Versão Inglês

Ano:  1936  Vol. 4   Ed. 5  - Setembro - Outubro - (28º)

Seção: Trabalhos Originais

Páginas: 689 a 696

 

SOBRE UM CASO DE BLASTO-MICOSE DAS CORDAS VOCAIS TRATADO PELA ELETROCOAGULAÇÃO ATRAVEZ DE UMA LARINGOFISSURA

Autor(es): DR. RAUL DAVID DE SANSON 1

A blasto-micose isolada da laringe constitue raridade, tanto na literatura indigena da especialidade, como na alienigena. E', todavia, mais frequente como lesão de vizinhança quando as lesões cutaneas se associam ás lesões mucosas. Com este carater algumas téses já foram publicadas entre nós e, eu mesmo, quando fia alguns anos atrás apurei os meus conhecimentos, frequentando o Serviço do Prof. Eduardo Rabello e a Sociedade de Dermatologia e Sifiligrafia do Rio de janeiro, tive a oportunidade de observar alguns casos. Infelizmente, a terapeutica não, tem correspondido á espectativa, apesar de todas as pesquisas e recursos tentados. O azul de metileno, a violeta de genciana e os saes de ouro, parecem-me que ainda não conseguiram deslocar o iodureto de potassio da primazia que desfrutou e que parece ainda desfrutar.

Não é meu intuito entrar no terreno das discussões sobre a terapeutica da blastomicose, mas, apenas, trazer á publicidade o resultado de tratamento cirurgico que acredito inédito. Compulsando a literatura da especialidade é facil verificar a confusão frequente com a tuberculose todas as vezes que o cogumelo se localiza na laringe e, especialmente, quando os exames de laboratorio não revelam a natureza do germe e constatam a presença de celulas gigantes. No caso em questão não ha possibilidade de controvérsia, pois, todos os exames praticados pelo dr. Oswino Penna sempre constataram a presença dos blasto-mices, inclusive nos esputos. A presença deste cogumelo nos escarros, ás vezes sanguinolentos, manifestação que logo chamou a atenção do medico assistente, pressupõe a existencia de lesão pulmonar.

Chevalier-Jackson, no capitulo que escreveu no tratado de Jackson Coates, em 1929, acentúa a falencia da cirurgia no tratamento das lesões tegumentares e conclúe que, ainda naquela época, era o iodureto de potassio o unico medicamento que permitia alguma esperança. No seu ultimo livro, publicado em 1932, Hajek refere-se á raridade da blasto-micose na Europa Central, fala sobre o unico caso desta molestia, generalizada, que teve a oportunidade de observar na sua clinica e cita um dos casos de Bellei eGherardini, cujo diagnostico clinico se prestou a confusão com a tuberculose. Foi, todavia, catalogado com o resultado dos exames de laboratorio. Não fala em terapeutica e, muito menos, em tratamento cirurgico.

Como não tenho o intento, nem o desejo, de entrar em apreciações sobre a blasto-micose, deixo aos colegas da especialidade que julguem, pela leitura de uma observação minuciosa, do valor da eletro-coagulação, coma agente terapeutico, e da vantagem da laringofissura como via de acésso que permite ao cirurgião agir como quer e como deve. Para ser sincero acrescentarei que não veio de mim a indicação e que devo a oportunidade desta intervenção inédita ao distinto cirurgião dr. Paulo Cesar de Andrade.

Registro particular do Dr. R. David de Sanson - Ficha n.° 15.055, em 25 de Julho de 1929 - Dr. F. M. - 51 anos, casado, advogado, residente no Rio.

Vem á consulta, acompanhado pelo Prof. Rocha Vaz por causa de um escarro sanguinolento, mais frequente pela manhã. O sangue ora vem de mistura com catarro, ora, puro. A' noite, por vezes, tosse. O Prof. Rocha Vaz, que o examinou, nada encontrou no aparelho respirátorio. A's vezes fica um pouco rouco, não tem emagrecido, come e dorme bem.

Rinoscopia anterior: sem maior significação.

Rinoscopia posterior: idem.

Boca: nota-se sobre a bochecha, á esquerda, extendendo-se ao pilar anterior, um processo inflamatorio, muito suspeito, de micose.

Laringe: cordas vocais ligeiramente hiperhemiadas. Nada que justifique o sangue. Tem reflexos faringeos muito acentuados e só foi possivel realizar o exame com o auxilio da cocaina adrenalina.

Mais tarde, aos cuidados do Prof. Rabello, fez com o Dr. Paulo César uma extensa e profunda eletro-coágulação de toda lesão bucal (blasto-micose), curandó-se radicalmente.

Em 14 de junho de 1932, por indicação do Dr. Paulo Cesar, volta a procurar-me por causa da laringe, suspeita de localização da blasto-micose sobre as cordas vocais. Esteve na Europa, foi examinado pelas maiores sumidades e o diagnostico de blasto-micose sempre posto á margem. Por alguns foi admitida a natureza tuberculosa da lesão.

O exame da laringe mostra as cordas vocais muito infiltradas e o terço anterior, especialnnente, revestida por tecido vegetante.

