A Otorrinolaringologia na História
Autor(es): Nicanor Letti*
A doença dos homens famosos sempre foi assunto de discussão e de comentários minuciosos na imprensa do mundo. A ORL entretanto poucas vezes tem sido apreciada como causa das moléstias dos homens que fazem a história. Mas ela é rica em ocorrências deste tipo, pela influência que teve, atingindo indivíduos ilustres, em situações decisivas.
George Washington faleceu em conseqüência de um abcesso periamigdaliano (1). Thomas Edison tornou-se surdo após uma otite média que mudou completamente sua vida, induzindo-o a ter um ritmo de vida que o conduziu a suas preciosas invenções (2). 0 marechal de campo Erwin Von Rommel em plena fase conspiratória contra Furher em 1944, na França, sofreu um acidente automobilístico que causou fratura do osso temporal esquerdo. Este fato incapacitou-o temporariamente e os planos sobre Hitler, dos generais alemães, foram mudados.(3)
Franklin Delano Roosevelt contraiu poliomielite 21 meses após ter sido submetido a uma amigdalectomia e sofreu de problemas nasais durante toda sua vida. Manteve sempre a seu lado o famoso otorrinolaringologista americano Macintire (4). A surdez de Beethoven e de outros músicos famosos é um capítulo estudado exaustivamente, inclusive os ossos temporais daquele foram retirados do seu cadáver, mas não se conhecem as conclusões anatomopatólogicas do estudo dos mesmos.
Um dos casos mais famosos que envolveu patologistas e otorrinos foi o do cancer laríngico do Príncipe Herdeiro Frederico Guilherme da Prússia e Alemanha. Esse príncipe era filho de Kaiser Guilherme I que com seu famoso "Chanceler de Ferro" Otto Von Bismarck uniram politicamente a Alemanha (5)
Frederico Guilherme era casado com uma princesa inglesa e tinha 56 anos. No outono de 1887 após uma infecção das vias aéreas superiores ficou disfônico. Uma laringoscopia realizada em Março demonstrou a existência de um nódulo séssil de 4x2 mm sobre a corda vocal esquerda que, entretanto, permanecia móvel. Foram realizadas tentativas de retirada do mesmo com alça fria, faca com anel e tratamento com galvanocautério. 0 problema não melhorou e em março foi recomendada uma laringofissura. Sua esposa escreveu nesta época: "É uma cirurgia exploradora e não se sabe como terminará". Quando Bismarck soube da indicação cirúrgica insistiu para que se ouvissem outros médicos. No mesmo mês uma junta de médicos alemães, da qual fazia parte o mais famoso otorrinolaringologista de Berlim Prof. Tobold, examinou o príncipe.
Vendo que a corda vocal onde estava localizada a lesão tinha os movimentos reduzidos Tobold sentenciou: "A lesão pode ser considerada cancer".
Com a cirurgia praticamente indicada Frederico demonstrou interesse, talvez sugerido por sua esposa, de consultar o melhor especialista de Londres na época: Morell Mackenzie. Esse otorrinolaringologista havia sido aluno de J. N. Czermak de Budapest e manejava o laringoscópio com grande perícia.
Mackenzie após o 1.0 exame descreveu a lesão "como uma tumoração do tamanho de uma ervilha aberta, na parte posterior da corda vocal esquerda... vermelho pálida, com superfície rugosa, mas não lobulada, uma parte da mesma é invisível por estar abaixo da corda vocal. Não existem sinais de ulcerações... a olho nú parece mais simples verruga ou um papiloma".
Insistiu em uma biópsia antes da cirurgia. 0 fragmento que removeu foi examinado pelo famoso patologista Rudolf Virchow que descreveu a lesão: "como um simples processo irritativo". Duas semanas após Mackenzie fez outra biópsia e Virchow agora diagnosticou como "uma paquidermia verrucosa", achou pequeno o tamanho do fragmento, mas concluiu por um prognóstico favorável. Mackenzie relutando em operar sem a evidência histológíca de cancer, realizou uma terceira biópsia.
A descrição de Virchow foi a seguinte: "o exame microscópico mostrou que a superfície da porção excisada foi completamente ocupada por proliferações papilares de vários tamanhos, entre as papilas estão grandes e grossas células epiteliais, em camadas e achatadas contra outras partes". Ele não encontrou evidência de câncer.
Em novembro Mackenzie foi chamado de Londres, notando ao exame a extensão para a região in?raglótica do tumor e edema acentuado, o que explicava o agravamento da disfonia e agora com problemas respiratórios. Quando Frederico perguntou se era câncer, Mackenzie respondeu-"desagrada-me dizer, senhor, parece ser muito semelhante, mas é impossível ter certeza'". Cirurgiões foram consultados e alguns dias após os familiares foram informados que a doença era malígna.
