Versão Inglês

Ano:  1997  Vol. 63   Ed. 2  - Março - Abril - ()

Seção: Relato de Casos

Páginas: 152 a 156

 

AMILOIDOSE LARÍNGEA PRIMÁRIA: RELATO DE CASO

Laryngeal Primary Amyloidosis: a Case Report

Autor(es): Jaime Luís F. Arrarte*
Wilton M. Martins*
Leonardo Teló**
Marinez B. Barra***
Geraldo D. Sant'Anna****

Palavras-chave: amiloidose, Laringe

Keywords: amyloidosis, Latynx

Resumo:
A amiloidose é doença caracterizada pela deposição extracelular de material protéico acelular em um ou mais sítios no organismo, que pode apresentar características ultra-estruturais exclusivas, as quais variam conforme a apresentação clínica da doença. A laringe é o sítio mais acometido no trato aerodigestivo superior. Os autores relatam um caso de amiloidose laríngea primária em paciente de 23 anos. É feita revisão de literatura, sendo discutidos aspectos relacionados com a histopatologia, quadro clínico, diagnóstico e tratamento. Os autores salientam a necessidade de elevado grau de suspeita clínica para o diagnóstico, pois a doença apresenta evolução lenta e bom prognóstico.

Abstract:
Amyloidosis is a disease characterized by extracelular deposition of a homogeneous and eosiniphilic substance in one or more parts of the body, that has exclusive ultra-structural characteristics and can change according to the clinical features of the disease. The larynx is the more affected site in the upper aerodigestive tract. The authors report a case of primary laryngeal amyloidosis in a 23 year-old female patient. Topics as histopathologic and clinical features, diagnosis and therapeutical options are discussed based on a literature review. The authors emphasize the high grade of suspicion necessary for the diaganosis as well as the slow progression and good prognosis of the disease.

INTRODUÇÃO

A amiloidose é doença caracterizada pela deposição extracelular de material protéico acelular (amilóide) em uma ou mais partes do organismo. O termo amilóide (semelhante a goma) foi primeiramente utilizado por Virchow, em 1851, baseando-se no aspecto amorfo e na sua cor levemente avermelhada após coloração com iodo e ácido sulfúrico1.

Apesar de raramente afetar o trato aerodigestivo superior, a laringe é o sítio mais comumente acometido, estismando-se que entre 1877 e 1990 tenham sido relatados cerca de 300 casos na literatura mundial2. Estudos posa-mortem indicam que a incidência de amiloidose primária no trato respiratório é de aproximadamente 20% de todos os casos de amiloidose primária. Estima-se que lesões focais de amiloidose na laringe correspondam a menos de 1% das lesões benignas deste órgão3.

Esta comunicação tem como objetivo apresentar um caso de amiloidose laríngea primária (ALP), assim como, à luz da revisão bibliográfica, discutir tópicos mo achados histopatológicos, apresentação clínica, diagnóstico e o manejo terapêutico.

CASO CLÍNICO

Paciente de 23 anos, sexo feminino, branca, procedente de Novo Hamburgo (RS), veio à consulta no Serviço de Otorrinolaringologia da FFFCMPA/ISCMPA com queixa de disfonia desde o início da adolescência, havendo piora progressiva há quatro anos e aparecimento recente de estridor inspiratório noturno. Sem queixas de dispnéia, disfagia, tosse e hemoptise. A laringoscopia com fibra óptica flexível evidenciou lesão protuberante, de aspecto gelatinoso, pálida, recoberta por mucosa em região supraglótica esquerda, impedindo a visualização da prega vocal ipsilateral. A hemilaringe direita não demonstrava anormalidades.

Realizou-se estudo tomográfico computadorizado que evidenciou lesão expansiva à esquerda, com extensão caudal na prega vocal e cranial no plano do osso hióide (Figura 1).

A paciente foi submetida à laringoscopia direta e microlaringoscopia direta com biópsia para diagnóstico. A laringoscopia direta demonstrou lesão supraglótica, recobrindo toda a prega vestibular esquerda e ventrículo até a face superior de prega vocal esquerda; e pequena lesão supraglótica direita, localizada posteriormente em prega vestibular (Figura 2). Realizou-se, endoscopicamente, ressecção parcial das lesões as quais se mostraram ressecadas, de um tecido pálido, mole, avascular e de aspecto edematoso.

A análise histopatológica das lesões demonstrou a presença de um material eosinofílico acelular na lâmina própria, deixando intacto o epitélio escamoso de revestimento. A coloração vermelho Congo mostrou-se positiva, caracterizando o depósito amilóide (Figura 3). A paciente foi, então, investigada com vistas ao acometimento sistêmico da doença. Realizou-se ecografia abdominal total, radiografia convencional do tórax, hemograma, contagem de plaquetas, glicemia de jejum, fator reumatóide, sorologia para lues (VDRL), proteinograma sérico, provas de função tireóidea (triiodotironina, tireoxina, hormônio tíreo-estimulante), hepática (bilirrubinas direta e total, fosfatase alcalina, transaminases glutâmica oxaloacética e glutâmica pirúvica) e renal (uréia, creatinina). Todos os exames mostraram-se dentro dos padrões de normalidade. Diante do acometimento somente da laringe, chegou-se ao diagnóstico de ALP.