Diante do resultado do meu exame e dos antecedentes, o dr. Paulo Cesar aconselhou e insisti para que fosse feita uma eletrocoagulação das cordas vocais e Que esse tratamento fosse realizado por via externa, isto é, através de uma laringofissura. Diante do resultado obtido com o tratamento da lesão da boca, o paciente, ao par de tudo, aceitou o alvitre do seu cirurgião, que insistiu para que a abertura da laringe fosse executada por mim. Ficou combinado, diante da ligeira tiragem que se manifesta ao menor esforço, que esta intervenção fosse precedida, para maior segurança, de uma traqueotomia alta. Esta ultima, operação foi praticada com anestesia local, na casa de Saúde do Dr. Eiras, em 18 de Junho de 1932 e, no dia 27 do mesmo mez, realizou-se a laringofissura. Auxiliou a intervenção o Dr. José Kós. Tambem recorreu-se ao emprego da novocaina-adrenalina como anestesico. Logo que o isthmo da tiroide foi aberto chamou a atenção dos presentes o entumescimento das cordas vocais, semeadas de pontos microscopicos, de côr amarelada, no meio de pequenas ulcerações, quasi invisiveis. Constatou o dr. Paulo Cesar, que praticou a eletro-coagulação, que o aspecto da lesão era identico ao processo bucal.,A lesão se limitava ás cordas vocais. A exposição maxima da laringe permitiu verificar nada existir abaixo da glote. Terminada a coagulação que foi superficial, a laringe foi fechada com tres planos de sutura, os dois profundos com catgut e o superficial com seda. Para terminar foi colocada uma canina traqueal de maior calibre. Assistiram a intervenção o prof. Rocha Vaz, o dr. Oswino Penna e um medico amigo da familia. O dr. Oswino sempre controlou os exames bacteriologicos e anatomo-patologicos e os resultados sempre confirmaram a blasto-micose.

A laringofissura foi praticada por sugestão do dr. Paulo Cesar, havendo quem insistisse para que se fizesse a intervenção pela laringoscopia diréta. Sequencias operatorias ótimas, não tendo havido, apesar do paciente ser bastante irriquieto, a menor reação para o lado do aparelho respiratorio.

No, dia 2-7-32 retirei dois pontos acima da canina.

No dia 6-7-32 todos os pontos estavam fóra e a cicatrização realizada por primeira
intenção. Retirou-se para casa em ótimas condições.

No dia 13-7-32 a canula foi retirada, o atrito sobre a mucosa da traquea provocava uma expectoração um pouco sanguinolenta. Voz melhorada, porém, de tonalidade grave. Pela laringoscopia indireta pude verificar que as cordas vocais já se apresentam de melhor aspecto, todavia, ainda bastante congestas. Repouso vocal, medicação anti-espasmodica para evitar tosse.

Dia 18-7-32 - continua melhorando, inclusive da voz.

Dia 29-7-32 - As melhoras se acentuam. Voz mais timbrada, porém, cavernosa. Pela laringoscopia indireta as cordas ainda se apresentam congestas. Tem permissão para trabalhar uma vez que se utilize da voz cochichada. Continua em observação. Está fazendo uso de injeções intravenosas de azul de metileno.

Em 30-12-32 noto que a mucosa das cordas vocais se apresenta de côr rosea, sem a menor reação, voz um pouco abafada. Respira muito bem e não tem dispnéa de esforço. Não tenho restrições a fazer quanto ao desejo manifestado de subir para Petropolis.

27-7-33 - Tem estado em Petropolis, descendo duas vezes por semana. Engordou. Respira muito bem, apenas a voz mantem um timbre um pouco rouco. Estou de acôrdo que se façam ,as injeções de ouro aconselhadas pelo Dr. Astrogildo Machado.

Em 15-2-34 - Assustou-se com a rouquidão e a tosse que sobrevieram a um resfriado, sentindo uma certa dificuldade em respirar. Do exame noto que a mobilidade das cordas vocais é normal, os bordos livres, porém, se apresentam irregulares. Aconselho inhalações e repouso vocal.

Só tornei a ver o paciente em 20-11-34, com acentuada rouquidão. Exame revela forte irritação e reação de toda a mucosa na entrada da laringe. Tem fumado muito. Sofreu forte abalo com a morte de um filho. Deixar o fumo, compressas quentes e inhalações. Voltar dentro de 8 dias se não melhorar.

Depois de Novembro de 1934 não mais tornei a ver o paciente. No espaço de dois anos e meio tive pois a oportunidade de acompanhar este caso que apresentava, quando foi operado, forte dispnéa de esforço que o impedia, ás vezes, de subir até mesmo uma escada. Depois de operado não mais acusou esta perturbação, mesmo quando fortemente resfriado. Nunca abandonou o fumo e a sua profissão de advogado, causas que certamente contribuiam para congestionar a mucosa da sua laringe. Sob todos os pontos de vista esta observação me parece digna de registo primeiro, pela natureza e localização da molestia (exclusivamente sobre as cordas vocais. Os exames praticados pelo Dr. O. Penna sempre revelaram a presença dos blasto-mices, cuja localização inicial se fizera na boca e foram completamente debelados pela eletro-coagulação, resultado que levou o seu cirurgião a aconselhar a mesma terapeutica para a laringe; a céu aberto. As sequencias foram ótimas em todos os sentidos, inclusive na cicatrização da tiroide, que se fez por primeira intenção, contra expectativa de outros especialistas que o examinaram anteriormente e contraindicaram esta via de acésso.

