Ano: 1997 Vol. 63 Ed. 1 - Janeiro - Fevereiro - (12º)
Seção: Relato de Casos
Páginas: 87 a 90
FASCEITE NECROTIZANTE CERVICAL EM CRIANÇA: RELATO DE CASO.
Cervical Necrotizin Fasciitis in Infant: a Case Report.
Autor(es):
João Gilberto Sprotte Mira*
Marcos Mocellin**
César Pacheco Guedes***
Ivan E. M. Mercado****
Ricardo Predebon Vanzo*****
Rodrigo Guimarães Pereira******
Palavras-chave: Fasceíte necrotizante
Keywords: Necretizing fasciitis
Resumo:
A fasceíte necrotizante é a destruição e necrose de tecidos. Inicia-se na fáscia cervical superficial, quando acomete o pescoço. A ocorrência desta patologia na região cervical é bastante rara, sendo ainda mais dificilmente encontrada em crianças. É doença de mau prognóstico e de difícil manejo, resultando em mortalidade elevada. Foram estes dados que inspiraram os autores a relatar este caso de fasceíte necrotizante cervical que acometeu um de seus lacientes de apenas 2 anos de idade, sem este apresentar qualquer causa aparente para a patologia. Os autores demonstram também a forma de tratamento clínico e cirúrgico instiuída e fazem breve evisão dos dados encontrados na literatura sobre o assunto.
Abstract:
Necrotizing fasciitis is caracterized as the tissue's destruction and necrosis. It begins on the superficial cervical fascia when it attacks the neck. The occurrence of this pathology on the cervical region is rare, being even more difficult to be found in children. It has bed prognosis and difficult control, resulting in a high mortality. This is the reason for the report of this case of cervical necrotizing fasciitis that affected a 2 years old child, with no apparent predisposing factor. The authors also show the clinical and surgical treatment and make a brief review of the literature about this subject.
INTRODUÇÃO
A fasceíte necrotizante é doença rara e potencialmente fatal que predominantemente atinge os tecidos da parede abdominal, dos membros ou do períneo, freqüentemente associada a pequenos traumas, procedimentos cirúrgicos ou injeções intravenosas (principalmente por toxicômanos).
As infecções necrotizantes do pescoço são de difícil classificação. Em 1918, Pfanner descreveu um paciente com infecção pelo agente Estreptococos hemolítico com o termo erisipela necrotizante1 e em 1924, Meleney descreveu 20 casos na China explicando que a patogênese seria a necrose subcutânea devida ao agente Estreptococos hemolítico2. O termo fasceíte necrotizante foi utilizado pela primeira vez por Wilson, em 1952, descrevendo casos similares por infecções estafilocócicas3.
Esta patologia é muito raramente encontrada na região da cabeça e do pescoço, sendo que nesta localização o seu prognóstico é ainda mais grave, tendo índice de mortalidade, segundo a literatura, de 22% a 30%. A lesão se caracteriza por destruição e necrose do tecido. O processo inicia-se na fáscia cervical, espalhando-se ao longo da mesma e atingindo os tecidos vizinhos até atingir a pele. É doença que atinge principalmente pessoas abaixo dos 40 anos, sem predileção por sexo ou raça.
A etiologia da doença na cabeça e no pescoço é algumas vezes desconhecida, sendo as infecções odontológicas e faríngeas as causas mais comuns. Apresenta-se clinicamente como necrose de fáscia e subcutâneo, celulite e edema, descoloração da pele e sinais de toxemia com desorientação e apatia. Seu sinal característico é alteração escurecida da pele, começando como pequenas áreas violáceas de bordos irregulares. Os agentes etiológicos são geralmente encontrados em combinação sinérgica de bactérias Grani +, Giram - e anaeróbias. Dentre os Gram + mais comuns encontram-se o Streptococcus pyogenes A e B e o Staphylococcus aureus. As bactérias Giram - mais encontradas são os Lactobacilos e difteróides. Quanto aos agentes anaeróbios, os Bacteróides, Peptostreptococos e Clostridium são os mais freqüentes.
O tratamento é dividido em duas etapas simultânea cirurgia e antibioticoterapia. O tratamento cirúrgico é feito através de incisão linear e amplo debridamento de toda a á necrosada, o que o torna difícil na região da cabeça e do pescoço, pois trata-se de área com inúmeras estruturas nervosas e vasculares e com importância estética e funcional para o paciente. A antibioticoterapia deve ser iniciada empiricame: com largo espectro de ação (Gram positivos e negativo: anaeróbios), sendo adequada após o resultado da cultura secreções identificar os agentes etiológicos.
