Versão Inglês

Ano:  1958  Vol. 26   Ed. 5  - Setembro - Outubro - ()

Seção: -

Páginas: 26 a 28

 

A CIRURGIA NA CRIANÇA E O TRAUMA PSÍQUICO

Autor(es): DR. OCTACILIO DE CARVALHO LOPES

Nos últimos anos tem havido uma preocupação maior da parte dos cirurgiões no sentido de evitar que seus pacientes sofram qualquer dor durante o ato cirúrgico. É, êste, um ponto pacífico e que não admite discussões. Mas, mesmo não sentindo dor, só o fato de receber alguém uma indicação cirúrgica qualquer é suficiente para que, concomitantemente, surja o fenômeno conhecido por trauma psíquico. De acôrdo com o grau de educação, de instrução e também de acôrdo com o comportamento nervoso individual do paciente, êste trauma pode ser disfarçado, mas sempre se verifica.

Os indivíduos adultos reagem de formas diversas, de acôrdo com a ignorância ou com os conhecimentos objetivos que possuam relativamente a seu caso clínico e também - isto é de suma importância - de acôrdo com o grau de confiança que lhe mereça o médico a quem se vae entregar.

Cada cliente, cada doente, considera o seu caso clínico de forma diferente pela qual o mesmo caso clínico é encarado pelas pessoas estranhas. E isto se justifica perfeitamente. Para êle, o "caso" é o "seu" próprio caso. Daí a importância que o médico têm que emprestar a cada paciente tratando-o com a atenção que êle está certo de merecer e que realmente merece.

Ao diagnosticar uma grave moléstia, o médico não pode e não deve, em hipótese alguma, transmitir sua impressão ao paciente, por melhor que seja sua receptividade, por melhor preparado que êle se encontre para receber uma sentença, muitas vêzes contundente, que lhe pesará como um golpe mortal.

Seria desumano agir sem o carinho e o sentimento de solidariedade na dor que é o apanágio da consciência médica.

Da mesma forma, com o mesmo carinho, com paciência e, porque não dizer mesmo, com tolerância, o cirurgião tratará ao seu cliente que vae submeter-se a uma intervenção cirúrgica, qualquer que seja a natureza da mesma.

Não há de impacientar-se, não há de apressar-se em despachá-lo do consultório enquanto êle tiver uma pergunta a fazer, uma dúvida a esclarecer ou mesmo uma simples curiosidade. Ainda que com aparência de calma, no fundo, êle estará recebendo um trauma psíquico a repercutir em todo seu mecanismo somático. Esse trauma só é reduzido, só consegue diminuir de intensidade, quando sua confiança no cirurgião é tão grande quanto o pavor ao sofrimento. Então ele vê no seu operador o homem bom, a criatura superior que vae arrancar suas dores que vae vencer sua doença. E não poderá sofrer decepções nessa confiança e nessa certeza de estar entregue a quem saiba corresponder aos seus íntimos anceios.

Se isso acontece com os doentes adultos, o que não se dirá quando vamos ter que lidar com crianças? Os adultos defendem-se, reclamam e suas queixas são levadas em consideração. E as crianças? A única coisa que podem fazer, a única coisa que têm o direito de fazer é espernear.

A medicina psico-somática, dá um relêvo muito grande ao estado psíquico do doente influindo em todos os estados mórbidos que o acometem. Os choques emocionais, os traumas psíquicos, ferem sua sensibilidade de forma indelével, como uma agulha de vitrola fere o disco. E a marca deixada vae influir mais tarde no seu comportamento psíquico, na sua vida emocional.

A educação moderna condena particularmente o medo que criaturas desprevenidas infundem às crianças em relação ao médico.

_Menino, se você não se comportar mando chamar o médico para lhe dar uma injeção. Mando chamar o médico para prendê-lo na cama, etc.

Todos estão hoje de acôrdo em que êste é um grave êrro, pois prepara o garoto para defrontar o médico não como deve fazê-lo, como a criatura que na hora da dor, na hora do sofrimento para trazer-lhe o alívio desejado.

Da mesma forma que recebemos no consultório crianças amáveis que se comportam sem temor e sem medo, submetendo-se pacificamente aos exames necessários, aparecem outras que à simples vista do avental branco, reconhecendo o algoz punidor, o carrasco pintado pelos que a rodeiam, fazem cenas de desespero e demonstram todo seu pavor, todo seu horror em virtude daquele falso retrato que já ficou gravado na sua alma e que dificilmente se apagará mesmo quando crescer.

Se no consultório, num simples exame, temos que dedicar aos nossos clientinhos um tratamento carinhoso que vença seu natural temor pelas coisas que lhe são desconhecidas, preparando-os para que em novas oportunidades voltem sem receio, que dizer, então, quando essas criaturinhas devem submeter-se a um ato cirúrgico doloroso, em ambiente estranho, cercado por gente estranha?

A primeira coisa é conquistar a confiança, captar-lhe a estima, o que, ordinariamente, é relativamente fácil. Para exemplificar, focalizemos a cirurgia das amígdalas por ser a que mais freqüentemente entra em causa nas relações entre as crianças e o cirurgião.

Até há alguns anos atrás, embora corriqueira e ao alcance de todos os especialistas principiantes, praticada rotineiramente em todos os serviços de todos os hospitais do mundo, deixava muito a desejar e não satisfazia, intimamente, aos próprios cirurgiões. Constituía um ato de verdadeira selvageria. Agarrando a criança condenada e envolvida num lençol, via-se ela amarrada nessa camisa de força pelos braços robustos de um enfermeiro. Com um abridor colocado, a bôca era mantida aberta. A criança assim imobilizada era operada. O cirurgião mais parecia um carniceiro ao terminar sua cirurgia, com o rosto e avental ensanguentados e o paciente a berrar desesperado, aflito e deixando não menos aflita e desesperada a família que o aguardava penalizada.

Assim a coisa se fazia até que a anestesia geral pela cloretila e pelo eter foi se generalizando. Hoje são pouquíssimos os cirurgiões que não recorrem a essa anestesia geral superficial. Mesmo assim a criança é metida na camisa de força e amarrada à cadeira. Não sofre dor com o ato operatório, que assim se tornou muito mais suave, muito mais humano. Mas, até que a anestesia faça efeito, ve-se subjugada, atada, amarrada. Não sofrerá mais as conseqüências daquele trauma doloroso mas resta ainda o outro trauma, o psíquico, a influenciar em vários atos de sua vida.

Hoje os especialistas recorrem a processos bem mais humanos. Contam com o auxílio de equipes de anestesistas que não se esquecem de respeitar a personalidade da criança. Quando a criança chega à sala cirúrgica já não se impressiona. Já entra dormindo. No seu quarto foi convidada a soprar uma bola, foi induzida com argúcia, com geito, com carinho e ao cabo de poucos segundos cai em sono. Levada à sala, não vê nada, não esperneia, não grita, não se sente desamparada pelos pais, que também tem seu sofrimento diminuído por saberem que seus filhinhos nada veem, nada sofrem. Ao acordarem, fazem-no tranqüilamente, calmamente.

Por outro lado, o médico que anteriormente necessitava de empregar habilidade incomum para executar uma operação correndo, apressadamente, para que a criança não acordasse - o que aliás era freqüente - antes de haver chegado ao fim do ato cirúrgico, hoje opera sem pressa, com calma, com tranqüilidade. Como é natural, a operação sae mais perfeita, arrisca-se menos a deixar pedaços de amígdalas o que é tão comum e que tanto contribui para o descontentamento de quem se vê na contingência de submeter-se a uma segunda operação para corrigir a primeira.

Costumamos dizer aos nossos clientes, justificando os nossos colegas, para que êles também façam a mesma coisa em relação a nós, quando fôr o caso, que a culpa não é do operador porém do método empregado. Por isso a cirurgia pelo método de dissecção, com a criança entubada, tende a generalizar-se.

É um método que satisfaz as exigências da técnica cirúrgica moderna e satisfaz intimamente ao cirurgião que a pratica, suprimindo notavelmente a possibilidade dos traumas psíquicos.

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