O caso clinico foi acompanhado, em todas as suas fases, pelo prof. Rocha Vaz, amigo da família.

O interesse desta observação reside, principalmente, na terapeutica e na via de acésso empregadas para a sua execução. A literatura cita meia duma, de casos de blasto-micose isolada da laringe, sem fazer a menor referencia a respeito do recurso e da terapeutica que empregamos.

Os beneficios colhidos pelo espaço de dois anos e meio são indiscutiveis. O desaparecimento da dispnéa de esforço livrou o paciente de uma angustia constante e permitiu exercesse, sem constrangimento, a sua profissão de advogado.

FICHA ANATOMO-PATOLOGICA - DEPOIMENTO PESSOAL DO DR. OSWINO PENNA

Em um dia do mez de Setembro de 1929 fui procurado em meu laboratorio por um paciente com indicação do professor Eduardo Rabello para fazer em pequeno fragmento de tecido do rebordo gengival, obtido por biopsia, o diagnostico diferencial entre epitelioma espino-celular e baso-celular para fins terapeuticos.

Pelo exame histopatologico verifiquei que não se tratava nem de espino-celular, nem baso-celular, mas de blastomicose.

O doente era um advogado muito conhecido na melhor sociedade do Rio de Janeiro.

Era a primeira vez que eu fazia diagnostico de blastomicose em pessoa de grande tratamento, mas pela.. historia- clinica foi facil apurar que o paciente havia permanecido em fazendas de plantação e criação.

Em face desse diagnostico o professor Paulo Cezar fez larva exerese dos tecidos doentes por eletro-coagulado.

Depois disso o doente curou-se de suas lesões da cavidade bucal com cicatrização total.

Passados 2 anos, em 1931, o decente e as pessoas da familia começaram a perceber alterações da voz. Voltando ao laboratorio foi feito exame de escarro e encontrei blastomices. Este material foi tambem examinado pelo Dr. Arêa Leão, que fez a mesma verificação de blastomices.

Era evidente que a infestação se estendera ás cordas vocais. Tempos depois o doente começou a experimentar um certo embaraço na respiração.

Neste interim foi o paciente a Berlim e lá consultou, a conselho do professor Munch, o professor Weingärtner. Este depois de examinar o doente, remeteu material de biopsia do laringe para dois laboratorios, um deles da propria casa de Saúde, do professor Munch Martin-Lüther Kronhenhause.

Com este exame clinico e os resultados do laboratorio concluiram por lesões, em parte cicatrizadas de processo infeccioso grave, provavelmente tuberculose atipica e acharam que não se devia intervir, aconselhando as pessoas da familia a levar o doente para acabar seus dias em seu país.

Nas preparações feitas em Berlim encontrei blastomices que lá não foram reconhecidas, o que aliás é muito natural, atendendo a inexistência de blastomices na Alemanha.

Aqui, já no Rio de janeiro, os sintomas se agravaram e o doente queixava-se então de falta de ar, dôr, tosse, insonia e emagrecia. Certo dia em conversa com o doente ouvi já a certa distancia cornagem acentuada, parecendo-me cianotico. Alarmado com estes sinais de asfixia, procurei seu medico clinico o professor Rocha Vaz e contei-lhe o que presenciara e certo de que perdurando este estada de cousa estaria morto dentro em breve, lembrei a hipótese de fazer uma laringo-fissura e eletro-coagulação das lesões da corda, pois as lesões haviam cicatrizado totalmente.

Esta, intervenção, a meu ver, pelo menos oferecia uma oportunidade para o doente melhorar e si não aproveitasse muito pelo menos ficaria, com a traqueotomia, livre da asfixia.

O professor Rocha Vaz procurou o professor João Marinho que desaconselhou a intervenção.

Consultei o professor Paulo Cezar que considerou minha opinião inédita e muito feliz.

Procurou o professor David Sanson e propoz-lhe a operação, fazendo o professor Sanson a laringo-fissura e ele dr. Paulo Cesar, a eletrocoagulação.

Daqui por diante melhor podem-informar a respeito do caso os professores David Sanson e Paulo Cezar.

Passo apenas apenas afirmar que os resultados desta magnificá intervenção, foram surpreendentes e estou convencido que estes dois técnicos introduziram em terapeutica cirurgica um novo processo para tratar a blastomicose, pelo menos em certos casos desde que o tratamento seja muito precoce. O doente atualmente não sofre da blastomicose e lá se vão 6 anos.




1 Membro da Academia Nacional de Medicina. Livre docente da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Chefe dos Serviços de Oto-rino-laringologia da Policlinica de Botafogo, da Fundação Gaffrée-Guinle e do Hospital S. João Batista da Lagoa.

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