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Ano:  1973  Vol. 39   Ed. 3  - Setembro - Dezembro - ()

Seção: Trabalhos Originais

Páginas: 125 a 132

 

Otite Média Tuberculosa COMENTÁRIO A RESPEITO DE UM CASO

Autor(es): Lidio Granato*,
Luiz Augusto de Lima e Silva**

Embora a incidência de otite média tuberculosa tenha caldo multo nas duas últimas décadas, a tuberculose pulmonar é ainda uma doença que necessàriamente entra para diagnóstico diferencial com outras, capazes de de comprometer o trato respiratório. Portanto não devemos esquecer da possibilidade de que uma otorreia crônica, resistente a tratamentos convencionais, possa ser devida ao bacilo da tuberculose.

A tuberculose do ouvido médio é atualmente, patologia tão rara, que mesmo os livros de texto apenas fazem menção a ela. Perde em frequência para a tuberculose de laringe, e mesmo trazendo grandes prejuízos para a audição ela quase nunca coloca em risco a vida do paciente.

A primeira descrição da mastoidite tuberculosa foi feita no começo do século XVIII por Jean Louis Petit (1) antes mesmo da descoberta do bacilo de Kock em 1882. Desta época em diante sabe-se que houve um número crescente de Otite Média tuberculosa diagnosticada. Em 1915 Turner e Fraser (2) verificaram que, abaixo da idade de 2 anos, 27% dos casos em otite supurativa eram tuberculosas e nas crianças abaixo de 1 ano a porcentagem aumentava para 50%, provavelmente pela ingestão de leite infectado, não pasteurizado. Hoje acredita-se que esta porcentagem não atinja 3% de todas as otites médias supurativas e o otologista moderno geralmente não leva em consideração para o diagnóstico diferencial a não ser que haja uma suspeita de lesão em outro órgão. (3).

Segundo Shenck (4) (1969) e Baar (1942) no adulto, a tuberculose é sempre secundária a um foco em qualquer outra região, porém, usualmente está no pulmão. Muitos autores acreditam que possa existir "tuberculose primária" no ouvido médio em crianças, baseando-se no fato de que, após estudo minucioso post-mortem nos orgãos destes pacientes, não se verificou lesão nenhuma.

Qualquer tipo de tuberculose é muito rara nas primeiras semanas de vida, porém mais tarde, ainda na infância, podemos ver sérias complicações desta doença. No adulto, às vezes a cura pode se dar até espontâneamente. As principais complicações da otite média tuberculosa são: meningites, labirintites, paralisia facial e abcesso cerebral. A infecção para o ouvido médio pode surgir das seguintes formas:

1.º - Propagações através da trompa de Eustáquio pela tosse ou espirro, sem envolvimento do epitélio da trompa (5). Adams (6) (1942) estudando a tuba em pacientes que foram toracotomizados por apresentarem tuberculose pulmonar, mostrou ser a permeabilidade tübária anormal, um fator importante no desenvolvimento da otite média tuberculosa.

2.º - A via hematogénica é outro fator da propagação do processo tuberculoso, usualmente de um foco ativo pulmonar. Proctor e Lindsay (7) (1942) conseguiram produzir experimentalmente tuberculose no osso temporal de animais, injetando bacilos em suspensão, na artéria comum.

Também tem-se encontrado lesões no osso temporal, sem mesmo comprometimento do ouvido médio e com escarro negativo.

3.º - Através de uma perfuração da membrana timpânica demonstrada por Spencer (8) em 1926.

4.º - Propagação, direta para o osso temporal, de estruturas intracraniais (9).

O quadro clínico da tuberculose de ouvido médio pode apresentarse com algumas variedades, porém classicamente o que se observa é uma otorreia escassa de início, profusa mais tardiamente, purulenta ou muco purulenta sem dor. O exame otoscópico geralmente revela destruição da membrana timpânica com perda de seus limites e com granulações. Ocasionalmente há múltiplas perfurações na membrana que coalescem rapidamente e formam uma ampla perfuração (10).

Outros achados que parecem sugestivos de tuberculose de ouvido médio é a presença da paralisia facial e perdas auditivas severas em contraste com pouco que se poderia verificar na otoscopia (11). 0 aumento dos gânglios pré-auriculares é um achado tido como comum e alguns consideram como patognomonico de mastoidite tuberculosa em casos de otite média supurada (12).

Destruição óssea extensa observada durante a mastoidectomia pode sugerir a etiologia tuberculosa. Também após a mastoidectomia, quando há persistência de granulações recidivastes ou cura lenta ou incompleta, otorréia persistente e formações de seqüestros ósseos podem corresponder à mesma causa.

A radiografia do osso temporal geralmente não ajuda muito no diagnóstico diferencial com outras infecções não específicas. No entanto, numa mastoide bem pneumatizada com otite média crônica, pode sugerir tuberculose.

