Versão Inglês

Ano:  1975  Vol. 41   Ed. 1  - Janeiro - Abril - (16º)

Seção: Trabalhos Originais

Páginas: 99 a 103

 

PROBLEMAS DA NOMENCLATURA OTORRINOLARINGOLÓGICA

Autor(es): Paulo Mangabeira Albernaz

I - O osso é hióide (ó) ou hioídeo (í)?

No último número da Revista Brasileira de Otorrinolaringologia (o n.° 1 do vol. 40, 1974), foi publicado um artigo de minha autoria sob o título "O aparelho hioídeo e suas anomalias". A revisão do trabalho permitiu a saída de palavras com acentuação e formas totalmente contrárias aos meus pontos de vista, e às exigências léxicas. Não é meu intuito criticar o fato, mas dele me aproveitar para focalizar um assunto assaz controvertido da linguagem anatômica: as formas dos vocábulos técnicos terminados em óide (adjetivos não raro substantivados) e os adjetivos a eles relativos.

Já escrevi sobre este assunto várias vezes, mas vou particularmente me reportar, nestas linhas, à questão de hióide, que aliás pode servir de orientação geral para as demais palavras técnicas terminadas em óide.

O osso é hióide, acento tônico no o) e não hioídeo (acento tônico do i), como foi publicado em meu artigo. Hiide, do grego yo - a letra grega hipsilon em posição horizontal - e eídos, forma ou aparência de uma coisa qualquer - quer dizer "aquilo que semelha ou tem a forma de um hipsilon" - ipsilo, em português.

A adoção da forma breve - óide tornou-se universal, mas a rigor é errada. Do termo eidos qualquer composto como ele formado devia terminar em - ide ou - ido, pois que o grego ei só podia dar em latim i longo. Deveríamos pronunciar hioíde (e não hióde), mastoíde e não mastóide; e assim por diante. A universalização de - óide (menos no francês por motivos óbvios) levou a ser esta a pronúncia adotada.

Surgiu, porém, um problema. Os termos em - óide eram adjetivos, mas muitos deles, mormente em anatomia, foram substantivados. Hióide fixou-se da mesma maneira que tireóide, cubóide, mastóide, deltóide, corióide, etc.

Daí resultou a necessidade de serem criados adjetivos a eles referentes. Os nomes latinos admitiram os adjetivos em eus: mastoideus, hyoideus etc. Mas a pronúncia não era a do sufixo latino longo aeus (do grego aios), mas do breve eus. O acento tônico caía no i, assim deltoïdeus (com trema no i), hyoïdeus, thyreoïdeus, xiphoïideus etc., como se lê nos antigos léxicos médicos.

A formação desses adjetivos, partindo de adjetivos substantivados, criou sério problema terminológico. Os franceses, sem olhar a designação neo-latina, isto é, do latim moderno, criaram adjetivos em seu próprio idioma: mastoidien, hyoidien etc. Os ingleses seguiram em geral o latim moderno, ou não adjetivaram o substantivo: m. sterno - hyoid por exemplo. Os italianos e espanhois acompanharam em grande parte o latim: regione soltoiodea, m. sterno cleido - mastoídeu, etc. Em português, seguiu-se, ora o latim, com pronúncia errada mastoideus, mastoídeu - em vez de mastoïdeus, mastoídeo; hyoideu, hyoïdeus; em vez de hioídeo, etc. Usou-se ainda a forma em ano: hiofadiano, mastoidiano, tireoidiano, etc., isto tudo por influência francesa - hyoïdien, mastoïdien etc.

Estes dados básicos foram auferidos dos dicionários latinos e especialmente nos léxicos médicos antigos mais autorizados - isto é, Barthomomaei Castelli Lexicon Medicum Graeco - Latinum, 1746; Onomatologia-Medica Completa ou Medici nisches Lexicon, de autoria de "um grupo de médicos afamados", 1756; Kritischetymologisches Medicinisches Lexicon de L. A. Kraus, 1826. Eles são indispensáveis ao esclarecimento de tais problemas.

