Ano: 1973 Vol. 39 Ed. 3 - Setembro - Dezembro - (3º)
Seção: Trabalhos Originais
Páginas: 136 a 143
Surdezes Luéticas 1
Autor(es):
Valdomiro J. Zanetle 2,
Rudolf Lang 3,
Niicanor Letti 4,
Moacyr Saffor 5,
Alcione Rocha Souto,
José Vieira Pinheiro,
Alcides Kachava 6
Resumo:
Foram estudados 17 pacientes que apresentavam disacusia neurossensorial e que tinham diagnóstico de lues labiríntica. Quando as provas quantitativas são bem positivas o diagnóstico é fácil. Mas a lués pode estar presente e ser revelada, somente pelo FTA-ABS. Outras vezes somente é descoberta com a pesquisa direta do treponema no liquor. Inúmeros casos de disacusia neurossensorial, vertigens episódicas e zumbidos são causados pela localização do treponema nas estruturas do ouvido interno. A sintomatologia se assemelha a doença de Menière ou a outras patologias da orelha interna. O tratamento é realizado com corticóides e penicilina.
Introdução
A lues, que em latim significa, a peste, o contágio, é ocasionada pelo Treponema Pallidum (Spirochaeta Pallida), e, desde a Idade Média, é uma pandemia. A terapêutica mercurial e arsenical introduzida em 1906, a bismútica em 1921, e a penicilínica em 1943, trouxeram, principalmente essa última, grandes esperanças em sua erradicação.
Nos últimos anos houve um aumento de sua incidência devido aThomossexualidade e a liberdade sexual generalizada. Clinicamente divide-se a lues em três estágios: primária, com o aparecimento do primeiro sinal, geralmente na área genital (o cancro), que é o local da inoculação. A incubação tem a duração de 1 a 3 semanas. A secundária é o estágio contagioso com erupção generalizada mucocutânea. Esta fase acontece entre 6 a 8 semanas após o cancro inicial e a sorologia é positiva. A terciária é a infecção sifilítica que se manifesta entre três a doze anos após a infecção, com grande variabilidade. Chama-se de lues latente o período assintomático entre as manifestações dos diversos períodos.
Recentemente, vários autores (1,2,3,4,5,6) demonstraram a incidência de lesões luéticas no osso temporal, após foi verificada a presença de treponema pallidum em cortes do osso temporal (4). Nos anos de 1972 em pesquisa realizada na Los Angeles Foundation of Otology, sobre as causas da doença de Menière, foi constatado que 7% dos pacientes portadores dessa doença sofriam de lués congênita ou adquirida (8).
Estudamos neste trabalho um grupo de pacientes com manifestações otológicas e que tinham diagnóstico de sífilis.
Material, método e resultados
Foram estudados 17 pacientes. Onze do sexo masculino e 6 do sexo feminino, cujas idades variaram de 20 à 69 anos. (Quadro n.° 1) Quase todos os pacientes sofriam de disacusia neurossensorial em gráus variáveis.
A disacusia foi medida pela média aritmética das freqüências de 500, 1K, 2K, 3K. Quando a disacusia era bilateral apresentava-se sempre assimétrica. (Quadro n.° 2) Destes pacientes 4 eram portadores de cofose unilateral (Quadro n.° 1). Sòmente 9 pacientes queixavam-se de problemas de equilíbrio sendo que 5 tinham episódios de vertigens e 4 com instabilidade. Zumbidos foram relatados por 6 pacientes sendo que 2 tinham acúfeno pulsátil. 0 tempo que decorreu entre o início dos sintomas e o diagnóstico de lues foi de 6 meses a 30 anos.
No estudo da discriminação auditiva foram utilizadas as palavras bissilábicas fonèticamente balanceadas e se verificou o seguinte: 4 tinham discriminação de ambos os lados, alguns casos apresentavam cofose unilateral e discriminação alterada no lado contralateral. Não existe uma relação direta entre o tempo da evolução da doença, a disacusia e a discriminação. Além do exame clínico completo estes pacientes foram submetidos a eletronistagmografia, testes de recrutamento (Quadro n.° 3), Rx dos meatos acústicos internos, e em alguns, testes de tolerância a glicose e exames laboratoriais de rotina clínica.
