Versão Inglês

Ano:  1980  Vol. 46   Ed. 2  - Maio - Agosto - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 127 a 133

 

GANGRENA GASOSA PRODUZIDA POR LESÃO DA OROFARINGE *

Autor(es): Nicanor Letti**
A. H. Moro***
C.H.D'Amore***
C. Da'Vigna***
E. Souza***
E. D. Machado***
L. D'Alessandro***
0. M. Fleck***
R. Amaral ***
S. Grigoletti***

Resumo:
Descrevemos o caso de uma paciente com uma úlcera necrótica na amígdala, mionecrose, coagulação intravascular disseminada, insuficiência renal aguda e morte por gangrena gasosa.

INTRODUÇÃO

Desde a mais remota Antigüidade correlaciona-se a gangrena gasosa com os grandes ferimentos principalmente de guerra, mas a etiologia da doença só foi determinada por Pasteur, Novy e Welch, quando descobriram o clostridium perfringens, bactéria produtora de gás e da toxina que lesa os tecidos. Durante a 1' Grande Guerra Mundial (1914-1918) foi grande o número de feridos que faleceram de gangrena gasosa. A melhora da antissepsia durante as cirurgias diminuíram os casos na 2' Grande Guerra (1939-1945) e praticamente não existiram nas tropas militares que lutaram na Coréia e no Vietname. A gangrena gasosa na atualidade surge de infecções cirúrgicas pós abortamentos, de cirurgias biliares e de grandes úlceras, principalmente de decúbito, em pessoas debilitadas.

Apresentamos um caso de gangrena gasosa que ocasionou a morte da paciente cuja porta de entrada foi uma lesão amigdaliana.

CASO CLÍNICO

MMR, 16 a. fem. branca, bras. Procurou o HCPA dia 22.04.80, encaminhada de São Leopoldo por estar há 8 dias em tratamento ambulatorial devido abscesso periamigdaliano E. conforme laudo de encaminhamento, apresentando trismo, hipertermia e odinofagia, e, hospitalizada em regime de urgência. Dois dias antes da hospitalização apresentou enfisema subcutâneo cervical e torácico anterior que se estendia aos ombros, ao mento e não conseguia comunicar-se, fazendo-o por escrito ou tampouco deglutir a saliva, porém movimentava-se ativamente. Referia estar tomando, desde o início da febre, Penicilina IMSegundo a mãe o quadro iniciou-se com reação cutânea tipo "rasch" generalizado que regrediu mas persistiu um edema palpebral.

Na baixa apresentava-se lúcida, coerente, mucosas úmidas e coradas, com a pouca abertura de boca que realizava, podia-se visualizar amídala E. aumentada de volume, com área escura e necrótica no ápice, sem grande edema nos pilares que apresentavam-se hiperêmicos. Nariz e ouvidos eram normais e um grande enfisema cervical podia ser observado e palpado.
ATA estava em 110170, temperatura 36,5°C, FC 72 bpm e FR 20mpm. O Rx de tórax mostrava extenso pneumomediastino, com enfisema subcutâneo no tórax, estendendo-se à região cervical, particularmente à Direita.

Na baixa foi iniciada a medicação com soro giicosado 5% e Binotal 500 mg - 1 amp EV 616hs.

No dia seguinte à baixa apresentava monoteste negativo, leucócitos 19900 com neutrocitose, desvio para E. e leve linfocitose. Hematócrito 37, hemoglobina 11,4 e eritrócitos 4.100.000. Sedimentação 50mm e trombocitopemia presente em avaliaçãot.om lâmina. As 19,10 hs apresentava uréia 320 mg/dl, glicose 113 mgldl, creatinina6,0 mg/dl, sódio 132 mEg11, Potássio 4,5 mEg11, cloretos 95 mEg11, C02 10,0 mEq/1. Repetido o hemograma às 20,30 hs do mesmo dia permanecia com leucocitose 15.500Imi, eritrócitos 3.900.000 Hgb 10,6 Hct 35 plaquetas 36.000 e granulações tóxicas nos neutrófilos, algumas hemácias em gota e policromatose.

O quadro não melhorou com o uso de antibióticos tais como Penicilina IM, Frademicina e Garamicina. Foi suspenso Binotal logo após 1 ° dose por intenso "rash" cutâneo.

Dia 24.04.80 estava sem dor e abria mais a boca, porém entrou em anuíra, com uréia de 320 mg/dl e creatinina de 10mg/dl, caracterizando insuficiência renal aguda, tendo feito shunt e submetida à hemodiálise dia 25.04.80.

