Versão Inglês

Ano:  1979  Vol. 45   Ed. 1  - Janeiro - Abril - ()

Seção: Trabalhos Originais

Páginas: 17 a 22

 

SURDEZ SÚBITA E MIELOMA MÚLTIPLO

Autor(es): Ciríaco Cristóvão Tavares Atherino*
Theodocio Cyríaco Atherino**

Resumo:
Os autores analisam um caso de surdez súbita ocorrida em paciente portador de mieloma múltiplo e procuram correlacionar os diversos dados clínicos com os fatos relatados na literatura, tentando explicar a concomitância de patologias.

INTRODUÇÃO

0 mieloma múltiplo (mieloma plasmocitário, mieloma de células plasmáticas, mielomatose, doença de Kahler) é encarado, atualmente, como uma proliferação neoplásica maligna de uma única linhagem de células plasmáticas, produzindo uma proteína específica, como se sob estimulação antigênica constante. Esta proteína é monoclonal e é freqüentemente citada como proteína M ou mielômica 1,2. Já foram descritos na literatura mielomas produtores de cada uma das classes de imunoglobulinas conhecidas (IgG, IgA, IgM, IgD, IgE).

Corresponde a cerca de 1 % de todos os tipos de doença maligna e a, aproximadamente, 10% das malignidades de origem hematólógica2.

Apresentaremos um caso de surdez súbita ocorrida em paciente portador de mieloma múltiplo, acompanhado de revisão bibliográfica e discussão.


CASO CLÍNICO

Identificação: D.F.L., masculino, 60 anos, branco.

H. D.A.: Em novembro de 1974 referia que, há 1 mês, após uma "gripe forte", surgiu hipoacusia bilateral, acompanhada de zumbido de tom agudo, intermitente, e que, após 15 dias, cedera completamente sem tratamento. Neste período, referia também cerca de 3 crises de tonteira rotatória, desencadeadas pela mudança brusca de posição da cabeça. Negava febre ou secreção auricular. Veio à consulta apenas para confirmação do desaparecimento do quadro.

Exame ORL: sem alterações significativas.

Audiometria: audiograma n° 1.

Supôs-se, então, que tivesse ocorrido uma otite média com obstrução tubária de origem gripal, e que cedera completamente.

Em janeiro de 1975, o paciente voltou ao consultório francamente agitado, referindo que, num período de apenas 4 dias, havia perdido totalmente a audição de seu ouvido esquerdo, surgindo zumbido de tom agudo, contínuo, e que aumentava de intensidade com o esforço. Negava tonteiras.

Exame ORL: sem alterações significativas.

Audiometria: anacusia à esquerda, com 0% de discriminação


Timpanometria: sem anormalidades (quadro n° 2).

Reflexo Estapédico: ausente em todas as freqüências pesquisadas do lado esquerdo (sonda no ouvido direito) (quadro n° 2).

Exame Otoneurológico:

Provas de Coordenação e de Equilíbrio: sem alterações.


Audìograma N° 1



Quadro N° 2






Demais Pares Cranianos:

V par.- hipoestesia da porção inferior da hemiface esquerda (da região malar para baixo). Reflexos corneanos normais.

Baseados no quadro clínico apresentado pelo paciente, pedimos um estudo radiológico e tomográfico do crânio e ossos temporais. Foram, então, encontradas, para nossa surpresa, lesões osteolíticas difusas da abóbada craniana compatíveis com metástases, sendo que as diversas incidências e tomografias do osso temporal não revelaram alterações. (Fig. 1).



Figura 1: R -X perfil de Crânio, mostrando extensas lesões osteolíticas na Abóbada Craniana.



Procuramos, assim, entrar em contato com os familiares do paciente, que nos relataram uma história com início há 6 meses, com fortes dores no braço direito e coluna cervical, que evoluíram progressivamente, atingindo braço esquerdo, costelas, punhos e dedos. Procurou um clínico geral, tendo sido constatada a presença de anemia moderada além de lesões osteolíticas ao longo de toda a coluna vertebral. Foi realizada uma biópsia de costela, que revelou intensa infiltração da medula óssea por células mielomatosas. Realizou, ainda, exame neurológico completo em dezembro de 1974, cujo laudo foi normal.

0 paciente, portanto, desconhecia por completo a natureza de sua doença.

Em meados do ano passado, recebemos a notícia do falecimento do paciente devido a complicações renais e pulmonares, ocorrido em fins de 1977. 0 clínico assistente solicitou a autópsia, no que a família, infelizmente, não concordou.

DISCUSSÃO

Kyle2 (1975), analisando cerca de 869 casos do mieloma múltiplo surgidos na Clínica Mayo no período de 1960 a 1971, refere que 98% dos pacientes tinham mais de 40 anos e que 61 % eram do sexo masculino. Os achados iniciais foram: dores ósseas (68%), anemia (62%) e insuficiência renal (55%). Encontraram-se anomalias esquelétricas ao R-X em 79%, enquanto que a amiloidose associava-se a apenas 7%. A sobrevida média foi de 20 meses.