0 exame sorológico para identificação da lues foi realizado com técnicas de fixação do complemento, o VDRL (Venereal Disease Research Laboratory).
Elizabeth Hunter Deacon e P. Meyer (9) em 1964 desenvolveram uma técnica sensível e específica para a identificação sorológica da lues com uso de imunofluorescéncìa que foi denominado FTA-ABS (Fluorescent treponema antibody absorved test). Em experiências com o grupo Tuskegee (negros que foram inoculados com Treponema pallidum e deixados evoluir sem tratamento) o FTA-ABS demonstrou ser o melhor teste para identificação da sífilis quando comparado com outros métodos. Em nosso trabalho utilizamos este teste para verificar se o paciente foi ou é portador de lues. Entretanto outros autores (10) verificaram positividade do FTA-ABS em 34 pacientes portadores de colagenoses de um total estudado de 243 pacientes.
Todos os doentes foram tratados com glicocorticóides e penicilina, temporariamente houve melhora objetiva e subjetiva. Muitos casos são descobertos por sofrerem reação de Jarisch-Herxheimer quando por uma ou por outra causa tomam penicilina e logo após sofrem crises de perda auditiva, tonturas e outros sintomas gerais típicos da reação. Um de nossos pacientes sofreu perda auditiva aguda após terapêutica com penicilina por estar com infecção pulmonar.
Discussão
0 envolvimento da orelha interna por lues congênita ocorre em 25 a 33% dos casos conforme estudos de Alexander e Lund. Os mesmos autores encontraram predominância em mulheres, enquanto nossa causística encontrou leve predominância em homens.QUADRO N.º 1 - Mostra todos os pacientes com os principais achados patológicos. A hiposia é denominada tipo 1, quando existe uma perda até 30 dBs, tipo 2 de 30 a 60 dBs, e tipo 3 acima de 60 dBs. Nas reações sorológicas estão incluídos os resultados do V DRL e do FTA-ABS.
QUADRO N.º 2 - Mostra o caso do paciente n.º 6 (do quadro 1) que apresentava disacusia neurossensorial bilateral em 15/8/72. Tinha VDRL negativo mas era soro reagente pelo FTA-ABS. Onze meses após voltou com audição pior do OE (12/9/73). Descoberta a causa do problema pelo FTA-ABS, foi tratada e melhorou substancialmente
A evolução da surdez na lues congênita mostra considerável variação em relação ao início, queda da audição e a rapidez da progressão. Geralmente é. neurossensorial com curva chata, mas pode haver elemento de condução associado. Na criança o início é súbito, bilateral, simétrico e profundo não acompanhado de grandes sintomas vestibulares. Nos adultos os sintomas também se iniciam abruptamente, e a curva neurossensorial é achatada parcialmente, mas com flutuações, e progride de forma muito variável. Muitas vezes há episódios de vertigem e zumbido. Em casos de severidade média o deficit é maior nas freqüências graves e é igual a doença de Menière. A surdez neurossensorial é freqüentemente acompanhada de flutuação da discriminação e recrutamento. (Quadro n.° 3). A vertigem é de início súbito, episódica, e acompanhada de náuseas e vômitos. A resposta calõrica flutua e pode haver ausência de resposta. Existe um teste diagnóstico patognomômico de lues congênita: sinal de fístula labiríntica na ausência óbvia de fístula (Hennebert's sign), a resposta nistágmica é muito mais marcada quando se aplica pressão negativa (4).
As manifestações da sífilis congênita precoce correspondem as do estágio secundário da infecção adquirida* enquanto que as manifestações tardias são similares aquelas do estágio terciário de lués adquirida. As alterações histológicas básicas da congênita e adquirida são também semelhantes: infiltração leucocitária por mononucleares e endarterite obliterativa que ocorrem em qualquer órgão afetado. Em reações do tipo médio há infiltração por tecido conjuntivo levando à fibrose inflamatória. Contudo em reações muito severas há formação de gomma caracterizada por: a) necrose central circundada, b) infiltração linfocitária e c) oclusão vascular.