O prognóstico pode ser bastante favorável quando o tratamento é iniciado precocemente e feito de maneira adequada. As complicações que podem acontecer normalmente levar à sepsis e posteriormente à falência de múltiplos órgãos, ser esta a principal causa de óbito dos pacientes.
Relatamos um caso de fasceíte necrotizante cervical em criança de dois anos de idade, atentando para a raridade desta situação clínica e pelo mau prognóstico esperado nestes casos. Discutimos a conduta tomada e demonstramos o bom resultado final obtido com o tratamento.
RELATO DO CASO
No dia 09/04/1995 o menor D.L.C.R., masculino, de 02 anos e 02 meses de idade, veio a consulta no pronto atendimento do Hospital de Clinicas da UFPR trazido por sua mãe. A mãe relatou história, de início há uma semana da consulta, de aumento de volume em região cervical direita e febre, não mensurada pela mãe. O quadro clínico progrediu com aparecimento de calor no local da lesão, hiperernia da pele na região, aparecimento de manchas escuras violáceas e irregulares no pescoço e oclusão do olho direito por edema das pálpebras há um dia do atendimento. A mãe negou qualquer história mórbida pregressa da criança e não havia queixas referentes a outros órgãos. Ao exame, a criança apresentava-se em mau estado geral, taquipnéica e hipocorada. Com pressão arterial de 120x80 mmHg, freqüência cardíaca de 120 batimentos por minuto e respiratória de 48 movimentos por minuto. Apresentava-se febril, com temperatura de 38,5° C, e peso de 12 kg. No hemograma, o volume globular era de 27,9%, havia leucocitose de 14.500 leucócitos, com 49% de bastões e 43% de segmentados, 92% de neutrófilos e duas cruzes de granulações tóxicas; a contagem de plaquetas era de 280 mil.
O menor foi internado e levado diretamente ao centro cirúrgico pela equipe de Otorrinolaringologia, onde foi submetido à drenagem de secreção purulenta fétida e debridamento das áreas de necrose tecidual encontradas em região cervical direita (Figura 1). Neste momento, foi colhido material para exame bacteriológico da secreção. Foi também submetido à traqueostomia, como medida profilática, pois o aumento de volume já promovia desvio do eixo da traquéia naquele momento. Após a cirurgia, o paciente foi levado à enfermaria pediátrica de médio risco onde foi iniciada a antibioticoterapia intravenosa. O esquema terapêutico foi iniciado com o uso de uma cefalosporina de 2ª geração (cefoxitina), em associação com vancomicina, aminoglicosídeo (amicacina e metronidazol. A cefoxitina foi retirada do esquema com 10 dia tratamento. O aminoglicosídeo foi retirado no 17°- dia de tratamento e reiniciado no 234 dia, permanecendo por mais 9 dias.
Figura 1. Fasceíte necrotizante em região cervical direita 1° dia de evolução.
Figura 2. Alta hospitalar - 37°- dia de evolução.
Figura 3. Seqüela - paresia do ramo mandibular do nervo facial à direita.
A vancomicina e o metronidazol foram utilizados por 31 dias, continuamente. Nos últimos 6 dias de internamento, foi iniciado o uso de cefalosporina de 12 geração (cefalexina), por via oral, que permaneceu em uso por mais 10 dias após a alta hospitalar. Foi também utilizada pomada de colagenase e cloranfenicol nas lesões do pescoço. O exame de cultura das secreções drenadas da lesão mostrou o crescimento de Streptococcus pyogenes hemolitico do grupo A, em associação com o Streptococcus viridans e o Peptostreptococcus sp.
No sexto dia de internamento, foi retirada a cânula de traqueostomia sem intercorrências. Foi realizado novo debridamento cirúrgico no 114 dia de internamento. Foi aguardada a granulação da área cruenta para tentativa de sutura da lesão. A primeira sutura foi realizada no 294 dia de tratamento, sendo realizada nova sutura com pontos capitoneados no 36° dia internamento. No 37° dia de internamento, o paciente teve alta hospitalar, retornando cinco dias após para reavaliação ambulatorial (Figura 2).
O menor apresentou resolução da patologia, evoluindo para cura completa. Teve como seqüela da doença paresia do ramo mandibular do nervo facial do lado direito, por provável acometimento pela área de necrose debridada cirurgicamente (Figura 3).
DISCUSSÃO
A fasceíte necrotizante é infecção bacteriana severa que se espalha através dos planos fasciais superficiais. É patologia rara e que predominantemente atinge os membros, abdome e períneo. O acometimento da região cervical, bem como da face e do escalpe, como demonstrado neste relato é considerado extremamente raro. A idade de acometimento está na maioria abaixo dos 40 anos de idade, sendo que a ocorrência em crianças é pouco freqüente, o que torna o caso relatado ainda mais peculiar.