Frederico não quiz se submeter a uma laringectomia mas consentiu na traqueotomia se fosse necessária. Theodor Billroth que clinicava em Viena nesta época, havia realizado a primeira laringectomia total quinze anos antes (1873).
Em janeiro de 1888 foi submetido a uma traqueotomia. 0 rei Guilherme I, seu pai faleceu em março desse ano. Frederico foi coroado rei por somente 99 dias, pois faleceu no dia 15 de junho de 1888. A autópsia foi realizada por médicos famosos que legaram seu nome a medicina mundial. Virchow, Von Waldeyer e Langherans. Encontraram a laringe tomada por uma grande úlcera gangrenosa, havia ninhos de carcinoma na base da epiglote e metastases cervicais. Não foram encontradas metástases pulmonares.
Este caso gerou uma discussão célebre entre os médicos alemães e Morell Mackenzie. Os germânicos publicaram um livro famoso "Die Krankheidt Kaiser Friedrichs III (1888)" que foi respondido pelo inglês com o trabalho" The Fatal Illness o? Frederick the Noble (1888)". 0 trabalho de Mackenzie foi muito ofensivo aos alemães e por isto foi censurado pelo Royal College of Surgeons da Inglaterra. Este caso é de grande ensinamento e como afirma Lucente (6) "talvez a vida do Príncipe poderia ter sido alongada por menor vacilação clínica e confiança menos rígida da nova patologia microscópia". Um filho deste príncipe visitou o Rio como tenente da Marinha Alemã na corveta "Olga" em agosto de 1883. D. Pedro II recebeu-o pessoalmente a bordo, no porto do Rio e foi cumulado de todas as honras de neto do Kaiser alemão. Esta visita foi descrita com todos os detalhes pelo jornalista gaúcho-alemão Karl Von Koseritz, que se achava no Rio como deputado provincial, em crônicas mais tarde enfeixadas em um livro "Imagens do Brasil" traduzido para o português por Afonso Arinos de Mello Franco.
Em 1893 os EE.UU. atravessavam uma séria crise financeira. Os congressistas estavam discutindo o famoso "Sherman Act". Em maio, algumas semanas antes da reunião do Congresso o Presidente Stephen Grover Cleveland notou uma área elevada e rugosa no lado esquerdo do palato que se estendia desde os prémolares até mais ou menos a 1 cm do palato mole. 0 médico do Presidente, R. M. O'Reilly (7) fez uma biópsia e mostrou as lâminas anonimamente para vários patologistas, sendo estabelecido que a doença era maligna. Decidiram realizar a cirurgia a qual deveria ser feita em absoluto segredo, face os problemas nacionais que seriam agravados pela divulgação da doença do Presidente.
Foi anunciado oficialmente que o mesmo faria um cruzeiro de férias pela Baia de Buzzard, tendo embarcado no iate "Oneida" no dia 30 de junho. Viajavam no mesmo iate o Dr. Joseph Bryan cirurgião de Nova York e amigo pessoal do Presidente; William Keen cirurgião de Filadélfia; Edward Janeway médico de Nova York e Ferdinand Hasbrouch um dentista especializado no uso do óxido nitroso. No dia seguinte em pleno cruzeiro de férias no East River, logo após o meio-dia o Presidente foi operado. Foi realizada, uma maxilectomia subtotal por via transoral. A operação teve a duração de 1 hora e 19 minutos incluindo o tempo anestésico. 0 sangramento foi mais ou menos 120 gramas. Foi utilizada luz elétrica para iluminar o antrum e a cavidade bucal durante a cirurgia. Começaram a circular rumores na imprensa sobre a saúde do Presidente, mas o Secretário da Defesa anunciou que ele havia se submetido a uma extração dentária.
0 Presidente, entretanto, ficou com rinolalia e problema de arcada dentária que foi solucionada pela colocação de uma prótese de borracha vulcanizada. Usando este aparelho o Presidente voltou para Washington 20 dias após, para condenar e repelir o "Sherman Act". 0 segredo completo da operação foi mantido durante muito tempo e todos os detalhes somente foram conhecidos 15 anos após sua morte, de uma causa desconhecida.
0 câncer de laringe que ocasionou a morte de Júlio Prates de Castilhos é outro episódio interessante na história do Brasil particularmente do Rio Grande do Sul.
Júlio de Castilhos foi o primeiro Presidente do Estado sulino após a proclamação da República, sendo o autor da Constituição de 1891 do Rio Grande do Sul. Esta Carta é famosa pois é toda baseada na doutrina de Augusto Comte, é a única constituição positivista do mundo. Os princípios positivistas, embora puros e idealistas colocaram em mãos do Presidente poderes ditatoriais e foram motivo de grandes disputas políticas e de duas Revoluções Gaúchas a de 1893 e 1923.