A gomma quanto ao tamanho, pode ter diâmetro microscópico até alguns centímetros. Podem ser afetados: ossos, cartilagens, fígado, rim, pulmões, cérebro, meninges, medula espinhal, pele, córnea e coróide. A lesão óssea é uma osteíte inicial ocorrendo gommas em estágios mais avançados. As vezes pode haver predileção para certos órgãos como é o caso da pericondrite do septo nasal no recém-nascido, dentes de Hutchinson e o envolvimento das cartilagens epifisárias causando redução da estatura.
QUADRO N.º 3 - Mostra o quadro a audiometria automática (tipo II) do OD da paciente do quadro n.O 2, portadora de sífilis labiríntica. A timpanometria estava normal e apresentava irregularidade nistágmica mais acentuada no OD que OE
A queratite intersticial é a manifestação mais comum de lués congênita, causada por infiltração leucocitária da córnea. Os sintomas otíticos da lués congênita causados por alteração patológica do labirinto membra noso são lesões secundárias do osso da cápsula ótica. A patologia primária da cápsula ótica já foi descrita por Mayer e Frazer (5) e Goodhill (7). Aquele dividiu a histopatologia em 3 entidades: 1 - osteomielite gommatosa, 2 - periosteíte gommatosa, 3 - osteíte não gommatosa.
Cada uma dessas situações ocasiona a destruição tecidual em maior ou menor grau. As alterações patológicas podem envolver o periósteo, osso periostal, osso encondral e endosteo individualmente ou coletivamente. Em um corte no local da junção da cabeça do martelo com o corpo da bigorna, Mayer e Frazer (5) mostraram células gigantes tipo corpo estranho, com áreas de absorção óssea. 0 envolvimento ósseo é maior ao redor dos canais semicirculares do que na cóclea. As alterações do labirinto membranoso, são, caracteristicamente, hidropsia coclear e ulterior degeneração dos órgãos internos neurossensoriais auditivos e vestibulares.
A sintomatologia otológica de lués congênita é virtualmente indistinguível da doença de Menière, prediabetes e neuroma, o que faz com que o diagnóstico, a maioria das vezes, seja muito dificultoso para o médico e para o paciente. Embora, clinicamente, a lués congênita é quase sempre bilateral e a doença de Menière, em 90% dos casos, seja unilateral.
Os testes sorológicos para a sífilis que incluem para a sua confecção antígenos lipoidais ou cardiolipidicos (VDRL) ou as várias modificações de floculação, (Kahn, Kline, Hinton, Wassermann). Podem apresentar reações biológicas falso-positivas. Essas reações falso-positivas usualmente são de fraca intensidade, e transientes. Geralmente se tornam negativas em 6 meses. Raramente podem persistir por anos ou meses. Quando o resultado falsopositivo for de longa duração devemos pensar em doença auto-imune ou disproteinemia. Qualquer doença febril ou qualquer imunização é uma causa potencial de reações falso positivas. Falso- positividade também é encontrada na seguintes situações: 1 - Vaccinia (qualquer), 2 - Mononucleose infecciosa, 3 - Malária, 4 - Lepra, 5 - Doenças do trato respiratório superior, 6 - infecções espiroquéticas (bouba, (yaw), pinta, febre recurrente), 7 - Lnfogranuloma venéreo, 8 - Cancróide (bacilo de Ducrey), 9 - Sarampo, 10 -Varicela, 11 - Pneumonia atípica, 12 - Hepatite infecciosa, 13 - Febre da mordedura do rato, 14 - Lupus eritematoso disseminado, 15 - Tireoidite de Hashimoto.
0 diagnóstico é realizado com relativa facilidade quando junto com o FTA-ABS as reações quantitativas forem altamente positivas ou com a terapêutica de glìcocorticóides houver melhora intensa no quadro subjetivo, e a discriminação por bissílabos melhorar. Uma vez que o paciente adquiriu sífilis torna-se soro-reagente o resto da vida. Quando as demais reações clássicas de lués forem negativas e o FTA-ABS for reagente há que se excluir o "Beading-Phenomenon" com as colagenoses, e pesquisar o trepo-nema diretamente no liquor, humor aquoso e gânglios linfáticos e ou fígado, pois, conforme demonstra o excelente trabalho de Leo W. Mack e col. (2) encontraram treponema vivos com o método de Krajiian. Collart (10) encontrou treponemas vivos em gânglio linfático de paciente que já havia tomado 150 milhões de unidades de penicilina. Kerr e col. (11) demonstraram que a penicilina comum, mesmo em altas doses não atravessa a barreira vascular do ouvido. A ampicilina, entretanto, administrada em doses de 1,5 g cada 6/6 h alcançaria níveis terapêuticos no ouvido interno.