Robbins3 (1974) afirma que os focos mais comuns de comprometimento ósseo são a coluna vertebral (66%), costelas (44%), crânio 141 %).

No entanto, sob o ponto de vista das complicações intracranianas do mieloma múltiplo, poucos foram os trabalhos publicados nos últimos anos, sendo que não encontramos qualquer referência sobre o comprometimento do VIII nervo nesta entidade.

Walsn4 (1971) afirma que as complicações do sistema nervoso no mieloma múltiplo ocorrem em 40% dos pacientes, em algum estágio do curso da doença.

Willliams5 (1972) acha que as lesões de nervos crânicos podem resultar do mieloma pura e simples ou de fraturas patológicas, sendo que também a infiltração dos nervos pelo amilóide pode causar sintomatologia, porém com outras evidências de amiloidose associadas.

Campbell Halford 6(1964) afirmam ser a neuropatia amiloidótica do mieloma causada por infiltração amilóide da "vasa nervorum", raras vezes por infiltração do próprio tronco nervoso.
Clarke7 (1954), estudando cerca de 25 casos de mieloma intracraniano, encontrou, em 15 casos, comprometimento do VI nervo, concluindo ser este o mais freqüentemente acometido em se tratando de nervos crânicos.

Gudas8 (1971) relatou um caso de mieloma do nervo óptico com comprovação anátomo-patológica. 0 paciente foi por ele acompanhado durante 18 meses, não apresentando qualquer problema de natureza visual, quando, em apenas 5 dias, perdeu totalmente a visão do olho direito. Após a morte do paciente, foi realizada necropsia, encontrando-se, macroscopicamente, edema do nervo óptico distalmente ao quiasma, que, ao exame microscópico, revelou infiltração do nervo por células mielomatosas, sem desmielinização. Concluiu o trabalho dizendo que a perda visual súbita num paciente portador de mieloma múltiplo, sem causas retinianas óbvias, pode levar à suspeita de comprometimento do nervo óptico.

Recentemente, Creston9 (1978) abordou em publicação diversas manifestações otorrinolaringológicas do mieloma múltiplo. Contudo, no que diz respeito à problemática otológica nada foi comentado.

Finalizando, achamos que, baseados no quadro clínico e na avaliação feita, e mais, na literatura, poderíamos formular 3 hipóteses prováveis:

1. Massa mieiomatosa ao nível do ângulo ponto-cerebelar, o que poderia ser constatado-se se realizasse uma cisternografia, o que foi contraindicado na oportunidade.

2. Infiltração do nervo por células mielomatosas, o que seria bem provável, se traçarmos um paralelo com o caso apresentado por Gudas.

3, Infiltração amilóide, a hipótese menos provável, visto não ter o paciente outros sinais de amiloidose.
Na realidade, o diagnóstico final e correto do tipo de comprometimento só seria possível após a autópsia.


SUMMARY

The autoors presented a case of sudden deafness ocurred in a patient with multiple myeloma and tried to correlate the clinicai features with the literature data to explain the concomitant diseases.


BIBLIOGRAFIA

1. WINTROBE, M.M. et cols: Harrison's Principles of Internal Medicine, McGraw-Hill Book Co., 1970.
2. KYLE, R.A.: Multiple Myeloma receview of 869 Cases, Mayo Clin Proc 50:29, 1975.
3. ROBBINS, S.L.: Pathologic Basis of Disease, W. B. Saunders Co., 1974.
4. WALSH, J.C.: The Neuropathy of Multiple Myeloma: an Eletrological and Histological Study, Arch Neurol 25:404, 1971.
5. WILLIAMS, W.J. et cols: Hematology, Mc Graw-Hill Book Co., 1972.
6. CAMPBELL, A.M.G.: M.E.H. Halford in Davies-Jones, G.A.B. et col.: Neuropathy due to Amyloid in Myelomatosis, British Med J 2:4444, 1971.
7. CLARKE, E.: Cranial and Intracranial Myelomas, Brain 77:61, 1954.
8. GUDAS JR., P.P.: Optic Nerve Myeloma, Am J Ophth 71:1085, 1971.
9. CRESTON, J.: The Otolaryngologic Manifestations of Multiple Myelo ma, Laryngoscope 88(8): 1320, 1978.




ENDEREÇO DOS AUTORES: Serviço de Otorrinolaringologia
Hospital de Ipanema, INAMPS - RJ
Rua Antônio Parreiras 67/4° andar
Rio de Janeiro

*Médico do Serviço ORL do Hospital de Ipanema, INAMPS - RJ
**Chefe do Serviço ORL do Hospital de Ipanema, INAMPS - RJ

Trabalho recebido em: 29.01.79

Imprimir:

BJORL

 

 

 

 

Voltar Voltar      Topo Topo

 

GN1
All rights reserved - 1933 / 2024 © - Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial