Versão Inglês

Ano:  1936  Vol. 4   Ed. 6  - Novembro - Dezembro - (21º)

Seção: Trabalhos Originais

Páginas: 1269 a 1276

 

APOPLEXIA DA UVULA

Autor(es): Octacilio Lopes

Primeira observação.

M. P. (Ficha n.° 2.778), de 19 anos, branco, brasileiro, casado, lavrador, residente em Palmares, compareceu a, consulta no dia 20 de fevereiro de 1935.

Muito aflito, falando com certa dificuldade, a semelhança aos portadores de abcesso amigdaliano, informa que ha cerca de duas horas estava almoçando quando sentiu uma dor violenta no faringe, acompanhada de um bolo que lhe tomou toda a garganta. Nada mais poude deglutir, nem mesmo a agua que varias vezes tentou tomar para ver se melhorava da sufocação que tambem sentia.

M. P. informa que teve a sensação exata de um caroço crescendo-lhe rapidamente na garganta, sufocando-o. A familia, muito assustada, procurou um farmaceutico que o recomendou ao meu consultorio.

A caminho, com as pancadas do automovel (num percurso de cerca de 15 kilometros), sentiu-se a principio bastante peor. Começou, porém, a escarrar sangue, melhorando um pouco Tanto assim que já consegue falar, embora com grande esforço.

Ao exame, a uvula apresenta-se consideravelmente edemaciada, e enegrecida, séde de um hematoma que a mascára e a deforma, tornando-a de tamanho mais ou menos comparavel ao de uma ameixa.

O diagnostico não oferecia dificuldades muito embora fosse tal caso o primeiro que encontrei até hoje.

Tratava-se evidentemente de um hematoma da uvula, descrito com o rotulo de Aplopexia da uvula.

O tratamento constou de abertura do hematoma, seguido de aplicação local e hipodermica de Coaguleno Ciba, repouso, gargarejos adstringentes e alimentação liquida gelada.

O paciente voltou 6 dias depois, informando que, ainda no dia em que veio a consulta, eliminou umas peles com sangue coalhado. Nada mais sente.

A uvula sofreu uma descamação completa, apresentando-se, ao exame, de tamanho normal, mas consideravelmente empalidecida.

Segunda observação

M. P. B. (Ficha 4.278), branco, de 23 anos, de idade, paulista, comerciário, solteiro, residente em Catanduva, veio á consulta ás 8 horas da manhã do dia 18 de Dezembro do ano proximo passado (1935), queixando-se de uma duvida na garganta, Estava dormindo quando acordou em sobresalto, um tanto asfixiado, sentindo que um bolo lhe enchia a garganta, dele não se podendo livrar por mais esforço que fizesse. Olhou num espelho mas, como a luz estivesse muito fraca, nada conseguiu vez. Deitou-se novamente, sendo porém impossivel conciliar o sono não somente pela quasi impossibilidade de respirar como pelo mão estar de que se tornou presa. Não quiz chamar as pessoas de casa para não assusta-las.

Depois de um certo momento, com os esforços que fazia para escarrar, sentiu desprender-se qualquer coisa da garganta que verificou ser um pouco de sangue. Continuou, dali por diante, a cuspir sangue, ficando aliviado da asfixia, porém muito nervoso.

Ao exame, a uvula se apresenta bastante edemaciada, principalmente na metade inferior e com uma área, não muito extensa, arroxeada.

O tratamento constou de aplicações de adrenalina e prescrição de gargarejos adstringentes e injeções de Calcio e Coaguleno.

Nenhuma noticia tive, depois disto, do paciente que não voltou ao consultorio.

COMENTARIOS

A primeira destas observações foi publicada nos Anaes de Oto-rino-Laringologia de Pernambuco acompanhada de alguns comentarios que abaixo reproduzo com algumas alterações, e deu motivo a que o meu presado colega Edgard Falcão, de Santos, ficasse surpreendido ao deparar nos referidos comentarios, que eu acreditava tratar-se do primeiro caso registrado, no Brasil, de Apoplexia da Uvula. E isto, pelo motivo muito simples de ter saído meu artigo no numero dos Anaes, correspondente ao primeiro trimestre deste ano, e, ele, Falcão, ter um artigo sobre o mesmo assunto e que saiu na Revista Oto-Laringologica de São Paulo, no numero de Outubro do ano passado. Como era razoavel, tratei imediatamente de reconhecer, em carta particular, que a primazia cabia áquele colega que foi meu companheiro de trabalhos na Clinica -do Professor Moraes, na Baía, explicações que foram mais ou menos as seguintes.