Figura 1. Tomografia computadorizada, em corte axial, no plano do osso hióide, demonstrando lesão expansiva à esquerda (seta).



Figura 2. Laringoscopia direta demonstrando lesões em hemilaringe esquerda (setas) e posteriomente à direita. EP = Epiglote; ARE = Aritenóide esquerda; ARI = Aritenóide direita.



Figura 3. A&B: Corte histológico demonstrando depósito de amilóide em laringe (setas); H&E, 25x.



A conduta seguida após o diagnóstico e cirurgia endoscópica da laringe tem sido expectante, já que parte das lesões foi ressecada e a paciente está apresentando boa evolução. No período pós-operatório imediato, já apresentou desaparecimento dos estridores noturnos e melhora significativa da disfonia, o que vem se mantendo após período atual de seguimento (follow-up) de 9 meses.

DISCUSSÃO

classificação da amiloidose vem sofrendo modificações à medida que se conhece mais a sua natureza bioquímica. Atualmente, do ponto de vista prático, parece-nos que a mais apropriada é a classificação clínica 1. Esta classificação divide a amiloidose nas seguintes classes: (1) amiloidose primária (tipo AL), com nenhuma evidência de doença pré ou coexistente; (2) amiloidose associado com mieloma múltiplo (também do tipo AL); (3) amiloidose secundária ou reativa (tipo AA); associada com doenças infecciosas crônicas (osteomielite, tuberculose, hanseníase) ou doenças inflamatórias crônicas (artrite reumatóide); (4)amiloidose heredo-familiar, uma variedade de síndromes neuropáticas, renais, cardiovasculares e outras síndromes além da amiloidose associada às febre do Mediterrâneo (tipo AA); (5) amiloidose local (depósitos localizados semelhantes a tumores geralmente em órgãos endócrinos); (6) amiloidose associada à idade, e (7) amiloidose associada à hemodiálise a longo prazo1 (Quadro 1).

A maior parte dos depósitos amilóides consiste em fibrilas, que, após purificação, notou-se serem constituídas, por proteínas, cuja composição química é distinta nas diferentes formas clínicas da doença, tornando a sua identificação mais específica para o diagnóstico. Identificou-se uma homologia dos aminoácidos na região N-terminal da cadeia leve destas, proteínas, entre a amiloidose primária e o mieloma múltiplo. Essas cadeias leves amilóides (AL) podem ser ALk ou ALl conforme a seqüência destes aminoácidos. Isolou-se também outra proteína nos pacientes com amiloidose secundária e associada à febre familiar do Mediterrâneo, que foi chamada de proteína amilóide (AA). Também na polineuropatia amilóide familiar foi isolada uma proteína que se identificou como sendo a transtiretina (pré-albumina). Ainda outras numeros, proteínas amilóides foram isoladas e caracterizadas1 (vide Quadro 1).

A laringe é o sítio mais comumente afetado no trato aerodigestivo superior. A amiloidose laringea geralmente é localizada, idiopática, primária e classificada imuno-histoquimicamente coma AL k ou AL 1, enquanto que a amiloidose que mais acomete o organismo é a sistêmica associada ao mieloma múltiplo. Raramente a amiloidose laríngea é a primeira manifestação de doença sistêmica2, 4, 5, 6, 7.

A origem da amiloidose localizada em trato respiratório permanece obscura. Berg et al. sugerem, após determinar a sua seqüência protéica em caso de amiloidose laríngea, uma possível origem imunoglobulínica, causada por células plasmáticas alteradas por divisão monoclonal8.

O amilóide é amorfo, eosinofílico, extracelular e de distribuição ubíqua. A nível microscópico, cora-se pela eosina e exibe metacromasia com cristal violeta. A substância amilóide apresenta uma birrefringência verde que é peculiar quando corada pelo vermelho Congo e examinada à luz polarizada, constituindo-se este no método mais útil de se estabelecer sua presença. Pode-se, ainda, realizar a incubação com permanganato de potássio, que diferencia as fibras tipo AL das AA, além da análise imuno-histoquímica, que determina o tipo de cadeia leve (seja kappa ou lambda)2-8.

A idade de apresentação, segundo a casuística de McALPINE, varia de 8 a 80 anos, com uma média de 40 a 60 anos9. Parece haver uma predominância pelo sexo masculino, com uma relação de 3:1, porém sem predominância racial10.