Podemos, entretanto, resumir tudo isso no seguinte:

1.° - Os adjetivos substantivados terminam sempre, em português, em óide, isto é com o significado de "que tem a forma de": hioide (osso hioide, com a forma da letra grega ipsilo em posição horizontal), mastóide (processo mastóide, isto é, que tem a forma de uma mama de vaca) ; xifóide (processo xifóide, que tem a forma de uma espada); cartilagem tireóide (que tem a forma de um escudo); etc. Portanto, o primeiro elemento, adjetivo substantivado e que passa a ser substantivo, termina sempre em óide - acento tônico na letra o.

2.° - A necessidade levou à criação de adjetivos destes substantivos: o músculo deltóide, isto é, em forma da letra grega delta, tem a artéria deltoidea em latim deltoïdea (deltoidiana é efeito do francês deltoïdienne); mastoídea ou mzstoídeo, hioídea ou hioídeo etc. Portanto, o adjetivo é sempre terminado em oídeo. A pronúncia exata, de acordo com a pronúncia latina, é sempre com o acento tônico no i do sufixo.

Há quem propugne pelo uso de hioideu, hioidiano etc., mastoideu, mastoidiano etc., alegando o uso corrente entre os médicos. Se o uso corrente resolvesse assuntos de linguagem técnica continuaríamos a dizer leucocito (acento tônico no i), como pronunciaram algumas gerações): Tamisa (em vez de Tâmisa, como se disse desde o século XII); Padre Nosso, em vez de Pai Nosso, como se disse desde os tempos de Afonso Henriques. E assim por diante.

No meu trabalho, por conseguinte, em todos os lugares em que se lê osso hióideo ou hioídeo, leia-se osso hióide (acento tônico no o); onde se lê aparelho hióideo (acento tônico no primeiro o), leia-se aparelho hioídeo (acento tônico no segundo i.)

São estas as designações corretas, de acordo com as exigências léxicas, critério que foi, aliás, adotado, pela Nomenclatura Anatomia Brasileira de 1958.

II - O termo técnico impedância

A nomenclatura técnica, em particular a moderna, é criada por pessoas que, na maioria absoluta dos casos, não têm o menor conhecimento de lexicologia.

No caso, por exemplo, dos termos físicos de eletricidade empregados em acústica, isto foi feito como bem se quis ou entendeu. E os termos foram criados em primeiro lugar, nos Estados Unidos, na língua inglesa.

Há quase cem anos foram incluídos em física os termos impedânce e admittance. Agora, com o emprego desses termos em audiologia, foram introduzidos, em nosso idioma, impedância, admitância e, ainda, capacitância, inductância, susceptância, conductância etc.

A introdução da palavra impedância na linguagem otológica levou-me a estudar a questão filológica, pois pareceu a mim bastante estranha a terminação ância. Procurando investigar o problema, fui encontrar novos termos eletrotécnicos que não são tão novos (alguns, pelo menos), tais admitância, reactância, susceptáncia, inductância, capacitância, compliância. Todos estes vocábulos, de origem latina embora, nos vieram do inglês, e são termos técnicos de eletricidade.

Compliance (ou compliancy), em inglês são ambos sinônimos de complacence (ou complacency), cujo significado, de acordo com o latim moderno complacência (do latim clássico complacentis), é complacência. Os físicos usam, porém, como tradução, o termo compliância, para sistematização terminológica, guiando-se por admitância (não deixa de ser admissão), reactância (nada mais é do que reação) etc. Acresce que o significado, em português, e mesmo em inglês, de complacência é "ato ou desejo de comprazer; benevolência, condescendência. 2. Prazer, satisfação. 3. Apreciação lisonjeira", (Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa de Laudelino Freire e J. L. de Campos), não havendo pois, justificativa para seu emprego como termo técnico. Daí dever ser preferida, nesta acepção, a forma complidncia, como é de uso corrente no ITA (Instituto Técnico de Aeronáutica).

Para esclarecer o assunto, achei que deveríamos partir do estudo dos sufixos ância e ência em nosso idioma. Aliás, praticamente quase todos os idiomas modernos os empregam, tirados do latim.

Em português, os sufixos -ância e -ência ligam-se, na maioria das vezes, a adjetivos e algo freqüentemente a verbos.

