolve riscos associados ao contraste e à radiação, além de embolia por trombos potencialmente infectados. O risco de perfuração vascular também é alto quando associado à flebite.
Já o ultra-som (US), a nosso ver, é método de diagnóstico relativamente seguro e acessível que mostra achados confiáveis e reprodutíveis, podendo ser usado para seguimento do paciente. Em alguns casos, o seu uso é limitado pela posição da clavícula e/ou mandíbula. O duplex-scan ajuda a determinar o fluxo e a patência do vaso, sinais que estão ausentes na trombose. O sistema doppler é mais sensível na fase aguda da patologia, já que a pouca ecogenicidade do trombo não pode ser detectada ao ultra-som simples.
A CT com contraste tem sido apontada como método diagnóstico pouco invasivo para estudo da TVJI, além de ser muito sensível, podendo eliminar a necessidade de venografia. O exame fornece boa definição das partes moles adjacentes, quando comparado ao ultra-som e a venografia. Outra vantagem inclui boa visualização do mediastino e de tecidos ósseos, podendo sugerir em alguns casos a causa da trombose. Em nossos dois casos, ela foi utilizada com alta definição diagnóstica, confirma os achados ultra-sonográficos do primeiro paciente.
A ressonância magnética nuclear (RMN) e a angioressonância, por sua vez, são métodos excelentes para visualização do trombo e dos tecidos adjacentes. Também a extensão, o tempo de evolução e a causa trombose podem ser determinados por esse método. Em nosso meio, o preço e a facilidade de uso de métodos simples acabam restringindo o seu uso.
Por fim, diferente da remoção cirúrgica proposta por Quinn et al.3 para fins diagnósticos e terapêuticos, nossa opinião é que a associação de US e CT fornece dados precisos e confiáveis. Nos casos descritos, optamos por conduta expectante no primeiro e utilização antibióticos no segundo, já que havia sinais de flebite associada. Obtivemos bons resultados em curto período de internação.
Por outro lado, concordamos com Cohen et al.1 em que o tratamento da trombose venosa visa prevenir tromboembolização e a formação de novos trombos. A recanalização da veia trombosada é, em última análise evento esperado que promove estes dois objetivos. O uso de anticoagulantes, outrossim, é controverso. No entanto achamos que eles devam ser utilizados, sempre que quadro não for responsivo ao uso adequado antibioticoterapia1.
Acreditamos ainda que métodos drásticos de ligadura ou excisão da veia jugular interna devem ser evitados primeiro momento, pela sua natureza agressiva. No entanto, caso haja abscessos cervicais concomitantes, estes devem ser prontamente drenados, a fim de evitar complicações mais sérias e graves.
CONCLUSÕES
1. O presente trabalho mostra como é importante lema: a presença da TVJI no diagnóstico diferencial das mas cervicais;
2. O diagnóstico através do uso do exame ultra-sonográfico é rápido e fácil, simples e confiável, ser confirmado pelo CT;
3. O tratamento da TVJI é, preferencialmente, expectante e consiste de antibioticoterapia se houver sinais de flebite associada; e uso de medicação anticoagulante, quando aquela não oferecer bons resultados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. COHEN, J. P.; PERSKY, M. S.; REEDE, D. L. - Internal Jugular Vein Thrombosis. Laryngoscope, 95, p.1478-82, 1985.
2. UFFEY, D. C.; EICHEL, B. S.; BILLINGS, K. R.; SERCAZ, J. A. - Imaging Case Study Of The Month - Internal Jugular Vein Thrombosis. Ann. Otol. Rhinol. Laryngol, 104, p.899-904, 1995.
3. QUINN, J. S.; BLEACH, N. R.; ONG, P. S.; PATH, M. R. C.; MACKAY, I. S. - Thrombosed jugular vein presenting as a hard neck mass. The Journal of Laryngology and Otology, 110, p.179-81, 1996.
4. TAMI, T. A.; STROM, C. G.; FRIEDMAN, J. C.; HYDER, J. W. - Spontaneous Thrombosis Of The Internal jugular Vein. Ann. Otol. Rhinol. Laryngol, 96, p.222-4, 1987.
5. AMUNDSEN, M. A.; SPITTELL, J. A.; THOMPSON, J. H.; OWEN, C. A. - Hypercoagulability Associated with Malignant Disease and with the Postoperative State. Annals Of Internal Medicine, 58, (4), p.608-16, 1963.
6. PUCCI, R. O.; ECONOMU, S. G.; SOLJTHWICK, H. W. - Neck Mass Caused by Thrombus in the External jugular Vein. The American Journal Of Surgery, 131, p.382-5, 1976.
7. CHASTRE, J.; CORNUD, F.; BOUCHAMA, A.; VIAU, F.; BENACERRAF, R.; GILBERT, C. - Thrombosis as a complication of pulmonary artery catheterization via the internal jugular vein: prospective evaluation by phlebography. N. Engl. J. Med, 306, p.278-81, 1982.
* Médicas Residentes da Divisão de Clínica ORL do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Pauto (USP) - São Paulo/ SP.
** Médico Assistente da Divisão de Clínica ORL do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP - São Paulo/ SP.
*** Assistente Doutor da Divisão de Clínica ORL do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP- São Paulo/ SP.
(Serviço do Professor Aroldo Miniti)
Endereço para correspondência: Av. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - 6° andar - Telefone: (011) 3067-6288 - São Paulo/ SP.
Artigo recebido em 17 de maio de 1996. Artigo aceito em 3 de julho de 1996.