0 diagnóstico é feito pela inoculação em cobaia do material suspeito, bacterioscópico, cultura e finalmente o estudo histopatológico da granulação (4).

A bacterioscopia nem sempre é positiva, a não ser no início da doença, enquanto não surge a infecção mista (secundária) que vai dificultar a identificação dos bacilos álcool-ácidos resistentes. A cultura também muitas vezes não é suficiente para o diagnóstico. A inoculação geralmente nestes casos é positiva (13). 0 exame microscópico do tecido envolvido, pode revelar uma mucosa com processo inflamatório crônico com necrose e ulcerações. Infiltrado linfocitário denso é encontrado em associação com células epitelioides, células gigantes e tecidos fibrótico novo. Freqüentemente segundo Jackson (14) (1959), ocorre a cura com um denso tecido fibrótico, cicatrizando a mucosa do ouvido médio e levando a uma severa perda condutiva da audição.

0 diagnóstico diferencial da otite média tuberculosa tem que ser feito com a otite média crônica inespecífica, retículo endoteliose com ataque inicial ao ouvido (15), tumores, lues do ouvido médio (16) etc.

O tratamento segundo observa-se na literatura, varia muito de acordo com o autor, porém de maneira geral consiste no tratamento tópico, " toillete" da cavidade com microscópio cirúrgico, retirando polipos e granulações ou mesmo mastoidectomia radical ou mastoidectomia com timpanoplastia, associados sempre às drogas tuberculostáticas.

Infelizmente como a otite média tuberculosa não desapareceu completamente do nosso meio, embora seja rara, julgamos interessante a apresentação deste caso, para lembrarmos da inclusão desta patologia no diagnóstico diferencial da otite média crônica supurada.
Apresentação do Caso
J.T.G., reg. 871756, 30 anos, raça amarela, solteiro, procedente de S. Paulo (Capital).

O.D.: Otorréia há mais ou menos 2 anos no ouvido direito.

i-LM.A. Refere o paciente que há mais ou menos 2 anos iniciou otorréia com mau cheiro acompanhada de diminuição da audição no ouvido direito. Fez vários tratamentos sem melhora. Há 6 meses apresentou paralisia facial que cedeu totalmente após 1 mês. Refere zumbidos desde o início da doença e tonturas ocasionais.

A.P.: Viroses da infância.
No exame ORL-Ouvido-Direito - conduto com bastante secreção amarelada sem cheiro. Perfuração ampla, não se visualizava o rebordo timpânico, com a mucosa da caixa bem edemaciada formando granulações. O.E. - normal.

Nariz e garganta: ndn.
A impressão diagnóstica foi de: Otite média crônica simples.
Ex. subsidiários: Audiometria - revelou anacusia do ouvido direito. Rx do Temporal: mastoides bem pneumatizadas com ligeira diminuição de células no lado direito. Observou-se em algumas posições, áreas de osteólise na região ático-antral D. (Fig. l a, e b.).

Enquanto o paciente aguardava a cirurgia foi instituido um tratamento à base de tetraciclina - comprimidos de 250 mgr cada 6 h e gotas auriculares de cloranfenicol. 0 tratamento não surtiu nenhuma melhora e o paciente foi submetido a uma mastoidectomia radical sob anestesia geral.

O achado cirúrgico revelou grande massa esbranquiçada, caseosa semelhante a queijo, ocupando toda caixa, aditus e antro. 0 osso da mastoide foi removido em grande quantidade e toda parede posterior do conduto ósseo saiu em monobloco, como seqüestro. Em conseqüência o nervo facial ficou exposto em quase toda sua extensão, posto que na caixa do tímpano já estava descoberto e havia muita granulação sobre ele junto à janela oval. Ausência de ossículos.

0 material obtido na cirurgia, foi encaminhado para exame histopatológico. 0 exame revelou processo inflamatório com extensa área de necrose caseosa com proliferação histiocitária e fibroblástica, tendendo a formar granulomas em focos, de infiltrado linfoplasmocitário e áreas de neoformações vasculares com raras células gigantes (fig. 2a. e b).

0 diagnóstico microscópico foi de processo inflamatório com características de etiologia tuberculosa.

O exame bacterioscópico foi negativo para o bacilo de Koch.
Com este achado histopatológico, resolvemos fazer um estudo radiográfico dos pulmões deste paciente. 0 Rx simples de tórax revelou "o desaparecimento do abaulamento costo-frênico" mostrando derrame pleural em ambos os pulmões. Também espessamente pleural bilateral com fixação alta das cúpulas frênicas. Área de densificação do segmento lingular e nódulos com características inflamatórias a esquerda.

DIAGNÓSTICO: Tuberculose pulmonar.