Dos nossos casos podemos concluir que o moderno otologista deve ter alto grau de suspeição para a pesquisa de lués quando o paciente for portador de queixas só ou agrupadas de vertigem, zumbido e surdez. O tratamento preconizado é a prednisolona em doses de 20 a 40 mg por dia e cuja dosagem é controlada periodicamente com a discriminação por bissílabos. A dosagem ideal seria a que levasse o paciente a ter discriminação social útil e assim o manter. A penicilinoterapia deve ser dada somente por 3 a 4 semanas do uso do glicocorticóide. A penicilina sozinha pode ter efeitos catastróficos, como ocorreu a um de nossos pacientes que ao lhe ser administrado este medicamento, por problema pulmonar, sofreu cofose bilateral irreversível por reação de Jarisch-Herxheimer.
Dos 17 casos estudados muitos tiveram excelentes resultados e outros permanecem em observação.
Summary and Conclusions
Were treated 17 patients with luetic sensory neural deaffness. When STS were strong the diagnostic was easy. Late syphilis generaly was conspicuous only by the FTA-ABS. In a late cases only with Krajiian silver stain on the LCR. Sensory neural deaffness episodic vertigo, tinnitus aurium may be caused by treponema pallidurn in the inner ear. Syntomatology is quite similar to the Menière disease or other patology of the inner ear. Treatment is made with prednisona, penicillin or ampicilin. Many patients treatead were quite good results and other patients are being treated.
Bibliogratia
1. As treponemoses - Rev. Ass. Med. Bras. - Supl. de Atualização, Capítulo IV - 33 : 21-23, 1973.
2. Merck, L. W., Smith, J. J., Walter, E. K., Montenegro. E. R., Nicol. N. G. - Temporal Bone Treponemes, Arch. Otolaryng. 90: 37-40, 1969.
3. Karmody, C. L. e Schuknecht, H. F., - Deaffness in congenital syphilis. Arch. Otolaryng. 83: 18.27, 1966.
4 Krajiian, A. A. - The clinical application of a twenty minutes Stainnig method for Spirochaeta Pallida in tissue sections. Ana. J. Syph. Gon. Vener. Dis. 23: 617-620, 1969.
5. Mayer, O. and Frazer J. S., - Pathological Changes in the ear in the late congenital syphilis. J. Laryng. 51: 683-714, 1963
6. Perlman, H. B. e Seek, J. H. - Late congenital syphilis of the ear - Laryngoscope - 62 : 1175-1196, 1952.
7. Goodhill, V. - Syphilis of the ear A Histopathological Study - Ann. Otol. 48: 676-706, 1939.
8. Los Angeles Foundation of Otology - Annual Progress Report - 1972.
9. Hunter, E., Deacon, W. E., Meyer, P. E. - An improved FTA Test for syphilis, The absorption procedure (FTA-ABS). - Public Health Reports 79: 410-412, 1964.
10. Collart, P. - Persistence of Treponema Pallidum - Late syphilis in rabbits and humans. Government Printing office : 285, 1964.
11. Kerr, A. G., Gordon, D. L., Smyth y Landon H. D. - Congenital Syphilitic Labyrinthitis. Arch. Otolaryng. 91 : 474-478, 1970.
Endereço: Instituto de Otologia Andradas, 1711 - 3.0 andar Porto Alegre - RS
1 Trabalho realizado no Instituto de Otologia - Porto Alegre.
2 Médico otologista.
3 Prof. de O.R.L.da Fac. de Medicina da PUC - Porto Alegre
4 Prof. adjunto de O.R.L. da Fac. de Med. da UFRGS e PUC.
5 Prof. Assistente de O.R.L. da Fac. Católica de Medicina - Porto Alegre.
6 Médicos residentes do Instituto de Otologia - Porto Alegre.