Convidado pelo dr. Sylvio Caldas a colaborar nos Anaes remeti-lhe em fins de Outubro do ano passado (1935) um artigo sobre Apoplexia da Uvula. Dois mezes depois, no dia 27 de Dezembro me chegava ás mãos o numero de Setembro-Outubro da Revista Oto-Laringologica com o artigo de Falcão sobre Apoplexia do veo do paladar.

Naqueles dias eu pensava em, receber o numero dos Anaes já em atraso. Passaram-se, porém, as semanas e os mezes e já eu me havia esquecido por completo do assunto, julgando mesmo que os Anaes não mais voltassem a circular, quando, em Abril, recebo uma gentilissima carta do dr. Sylvio Caldas acompanhando o 1.º numero de 1935 daquela revista, com meu artigo, desculpando-se pelo atrazo da publicação do mesmo, forçado que foi a suspender a saída dos ultimos numeros de 1935, somente voltando a revista circular regularmente este ano.

Estas explicações eu as dou em homenagem, como acima já frizei ao distinto colega Falcão que no seu trabalho me forneceu algum material para ampliar o que agora apresento, e, dando ensejo de atualizar, completando-a, a bibliografia do assunto.

CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA APOPLEXIA DA UVULA

Não deixa de ter seu interesse os casos descritos nas duas observações que abrem este trabalho. Conhecia o edema apopletico da úvula apenas atravez da literatura, pois, mezes antes, chamou-me a atenção uma observação de Maurice Yoel publicada nos Anaes de Oto-Laringologia (Les Anaes d'Oto-Laryngologie). Procurei reler a referida observação e consultar a bibliografia do as

Escassa. Pouco encontrei. Os casos registrados não chegam a 30. Daí achar que não seria de todo desvaliosa a divulgação destes que vão engrossar a pequena bibliografia mundial e secundar a lista -das observações brasileiras publicadas.

Realmente não me consta da existencia de outros casos observados entre nós, além do de Edgard Falcão, do de Mangabeira Albernaz (citado por Falcão) e o que recentemente foi publicado por Orlando de Castro Lima.

ALGUNS DADOS GERAIS SOBRE A APOPLEXIA DA UVULA

Em 1911, Bosviel apresentou á Societé d'Oto-Rhino-Laryngologie de Paris, (sessão de 10-11-911), uma observação de apoplexia do pilar amigdaliano. Em homenagem a este autor e, apor julgarem ser o mesmo, o primeiro a descrever a molestia, os especialistas que posteriormente tiveram oportunidade de encontrar casos semelhantes passaram a descreve-los com o titulo de Doença de Bosviel. De acordo, porém, com as pesquizas realizadas por Maurice Yoel, foi Garin quem fez a primeira comunicação sobre o assunto, em 1853, seguido por Spengler (1854), Le Jeune (1891), Ripault (1898), Fabre e Gilbert (1910), Bosviel (1911), Gilbert (1912), Escat (1923), Engel (1923) , Garel e Gignoux (1925), Mayersohn (1926) e 1927), Borroni (1928), Predescu-Rion (1928), Pierre (1928), Maurice Yoel (1928), K. Bernfeld (1930), V. de Pinho (1933), Collet, Chavachon e R. Millet (1934), Maurice Yoel (1934), Edgard Falcão e Mangabeira Albernaz (1936), Orlando C. Lima (1936), e Octacilio Lopes (1936).

Depreende-se daí que não ha razão para o rotulo de Doença de Bosviel.

Maurice Yoel descreve seus 2 casos (1928 e 1934) com o titulo de Apoplexia da úvula acompanhando assim a Garin, Spengler, Le Jeune, Fabre e Gilbert, Chavachon e Millet.

Outros autores preferem empregar a designação mais lata de Apoplexia, do véo do paladar (Escat, Engel Gignoux, Pierre, V. de Pinho, Mayersohn.

Ha ainda os que nomeiam a afecção por Edema Apopletico do vestibulo faringêo (Predescu-Rion) e Apoplexia do pilar amigdalino (Bosviel).

Como se vê, os autores descrevem os casos :intitulando-os sempre da mesma maneira (Apoplexia), variando apenas a séde do derrame que completa o titulo (úvula, véo, pilar).

Todos os casos descritos são anais ou menos semelhantes. A sintomatologia é sempre a mesma, variando de intensidade de acordo com o derrame: começo brusco, perturbações respiratoria, disfagia, angustia, ás vezes escarros sanguinolentos, e sensação de corpo estranho e modificação da voz.