0 Marechal Setembrino de Carvalho (8) em suas Memórias relata que conheceu Castilhos em 1890 e diz textualmente: "apesar de seu defeito físico no falar, que aliás sabia disfarçar com grande habilidade, exercia um tal poder de fascinação no acento de sua voz, naturalmente cheia, vibrante, persuasiva ressumando uma energia indômita.. ." Vemos assim que desde 1890 Castilhos tinha problemas de voz.
Apesar da disfonia, atravessou a pior fase de sua vida, a da revolução mais sangrenta da história republicana, a Revolta Federalista. Durante a mesma usou inúmeras vezes a voz em comícios, discursos e na atividade política.
Othelo Rosa (9) escreve: "uma antiga e pertinaz moléstia de garganta, agravada pela despreocupação daquele homem que vivia menos para si do que para os outros, assumia, nesse ano de 1903, formas ameaçadoras".
Em 23 de agosto de 1903, escrevia Castilhos ao Dr. José Montaury: "Infelizmente, ainda não estou liberto da minha pharyngite granulosa, apezar das applicações tópicas de tintura de iodo. Subsistem a dor e a rouquidão, posto que attenuadas. A persistência do mal é devida as implacáveis exigências dos que reclamando ouvir-me, obrigam-me a faltar diariamente, e por tempo demasiado, como ainda hontem aconteceu. Fico assim inhibido de dar ao orgam vocal o repouso necessário, que é o indispensável remédio em affecções de garganta", repetindo, em carta de 4 de outubro de 1903:
"Aguardava em breve a completa debellação da minha pharyngite, para vos responder de viva voz e ter a satisfação de conversar convosco. Infelizmente, porém, essa affecção, posto que sem gravidade, tem sido de uma pertinácia implacável, resistindo a todos os meios terapêuticos suggeridos pelo Protásio e por mim proprio. As dores locaes haviam cessado desde alguns dias, mas reapareceram ante-hontem com intensidade, o que atribui a um novo medicamento prescripto pelo Protásio, pelo que suspendí promptamente o respectivo uso. Por iniciativa minha, acceita por elle, encetei hontem as applicações locaes de electricidade, acompanhadas de massagens. Serão feitas diariamente. Espero colher prompto resultado. Bem podeis avaliar as mortificações physicas e, sobretudo, moraes que me hão decorrido d'essa affecção rebelde. Entre outras contingências, uma que assaz me apoquenta é a que me tolhe o uso do orgam vocal em condições normaes de liberdade, obrigando-me a restringi-lo o quanto possivel".
Castilhos achava que sofria de faringite e parece que os médicos não tinham feito o diagnóstico correto até o ano de 1903.
Na segunda metade desse ano, Castilhos com 43 anos teve seu estado de saúde muito agravado por insuficiência respiratória. Decidiram os médicos que o atendiam, realizar uma traqueotomia. Os melhores médicos do Rio Grande do Sul estavam presentes: Carlos Barbosa Gonçalves, Protásio Antonio Alves, Serapião Mariante, José Carlos Ferreira, Manoel Carneiro, Deoclácio Pereira e Carlos Wallau.
Foi improvisada uma sala cirúrgica na casa do ilustre político, no mesmo local onde hoje se localiza o museu Julio de Castilhos. 0 paciente caminha até a mesa de cirurgia e neste momento anima-o o Dr. Wallau dizendo-lhe:
- Coragem Presidente!
Resoluto responde: - "Coragem eu tenho o que me falta é o ar". Ao deitar-se sobre a mesa, pergunta:
Quem me cloroformiza?
"0 Deoclécio", responde Protásio.
- Bem: Estou tranqüilo.
Morreu no início do ato cirúrgico, certamente por efeito do clorofórmio, pois já estava com asfixia...
Não se sabe se realmente foi realizada a traqueotomia.
Bibliografia
1 . Stevenson, R. S. - Famous illnesses in History. London, Eyre and Spottiswoode, 1962.
2. Fabricant, N. D. - The Deafness of Thomas Edison. Eye Ear Nose Throat Mon. 40: 485-487, 1961.
3. Davis, R. A. - On a Road in Normandy - Surg. Gynecol Obstet. 113, 243-254, 1961.
4. Mclntire, R. M. - White House Physician - New York, Putnam, 1946.
5. Mackenzie, Morell - The Story of a Victorian Tragedy. London, William Heinemam, 1946.
6. Lucente, Frank E. - The impact ot ORL on world history - Trens. Acad. Ophth. and Otol. 77: 424-428, 1973.
7. Morreels Jr. C. L. - New historical information on the Cleveland operation. Surgery 62: 542-551, 1967.
8. Carvalho, Setembrino de Memórias - pág. 39 - Rio de Janeiro, 1950.
9. Rosa, Othelo - Julio de Castilhos, vida e obra, escritos políticos. Livraria do Globo SIA - Porto Alegre, 1928.
* Professor adjunto de ORL na Fac. de Med. da UFRGS e da PUC - Porto Alegre/RS