Neste dia foi transferida para UTi apresentando gasometria arterial com C02 total 11,2 (21-27 mEq/1) e p02 47,4 (75-100 mmHg) e saturação Hb 71 (95-98%); uréia 332 mgldl, glicose 275 mg/dl; Creatinina 14 mg/dl. Apresentava também trombocitopenia acentuada e infecção grave com presença de mielócitos e metamielócitos no hemograma. Neste mesmo dia um exame bacteriológico da secreção orofaringe revelou a presença de enterobacter aerogenes e negativo para bacilo diftérico, tendo sido a hemocultura negativo.

Às 23,50 do dia 25.04.80, mantinha-se lúcida, coerente e cooperativa. Continuava, como desde a hora da baixa, apirética. Mantinha-se em anuíra e com TA 70145 FR: 34 mpm FC: 120 bpm. Ao Rx de tórax apresentava aumento vol. cardíaco e focos de consolidação no campo médio do pulmão D, leve pneumomedíastíno e enfisema subcutâneo no pescoço.
Estava sendo medicada com garamicina, Keflin, Vanolin, Solumediol, cateter de 02 úmido, Haemacell, soro glicosado e Dopamina Vivan.

À 1h apresentou obnubilação, agitação psicomotora, com o ECG demonstrando sinais de miocardite.

Fez parte cardiorespiratória às 2,45h tendo sido ressuscitada, entrando em choque após a ressucitação e falecendo às 4:30h.

Foi submetida a necrópsia 9hs após a morte cujo relatório foi o seguinte:

RELATÓRIO

Necrópsia realizada em cadáver de adulto do sexo feminino, aparentando a idade, bom estado nutricional, pesando aproximadamente 50 kg e de estatura média. As pupilas são isocóricas e têm aproximadamente 0,4 cm de diâmetro.

Mamas: sp., TASC: enfisema ao nível da região cervical, Cavidade peritoníal: sp., Retroperitônio: enfisema, Margens do fígado: RCO = 5,0 cm, apêndice xifálde = 6,0 cm, RCE = 0, Diafragma: sp., Faringe: a língua mostra pontilhado brancacento, Laringe: enegrecida, lisa e com áreas hemorrágicas de todo o vestíbulo, da área glótica e subglótica aspecto típico de necrose, hemorragia da valécula e da área cricoidéia, Esófago: hemorrágico em 113 inferior, Estômago: mucosa edemaciada, congesta e extremamente hemorrágica em toda sua extensão, Intestinos: congestão intensa. Necrose hemorrágica superficial da mucosa do ceco, Tireóide: sp. Peso 15g., Cavidades pleurais: presença de derrame pleural bilateral + 50m1, Traquéia e brônquios: a traquéia mostra-se hiperemiada, edemaciada contendo líquido hemorrágico, Pulmões: ambos edemaciados e congestos. O D pesa 775g e o E 700g, Pericárdio: há derrame pericárdico + 60m1, Coração: tem a forma habitual. Peso = 210g. No sub-endocãrdio do septo, há áreas de hemorragias puntiformes. Os ventrículos estão sp e têm a seguinte espessura de parede VD = 0,3 cm e VE = 1,1 cm. As válvulas estão sp e medem: VT = 12 cm, VP = 7,2 cm, VM = 9,0 cm, VA = 6,0 cm., Aorta: presença de lipoidose. Demais sp., Veia cava: sp., Fígado: congestão. Peso 1110 g., Vesícula biliar: sp., Duetos biliares: permeáveis, Pâncreas: pesa 75g, sp., Baço: pesa 80g, sp., Supra-renais: pesam 15g, sp., Rins: a cápsula destaca-se com razoável facilidade. A superfície é lisa a medular está mais corada que a corticaì. O D pesa 124 g e o E 125 g., útero: áreas hemorrágicas, Ovários: congestão acentuada.

EXAME MICROSCÓPICO

Amídala: no interstício focos de necrose hemorrágica e em algumas áreas há focos de necrose superficial do epitélio e miólise de algumas fibras estriadas subjacentes. Infiltrados inflamatórios peri-lesionais mononucleares e exsudação fibrinosa. Foram encontrados dentro das lesões descritas bactérias gram positivas, sob a forma de cocos e bastonetes. Faringe, traquéia e esôfago: necroses hemorrágicas da mucosa e submucosa. Pulmões: congestão intensa com focos hemorrágicos. Edema intralveolar. Fígado: congestão acentuada, predominantemente em centros lobulares onde há mais lesões degenerativas (esteatose-atrofia) e necroses dos hepatócitos. Os núcleos hepatocitários distinguem-se por discreta vacuolização com distribuição periférica da cromatina. Coração: no miocárdio freqüentes focos de necrose com hemorragias, e muito discreta infiltração inflamatória mononuclear com eventuais neutrófilos. Aorta: discreta lipoldose sub-endotelial. Útero: sp., Bexiga: sp., Ureteres: sp., Trompa: sp., Rim: congestão acentuada. Ovário: congestão acentuada com focos de necrose hemorrágica e com discreto infiltrado mononuclear. Presença de folículos císticos e corpos albicans. Linfonodos: congestão com focos de necrose hemorrágica. Timo: presença de corpúsculos de Hassal destacados e atrofia ou diminuição da camada cortical. Intestinos: congestão predominantemente de submucosa. Ossos: sp., Estômago: mucosa com focos superficiais de necrose hemorrágica elou exsudação fibrinosa. Tireóide: sp. Supra-renais congestão. Pâncreas: sp. Baço: dilatação dos sinusóides, cheios de hemácias com atrofia das trabéculas.