Não há concordância quanto à região laríngea mais freqüente de origem dos depósitos amilóides. Alguns autores relatam a região supraglótica como sítio mais freqüente2, 3, 5, 7, 11, 12, 14, seguida da região glótica9, 10, 13, 15, por outros. Entretanto, a amiloidose pode envolver qualquer porção da laringe e, com freqüência, envolve mais de um sítio, como na série de Lewis et al5, em que se verificou ais de um sítio em 7 de 22 pacientes.

A ALP tem uma evolução progressiva, com início insidioso dos sintomas. A progressão é lenta, através de meses ou anos antes do diagnóstico, como demonstrado este relato9. A disfonia é o principal sintoma. Podem ocorrer, também, dispnéia, disfagia, sensação de corpo estranho e hemoptise13. Há relato de um caso fatal por hemoptise maciça14.

Os achados laringoscópicos são variados e não característicos, sendo que o aspecto mais comum é o de um edema bem localizado, amolecido, não ulcerado, que varia de cor amarelo-pálida a amarelo-acinzentada11.

A investigação diagnóstico deve incluir hemograma, uréia e creatinina séricos, testes de função hepática, exame qualitativo de urina, velocidade de sedimentação lobular, fator antinuclear, teste tuberculínico e radiografia de tórax. Alguns autores recomendam a biópsia de lábio, gengiva ou reto, ou a aspiração com agulha fina de gordura abdominal, para afastar amiloidose sistêmica; e biópsia de medula óssea, para o diagnóstico de mieloma múltiplo10, 11.





Porém, essas associações com amiloidose laríngea são raras3. Nos casos em que pode haver comprometimento da árvore traqueobrônquica pela doença, além da broncoscopia, pode-se realizar cintilografia com tecnécio-99m pirofosfato, com um alto grau de sensibilidade16.

Deve-se, em alguns casos, salientar que o diagnóstico correto é decorrente de um alto grau de suspeição, já que a ALP pode ter a aparência clínica semelhante a um pólipo benigno de prega vocal, cisto mucoso de retenção em falsa corda ou até laringocele11.

As opções terapêuticas na ALP são a observação e/ ou remoção cirúrgica. Os tratamentos clínicos, incluindo os corticosteróides locais e sistêmicos, quimioterapia e dimetil sulfoxide, têm sido desencorajadores2, 3, 9, 10. Radioterapia é contraindicada devido à sua ineficácia e efeitos adversos10. A observação pode ser adotada em alguns casos, especialmente em pacientes idosos, já que a doença pode progredir lentamente e/ou permanecer sob o mesmo aspecto por longo período de tempo: 17 anos segundo relato de Mitriani et al10. A remoção cirúrgica pode ser realizada por via endoscópica ou por técnica aberta. A técnica endoscópica pode ser realizada com bisturi frio ou com laser, havendo uma vantagem deste último, devido às suas capacidades hemostáticas17. As técnicas abertas incluem a ressecção parcial por laringofissura e as laringectomias parciais e totais. A laringectomia total e a ressecção traqueal são reportadas em alguns casos raros10. É importante um seguimento pós-operatório prolongado, pois os índices de recorrência são elevados, conforme demonstrado nas séries de Lewis et al., onde houve necessidade de múltiplos procedimentos cirúrgicos em 45% de seus 22 pacientes5.

CONCLUSÃO

É vital para o diagnóstico da ALP o empenho do otorrinolaríngologista-cirurgião de cabeça e pescoço. É necessário elevado grau de suspeição na investigação da doença, dada a sua evolução lenta e apresentação variada. Apesar dos recentes avanços em relação ao entendimento da etiopatogenia da doença, assim como dos métodos diagnósticos, as possibilidades de cura têm sido frustras. Isto não deve causar desesperança, já que os casos bem conduzidos têm, como regra geral, bom prognóstico.

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* Médicos Residentes da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre - Complexo Hospitalar Santa Casa (FFFCMPA/CHSC) - Porto Alegre/ RS.
** Acadêmico da FFFCMPA - Porto Alegre / RS.
*** Professor Assitente do Departamento de Anantomia Patológica da FFFCMPA - Porto Alegre 1 RS.
**** Professor Auxiliar do Departamento de Otorrinolaringologia da FFFCMPA/ CHSC - Porto Alegre/ RS.

Trabalho realizado no Departamento de Otorrinolaringologia e Anatomia Patológica da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre - Complexo Hospitalar Santa Casa (FFFCMPA/CHSC)- Porto Alegre / RS.

Endereço para Correspondência: Jaime Arrarte - Serviço de Otorrinolaringologia - Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, Rua Professor Armes Dias, 285 Centro, CEP 90020-090, Porto Alegre / RS.

Artigo recebido em 16 de julho de 1996. Artigo aceito em 13 de agosto de 1996.

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