Como já vimos, ha pequenas variações na séde exata do derrame. Num dos casos de Escat, este foi em pleno véo do paladar. No de Bosviel, extendeu-se até os pilares. Na observação de Predescu o derrame foi da metade esquerda da úvula, interessando tambem o bordo livre de véo e a metade do pilar anterior esquerdo, a epligote e os ligamentos ara-epigloticos. No de Falcão, em toda a metade direita do véo, abrangendo a úvula e a região amigdaliana. No de Mangabeira, havia uma verdadeira equimose da metade esquerda do véo e hiperemia da ponta da úvula.. No de Orlando, o derrame foi difuso, no véo, mais para a direita. Nos meus a séde era a úvula. No de Pierre, foi de toda a metade direita do véo. Este ultimo autor comentando sua observação na Societé de Laryngologie des Hospitaux de Paris (6-7-927) diz ter encontrado apenas 6 casos publicados e que o 1.° foi o de Bosviel em 1911. Já vimos, pelas citações de Yoel, que se trata de um equivoco.

A questão de idade e sexo não parece ter a menor influencia como fatores predisponentes, embora Pierre afirme a preferencia sobre a segunda metade da vida. Quero, a proposito, chamar a atenção para a idade dos meus observados: 19 a 23 anos, respectivamente.

Yoel diz que a molestia ataca sempre o indivíduo em plena saúde e de preferencia durante o sono. Dos meus casos, um se ajusta tambem a esta observação pois o paciente foi atacado quando dormia. Outro, porém, o foi quando almoçava.

PATOGENIA - Na opinião de Escat citado por Pierre, tudo se resume numa rutura submucosa, duma veia palatina inferior, auxiliada por hipertensão do véo, comparavel ás hemorragias submucosa da corda vocal durante um esforço, como se tem verificado nos cantores, ou a um derrame sub-conjuntival.

Bosviel e Worms, tambem citados por Pierre, pensam numa inflamação do véo, de causa mecanica.

Predescu procura explicar o acidente pelo fria, agindo como excitante de um ganglio simpatico.

J. Jean acredita que se trate duma paresia simpatica.

Fotiade, discutindo a observação de Predescu, diz que das quatro variedades de edema (inflamatorio, renal, mecanico e nervoso), o único influenciado pela adrenalina é o nervoso. Conclue a favor de J. Jean e de Predescu pois este obteve ótimo resultado com a adrenalina que empregou no caso observado.

A observação de Predescu faz lembrar uma predisposição individual pelo fato do paciente ter, 4 anos antes, sofrido o mesmo acidente.

Garel e Gignoux pensam numa fragilidade exagerada das túnicas vasculares da região.

Worms compara a apoplexia da úvula com a hemorragia subconjuntival espontanea, tão frequente no curso das inflamações desta túnica, ocular (Yoel).

Para Bernfeld o acidente seria devido a fenomenos de estases. Basea-se no caso observado em 1930: - um dabetico de 99 anos é preso, subitamente dum acesso hipoglicemico com respiração difícil, tipo Cheyne Stockes. Ao exame, apresenta um hematoma da úvula com grande edema e vesiculas cheias de sangue.

PROGNOSTICO - E sempre benigno. O hematoma, ou é absorvido espontaneamente, ou rompe-se, tudo se normalizando em poucos dias.

TRATAMENTO - Resume-se na abertura do hematoma (coar qualquer instrumento), e uso de gargarejos antisepticos e adstringentes.

Nos meus casos empreguei tambem, como ficou dito, o Coaguleno e adrenalina local (2.º caso).

Predescu, com aplicações locais de adrenalina milesimal, conseguiu rapidamente reduzir o edema á metade, o que tambem pude observar.

Repouso e regime completam as indicações terapeuticas, coma se vê, bastante resumidas.