Fig. 1: Aspectos da base da língua, vestíbulo da laringe, região glótíca e traquéia com hemorragia e necrose.



Fig. 2: Corte da musculatura faríngica com miólise e mionecrose.



Fig. 3: Corte da amídala mostrando áreas de hemorragia e ausência de abscesso.



Fig. 4: Corte do ovário mostrando a coagulação vascular com o fenômeno de Sch wartzmann-Sanarelli.



DIAGNÓSTICOS

Amigdalite e faringite agudas necrótico-hemorrágicas (por anaeróbios), miocardite aguda multifocal, derrame pericárdico (60m1), enfisema subcutâneo e mediastinal, necroses hemorrágicas múltiplas em: traquéia (mucosa e submucosa, esófago (mucosa e submucosa), estômago (mucosa e submucosa), ovário e linfonodos (fenômenos de Schwartzmann - Sanarelli generalizado), CIV disseminada necroses hemorrágicas centro-lobu lares do fígado (estado de choque), congestão e edema pulmonar acentuados, derrame pleural bilateral (50m1 + 50m1), congestão multivisceral.

DISCUSSÃO

Os aspectos clínicos, a evolução para a insuficiência renal aguda e a coagulação intravascular disseminada da paciente caracterizam tipicamente uma gangrena gasosa, cuja porta de entrada foi a lesão amigdaliana e da área laríngea onde haviam mionecrose.1 A presença do aerobacter aerogenes embora possa produzir gás em infecções não nos parece ser a causa imediata neste caso, pois a evolução clínica, permite-nos concluir que o germe deve ter sido do género clostridium face a evolução rápida para a morte, aspecto que surge em ambientes produtores de exotoxina alfa que ocasiona e destrói as células. A toxina alfa uma lecitinase é hemolítica e fatal. A gangrena gasosa caracterizase por poucas reações locais, mas grandes manifestações sistêmicas, pouca febre, miosite, mionecrose, trombose, hemólise, insuficiência renal aguda, choque e morte, como foi o caso desta paciente, cuja evolução de toda a moléstia não chegou a 20 dias.

O trismo duque era portadora deveu-se provavelmente a presença de gás nas áreas parafaríngeas, palatais e cervicais e não por abscesso do espaço periamigdalino. A disfagia intensa, a necrose da laringe, por onde também deve ter penetrado ar para o mediastino sendo encontrado até na região retroperitonial junto ao psoas-ilíaco, caracterizando uma celulite anaeróbica. Wolinsky2 classifica as infeções produtoras de gás nos tecidos de três tipos: mionecrose clostrídica, celulite anaeróbica e mionecrose estreptocócica. O caso ao nosso ver classifica-se como uma mionecrose clostrídica com celulite anaeróbica e que devemos estar atentos em lesões ulcerosas das amígdalas que podem ser ocasionadas, como no caso, por germes anaeróbicos, produtores de gás e de toxinas letais.

SUMMARY

We presented a case of a patient which had a necrotic ulcer on the palatine tonsil, myonecrosis, disseminated intravascular coagulation and acute renal failure and died because of gas gangrene.

BIBLIOGRAFIA

1. HOOK, Edward W. - Harrison's - Principies of Internai Medicine - Chapter 172 Pg. 861 - 864 - Mc Graw - Hill Book Company - 68 Edição - 1970.
1979
2. WOLNISKY, Emanuel-Cecil Textbook of Medicine - Pg. 433- 436, W.B. Saunders Company - Philadelphia - 158 Edição -




ENDEREÇO DOS AUTORES:
HCPA - Área 19
Rua Ramiro Barcelos, 2350
90000 - Porto Alegre - Brasil

* Trabalho realizado no Serviço de Otorrinolaringologia do HCPA.
** Chefe do Departamento de ORL da Faculdade de Medicina da UFRGS - P. Alegre.
*** Médicos Residentes do HCPA - P. Alegre.

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