Em sua "Gramática Metódica da Língua portuguesa" (24.ª ed. 1974), Mendes de Almeida diz que tais sufixos "são provenientes da vogal que caracteriza a conjugação latina, seguida da junção do sufixo nt, do particípio presente e de um grupo de adjetivos, com ia ou simplesmente a; ânsia, ência com i quando, geralmente, têm relação com formas latinas que nos deram ante, ente, ento".

Em estudo estatístico feito com certo cuidado, baseado no "Vocabulário Ortográfico Brasileiro" de Buarque de Holanda (1969), encontram-se 78 palavras com os sufixos ância e ência, distribuídos do seguinte modo: em ância, 63; em ência, 15.

A origem nem sempre é fácil de ser descoberta. Adstringência, por exemplo, tanto pode provir de adstringente, como de adstringir. Mas, por outro lado, que dúvida pode haver em vir ausência de ausente, competência de competente, concorrência de concorrente, confidência de confidente etc. etc? E mais, reentrância de reentrante, vacância de vacante, vigilância de vigilante etc.

Há palavras cuja origem nem se filia a adjetivos, nem a verbos. São, porém, raras Encontrei no caso desinência, ganância, substância.

Quanto aos verbos, há evidente ligação da primeira conjugação ao sufixo ância e da segunda e da terceira a ência.

Em 33 vocábulos terminados em ância, derivados de verbos, a maioria, a quase totalidade, pertence à primeira conjugação. Assim, abundância, de abundar; concordância, de concordar, importância, de importar (ou de importante); observância, de observar; tolerância, de tolerar, etc. Só consegui encontrar três vocábulos (em 36) em que o sufixo ência estava ligado a verbos da primeira conjugação: providência, saliência, violência. Parece-me, porém, que em tais casos, providenciar é que veio de providência; saliência de saliente e deste salientar; violentar e violência, provavelmente de violento.

Se passarmos às segunda e terceira conjugações, encontraremos substantivos terminados em ência, na segunda em 27 casos (nenhum em ância) e, na terceira, em 35 casos (também nenhum em ância): absorver, absorvência; anteceder, antecedência; ascender, ascendência; permanecer, permanência, remanescer, remanescência; etc., afluir, afluência, anuir, anuência; divergir, divergência; existir, existência, insistir, insistência; preferir, preferência; refluir, refluência; etc., etc.

Leva-nos isto à conclusão de que as palavras admitância, impedância, reactância, inductância, conductância, etc., foram formadas inteiramente em desacordo com o critério seguido pelo nosso idioma.

Admitância tem de provir, pelo próprio sentido, de admitir. Pelo exposto acima, só poderia dar admiténcia. Impedância, originada de impedir, daria impedância; reactância, de reagir, daria reacténcia ou reagência; inductáncia de induzir, inductência; conductância, de conduzir, conductância. E assim por diante.

Susceptância vem do inglês técnico susceptance, derivado provavelmente de susceptible e susceptive, correspondentes, em nosso idioma, a susceptível - do latim susceptibilis, do verbo suscipio, ipere. Susceptível não possui nenhum verbo a não ser susceptibilizar, dele oriundo. Poder-se-ia pois, admitir susceptância.

Todo este estudo, porém, vai de encontro à divulgação do termo impedância, que já se diz em francês impédance, em alemão impedanz, em italiano impedância, etc. pois, difícil, apesar do termo, em nossa língua, ser verdadeiro neologismo, fazer valer a forma certa isto é, impedância.

Pelo menos, serve o estudo para mostrar que recebemos o vocábulo do inglês, no qual foi criado, adaptando-se diretamente ao português, sem atender às exigências de derivação de nosso idioma.

Isto resulta de serem em geral os termos técnicos criados por pessoas que não possuem o menor conhecimento de filologia ou de lexicologia, e que, apesar disso, se consideram em condições de inventar neologismos. Há anos, os franceses não criaram de rocher, rochedo (pars petrosa do temporal), rocherite, juntando um sufixo grego a um vocábulo francês? O que vale é que a palavra não foi aceita, nem na própria França. Mas prevaleceu petrosite em vez de petrite.

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