FIG. 1-a - Posição de Schuller: mastoides bem pneumatizadas, porém nota-se um velamento das células do lado direito e em alguns pontos mostrando coalescência com desaparecimento do trabeculado celular



FIG. 1-b - Posição de Mayer - o mesmo aspecto da figura anterior



FIG. 2-a - Observa-se em (A) grande área de necrose caseosa e em (B) área de infiltrado linfoplasmocitário com raras células gigantes (seta). (Fotomiscroscópio Zeiss HE, - 40X)



Fig. 2-b - 0 mesmo aspecto da figura anterior



FIG. 3 - Rx simples do tórax mostrando nitidamente o desaparecimento da cúpula costo-frênica bilateral, principalmente a direita



Comentário

Este caso, a exemplo do que ocorre com a maior parte dos publicados na literatura, teve seu diagnóstico suspeitado apenas no ato cirúrgico. Geralmente todos eles apresentavam otorréia crônica, experimentaram uma série de tratamentos, porém sem resultado. É certo que o paciente apresentava sintomas e sinais bastante sugestivos de mastoídite tuberculosa, como por exemplo: episódio de paralisia facial direita, morte coclear do mesmo lado, granulações pálidas tomando todo ouvido médio e destruindo totalmente a membrana timpãnica, porém, não se fez o diagnóstico porque não se cogitou desta patogenia. Faltava apenas o infartamento pré-auricular ou cervical descrito por muitos autores para completar o quadro.

O Rx. do osso temporal mostrava uma mastoide direita pneumatizada com áreas de coalescência. Este dado também sugere tuberculose.

O paciente foi levado a uma intervenção cirúrgica e isto é o pior que se poderia fazer para ele no momento. Sabemos que no paciente adulto a otite média tuberculosa é sempre secundária a um foco, que geralmente está no pulmão. Como ficou positivado depois, o paciente realmente apresentava lesão pulmonar que havia passado desapercebida num estudo abreugráfico de baixo padrão e também porque o paciente de origem japonesa informava muito mal os seus problemas. Felizmente no post-operatório não houve agravamento da doença, como poderia ter ocorrido e o paciente foi encaminhado a um dispensário onde está internado, recebendo tratamento com drogas tuberculostáticas e evoluindo bem. Ao nosso ver por falta de diagnóstico pré-operatório, o paciente fez o tratamento em ordem inversa, pois o terapêutico deveria preceder o cirúrgico e este último, se necessário, somente quando a cultura de bacilos álcool-ácidos resistentes fosse negativa.

Para concluir chamamos a atenção aos seguintes pontos:
1.° - Casos de otite média crônica em que a otorréia não cede com o tratamento habitual, pensar em tuberculose, quer os pacientes tenham tuberculose pulmonar ou mesmo livre dela.
2.° - A super-infecção geralmente mascara a otite média tuberculosa e o estudo bacterioscópico e a cultura freqüentemente falham no diagnóstico, exigindo então um estudo histopatológico como foi o caso presente, para elucidação do mesmo.
Sumário

Os autores apresentam um caso de otite média tuberculosa cujo diagnóstico foi suspeitado apenas no ato cirúrgico. O paciente era também portador de tuberculose pulmonar que passara desapercebida. Eles insistem na inclusão da Otite Média tuberculosa como diagnóstico diferencial em casos de otite média supurada e em caso suspeito lançar mão de todos os exames subsidiários possíveis para elucidação diagnóstica pré-operatória.

Summary

The authors reported a case of chronic otitis media that was diagnosed as secondary process to pulmonary tuberculosis. The surgical aspect of the wound was suggestive of a specïfic ínflamatory process confirmed after histopathological examination. The authors enphasize the importante of being aware of this diagnostic possibility whenever a strange case of chronic otitis media is being treated and a complete examination of the patient should be done before operation.


Referências Bibliográficas

1. MILLER, J.: Aural tuberculosis. Arch. Otolaryngol., 20: 677-692, 1934.
2. TURNER, AI. & FRASER, J. S.: Tuberculous otitis. J. Laryng. Otol. 30: 209-215, 1915.
3. BAAR, H. & SAND EVANS, R.: Primary tuberculous complex of middle ear. J. Laryng. Otol., 56: 159, 1941.
4. SHENCK, H. P. & COATES, G. M. - Otolaryng. Hagerstow Md. Holber Medical Division, Hoper and Row Publishers 1961.
5. WATKYN THOMAS: Diseases of the throat, nose and ear. Springfield, Charles C. Thomas, 1953 III, p. 720.
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7. PROCTOR, B. & LINDSAY, J. R.: Tu berculosis of the ear. Arch. Otolaryngol., 35: 221-249, 1942.
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16. SMOLER, J., LEVY PINTO, S. VIVER, G. and ORTEGA, I.: Syphilis: a difficult diagnosis, Laryngoscope, 78: 404-410, 1968.




* Professor Assistente da Clínica de ORL da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
** Assistente Voluntário da Clínica de ORL da Santa Casa de São Paulo.

End.: Lidic Granato
Rua Tabapuã, 1341 - ap. 92 Itaim - 04533 - São Paulo

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