Etiologicamente, esta doença está associada a pequenos traumas, procedimentos cirúrgicos e uso de drogas intravenosas. Especificamente em cabeça e pescoço, a origem mais encontrada é dentária ou a partir de infecções faríngeas4. Doenças sistêmicas imunossupressoras, como a diabete melito, mostram relação com predisposição de acometimento e piora do prognóstico do paciente4, 5, 6, 7.
O diagnóstico da fasceíte necrotizante deve ser clínico e rápido para que o tratamento adequado seja instituído prontamente, evitando-se, assim, um pior prognóstico para o paciente. O tratamento está baseado no extenso debridamento da área acometida, retirando-se todos os pontos de necrose tecidual encontrados. Neste ponto pode ser encontrada relativa dificuldade no tratamento da FN cervical e de face, pois grande número de estruturas nobres estão localizadas nessa região e devem, sempre que possível, ser preservadas. No caso relatado, o ramo mandibular do nervo facial direito foi lesado durante o tratamento, causando como seqüela, paresia deste nervo que não apresentou regressão.
Os principais agentes etiológicos encontrados nesta patolo são o Streptococcus do grupo A e o Staphilococcus aureus, a pouco tempo considerados como os únicos causadores. Atualmen sabe-se que há sinergismo destes agentes com anaeróbios obrigatórios2, 4. Neste ponto, o caso relatado não apresentou novidade. Recentemente, discute-se a existência de síndrome de toxicidade, semelhante ao choque, causada pelo Streptococcus pyogenes, germe encontrado neste caso, responsável por evolução rápida e grande parte das vezes fatal por falência de múltiplos órgãos8.
A antibiotico terapia empregada no caso relatado coincide com a recomendada na literatura mundial. Esta atenta para o fato de ter-se início empírico com largo espectro de ação, dando cobertura a germes Gram positivos e negativos e anaeróbios. A associação cefalosporina de 2ª geração com o metronidazol parece ser eficiente para o início do tratamento, adequando-se o tratamento após conhecimento dos agentes causadores da infecção5, 7, 9.
As complicações que podem advir desta doença são var e incluem a obstrução de vias aéreas, o choque séptico, a trombose de veia jugular e a erosão da artéria carótida, entre outras. Com o adequado manejo instituído ao paciente, evitou-se qualquer destas complicações, evitando-se também o óbito do paciente, situação relativamente freqüente nos casos de fasceíte necrotizante cabeça e pescoço.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIAS
1. PFANNER, W. - Fur Kenntis und Behandiung des Nekrotisierenden Erysipelas Deutsch. Ztschrf Chir, 144: 108-118 , 1918.
2. MELENEY, F. L. - Hemolytic Strptococcus Gangrene. Arcb Surg, 9: 317-364, 1924.
3. WILSON, B. - Necrotizing Fasceiitis. Ann Surg, 3:475-481, 1952.
4. SCOTT, P. M. J., et al. - Cervical Necrotizing Fasciitis and Tonsillitis. J Laryngol Otol, 108:435-7, 1994.
5. KADDOUR, H. S., et al.; Necrotizing Fasciitis of the Neck. J Laryngol Otol, 106: 1008-1010, 1992.
6. FRANCIS, K. R., et al.; Implications of Risk Factors in Necrotizing Fasciitis. Am Surg, 59: 304-8, 1993.
7. MAISEL, R., et al.; Cervical Necrotizing Fasciitis. Laryngoscope, 104: 795-8, 1994.
8. DONALDSON, P. M. W., et ai.; Rapidly Fatal Necrotizing Fasciitis Caused by Strpptococcus pyogenes. Clin Pathol , 46: 617-620, 1993.
9. PELEI), M., et al.; Cervical Necrotizing Fasciitis. Harefuah, 126 (11): 651-4, 1994.
* Professor Adjunto do Departamento de Otorrinolaringologia e Oftalmologia da Universidade Federal do Paraná.
** Professor Titular e Chefe do Departamento de Otorrinolaringologia e Oftalmologia da Universidade Federal do Paraná.
*** Médico Residente do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da UFPR.
**** Médico do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da UFPR.
***** Médico do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas da UFPR.
******Acadêmico Interno de Medicina do 6° ano da UFPR.
Departamento de Otorrinolaringologia e Oftalmologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná.
Rua General Carneiro, 181 - 13° andar - CEP 80060-100 - Curitiba - Paraná. Trabalho apresentado sob forma de painel na IX Jornada Científica do Hospital de Clínicas e do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná de 26 a 28 de setembro de 1995.
Artigo recebido em 12 de abril de 1996. Artigo aceito em 3 de julho de 1996.