BIBLIOGRAFIA

1) - MAURICE YOEL - "Un cas d'apoplexie de la luette" - Arch. Int. de Laryngologie 1928, p. 590.
2) - PIERRE - "Un cas d'apoplexie du voile du palais " - Arch. Int. de Lar. 1928, p. 81.
3) - J. JEAN, DARABAU, FORTIADE - "Discussão da obs. de Pierre - Idem, idem, p. 225.
4) - PREDESCU-RION - "Oedeme apoplectique du vestibule pharyngo-laryngien" - Arch. Int. de Lar., 1928, p. 225.
5) - MAURICE YOEL, - "Sur dApoplexie de Ia luette - Avec une nouvelle observation personelle" - Les Annales. d'OtoLfryngologie, 1934, p. 1253.
6) - MAYERSOHN - "Apoplexie du voile du palais. - Arch. Int. de Laryngologie, 1926, p. 447.
7) - MAYERSOHN - "Encore un cas d'affection de Bosviel" - Arch. Int. de Lar., 1927, p. 341.
Além destes trabalhos que pude lêr, Maurice Yoel cita mais os seguintes:
8) - GARIN - "Apoplexie de la luette" - Gaz. des Hospitaux de Paris, 1891, p. 19.
9) - SPENGLER - "Apoplexia uvulae" - Deutche Klinik, Berlim, 1854, VI, p. 7.
10) - LE JEUNE - "Un cas d'hemorragie aigue (apoplexie) de la luette" - Gaz. des Hospitaux de Paris, 1891, LXV, p. 1300.
11) - GAREL, ET CIGNEAUX - "L'Apoplexie du voile du palais". - Journal de Medicine de Lyan, 20 aout. 1935.
12) - FABRE ET GILBERT - "Un nouveau cas d'apoplexie de la luette" - (Centre med. et pharm., Cannat, 1910-11, XVI, p. 359.
13) - GILBERT - "Apoplexie uvulae" - Journal de Phys. med. af ., mai, 1912.
14) - ESCAT - "Deux cas d'apoplexie du voile du palais"- O. R. Lar. Int., juin. 1923.
15) - ENGEL-"Un nouveau cas d'apoplexie du voile du fpalais". - O. R. Lar. Int., nov. 1923.
16) - WORMS - "Discussion á la Societé de Laryngologie de Paris", Seance du 9 nov. 1923.
17) - BERNFELD - "(De Jerusalem) - Les inflamations de la luette" - Monatschrift für ohrenheilkunde und Laringorhinologie, 1930.
18) - VELOSO DE PINHO - "Les apoplexie du voile du palais"-, ann. d'O. R. Lar. Paris, juin 1933.
19) - COLLET, CHAVACHON ET MILLET (R) - Apoplexie de la luette) Societé d'O. R. Lar. Seance du 8 janvier 1934.

Além destes trabalhos, Edgard Falcão cita:

20) - RIPAUT - "Un cas d'hematome spontané de la luette" - Ann. des Mal. de l'oreille, du nez, etl. 1898 e Rev. Heb. De Lar. et de Rhin. 1898.
21) - G. BORRONI - "Un cas di apoplexie del veo palatino" -Bollet. degli Specialitá Med. Chir. n .O 2, 1918 p. 334 - Zentralb. für Ohrenheilkunde 14, 612, 1930.

Acrescentando os de publicação indigina, abaixo citado, temos por enquanto, uma relação bibliografica provavelmente completa:

22) - EDGARD DE CERQUEIRA FALCÃO - "Apoplexia do véo do Paladar" - In Revista Oto-Laringologica de São Paulo, 1935, n.° 5 p. 419.
23) - ORLANDO DE CASTRO LIMA - "Apoplexia do véo do Paladar" - In Revista Oto-Laringologica de São Paulo, 1936, n .º 1 p. 22.
24) - OCTACILIO LOPES - "Apoplexia da úvula" - In Anaes de Oto-Rino-Laringologia, Recife, 1936, Fase. p. 14.

DISCUSSÃO

Rezende Barbosa - Desejaria dizer ao Dr. Octacilio Lopes, que o Dr. Paulo Sáes, na sessão de Maio pp. da, Secção de O. R. L. da A. P. M., teve ocasião de levar à discussão um caso identico, de apoplexia da úvula, citando a mesma coincidencia com outros colegas brasileiros.

Dr. Guedes de Melo F.° - Acreditamos. conforme aliás ressaltou o Dr Octacílio Lopes, sejam tais casos mais frequentes do que indica a pesquisa bibliografica, tendo em vista a duração efêmera da alteração patológica e a sua tendência para a cura espontanea Aproveitamos o ensejo para relatar uma observação curiosa, que reputamos muito interessante pela sua originalidade. Trata-se de uma constrição da úvula por acidente profissional. Ha uns 2 mêses fomos procurados por uma jovem teceloa que nos contou o seguinte: durante o serviço da fábrica, ao aspirar, por um orifício, um rio da lançadeira sentiu que o mesmo inopinadamente se enrolara na lingua aí embaraçando-se em muitas voltas. Uma das companheiras cortou o fio desprendendo-o facilmente com grande alívio para a vítima. Uma hora após, percebendo certa dificuldade em deglutir e uma sensação de plenitude na garganta, veio a jovem ã, nossa presença. O exame mostrou a ponta da úvula transformada em pequeno tumor de cor vinhosa e os tecidos adjacentes levemente edematoso. Com a pinça, verificamos que o pequeno tumor estava separado da base da, úvula por um sulco profundo ocupado por fragmento do fio amarrado. Após a secção do fio, que era invisível sem o auxilio instrumental, os tecidos, a pouco e pouco, retornaram á normalidade.

Octacílio Lopes - Agradeço as informações prestadas e quero frizar que me sinto bem pago de haver trazido o assunto á, discussão. Como previra, existem observações meditas de apoplexia da úvula. Somente entre os presentes podemos contar com 3 do prof. Alonso e 1 do dr. Paulo Sáes, além de outro do causa bastante interessante, do dr. Guedes de Mélo.

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