Ano: 1985 Vol. 51 Ed. 3 - Julho - Setembro - (6º)
Seção: Notícias e Comentários
Páginas: 42 a 45
Sessão Extraordinária do Departamento de Otorrinolaringologia da Associação Paulista de Medicina com a Fondation PortWann (Delegação para o Brasil)
Autor(es): Guedes de Melo 1
A Fondation Portmann (Delegação para o Brasil), o Consulado Geral da França em São Paulo, a Aliança Francesa de São Paulo, a Sociedade Brasileira de ORL, o Departamento de ORL da APM, a Sociedade Brasileira de fitologia,' a Sociedade Franco-Brasileira de Medicina de São Paulo, a Clínica ORL da FMUSP, a Clínica ORL da EPM, a Clínica ORL da FCM da Santa Casa de São Paulo, a Clínica ORL da FM da UFRJ, a Clínica ORL da FM de Botucatu (Unesp), a Clínica ORL da FM de Ribeirão Preto (USP), a Clínica ORL da FM de Campinas (Unicamp), a Clínica ORL da FCM de Belo Horizonte, a Clínica ORL do HSPE "FMO", a Clinica ORL do Instituto Penido Burnier (Campinas), a Fundação Affonso Ferreira (Campinas), a Associação Prof. José Kós, a Associação William House de Otologia, o Departamento Brasileiro da Escola de Ensino Pós-Universitário da Fondation Portmann e a ASPEF (Associação dos Ex-Alunos e Ex-Estagiários das Escolas Francesas) realizaram sessão solene em homenagem póstuma ao Eminente Mestre da ORL, Professor Georges Portmann, dia 23 de abril de 1985, no auditório nobre da Associação Paulista de Medicina, sob a presidência do Exmo. Sr. Ministro Plenipotenciário Renê 13ucco-Riboulat, cônsul geral da França em São Paulo, com a seguinte "Ordem do Dia":
1. Homenagem ao Mestre - "Georges Portmann - sua vida, sua escola" Conferência proferida pelo Dr. Alexandre Medicis da Silveira (vice-presidente para a América Latina e delegado geral para o Brasil da Fondation Portmann), que será publicada oportunamente.
2. Adeus ao Mestre - Oração proferida pelo Dr. Guedes de Melo, do Instituto Penido Burnier, de Campinas, cujo texto vai transcrito a seguir:
Adeus ao Mestre
Preso de emoção, tomei conhecimento da morte de Georges Portmann, ocorrida no dia 24 de fevereiro.
Fui o seu mais antigo discípulo brasileiro, tendo estagiado na Clínica Universitária de Bordeaux nos remotos tempos de 1927-28, coincidindo como o início de sua fulgurante carreira, como titular da cátedra de ORL desde 1926.
Saudoso do agradável convívio, não resisto ao impulso de relembrar a personalidade inconfundível do Mestre. Não foi ele apenas o Professor inigualável, o Chefe de Escola e a figura proeminente da ORL francesa. O seu nome transpôs fronteiras, expandiu-se ao mundo científico, atingiu os cinco continentes, projetando-o como vulto destacado da especialidade, não só no ensino, na clínica ou cirurgia, como também nó terreno da pesquisa científica, em que ressaltam os estudos pioneiros sobre o saco endolinfático e a doença de Ménière.
Desde os primeiros contatos com o serviço de Portmann, senti-me atraído pelo espírito eminentemente prático dos ensinamentos. A época, já despontava um trabalho de equipe bem estruturado, definidas as tarefas dos colaboradores - Despons, Retrouvey, Leduc, Martineaud e Trautmann, entre outros. A Georges Portmann, le Patron, competia a função primordial, a de dirigir a discussão de cada caso clínico ou cirúrgico. O exame inicial dos pacientes era o trabalho básico atribuído aos estagiários, a eles cabendo,desde logo, a apreciação da história clinica, a análise dos sintomas funcionais e sinais objetivos, de modo a localizar a lesão, estabelecer o diagnóstico diferencial e, finalmente, sugerir a terapêutica adequada. Tal incumbência era renovada dia após dia, num clima de disciplina sistematizado pelo Chefe, cuja opinião viria a seguir, confirmando ou invalidando, com argumentos, as conclusões a princípio timidamente apresentadas.
No decurso dos exames, Portmann interrogava a fundo os estagiários, então já numerosos, provindos de vários países. Assim, as consultas no . Saint André, ou rio Saint-Raphael implicavam em observações cuidadosas e metodizadas, transcorrendo em ambiente de troca de idéias altamente instrutivo. O mesmo acontecia antes e após as intervenções cirúrgicas, no Tondu, quando os tempos operatórios eram habilmente desenhados, em cores, pelo Patron. As perguntas aos presentes, algo embaraçosas, não se restringiam ao diagnóstico ou às indicações de ordem clínica e cirúrgica. Mereciam as relações anatõmicas atento exame e as indagações a respeito conduziam, por vezes, o auditório a situações incômodas e constrangedoras. Em conseqüência, nas raras horas disponíveis, eram os estagiários estimulados a apurar os estudos, sem esquecer também o velho Testut.
O espírito de síntese - peculiar ao gênio francês - transmitia ritmo de extrema eficácia ao ensino: simplicidade; método, clareza e objetividade redundavam em real aproveitamento, acrescido, aliás, pelos contatos cotidianos com o Patron e os colaboradores, ensejando progresso na feitura das observações e nas conclusões diagnósticas. A característica do ensino era o bom emprego do tempo. Nada de discussões acadêmicas e estéreis, sem maior vantagem para a formação inicial do especialista.
Notando o meu interesse e o do meu companheiro de estudos, Luciano Rodriguez Echandia, mais tarde catedrático de ORL em Mendoza, na Argentina, Portmann nos interpelava com muita freqüência, desenvolvendo-se, desse modo, maior afinidade entre mestre e discípulo. Desta afinidade resultou estreito relacionamento, solidificado por duradoura amizade desde o meu retorno ao Brasil. Tive então, o prazer de recebê-lo várias vezes em visita ao meu país, a primeira em 1929, no Instituto Penido Burnier.
Foi Georges Portmann mestre infatigável e devotado ao ensino. De segunda a sexta-feira, desenvolvia constante atividade nos hospitais de ensino, onde permanecia desde as primeiras horas e ao longo de toda a manhã, reservando para o período da tarde o atendimento à clientela particular. O trabalho incessante não o impedia, entretanto, de proferir magníficas aulas á noite, após o jantar, as quais se- prolongavam, algumas vezes, até quase a meia-noite. O assunto, aparentemente árido, ele sabia tornar atraente, ilustrando a exposição através de deduções fisiopatológicas e desenhando em cores, com perfeição e destreza invejáveis, as intrincadas conexões nervosas e arteriais de cada região anaomca.
Espírito didático por excelência, reunia Portmann predicados que o levaram, em poucos anos, à culminância de professor insigne. Dedicação ao ensino, notória capacidade, inteligência brilhante, palavra fácil, senso de clareza e objetividade, além de clinico perspicaz e hábil cirurgião,, conhecedor profundo da anatomia. A tais atributos, juntava o dom de uma personalidade dinâmica, otimista e acolhedora que a todos encantava e atraía.
Convidado para missões científicas no estrangeiro, contribuiu decisivamente para engrandecer o prestígio intelectual da França. Manteve também cursos regulares nos Estados Unidos e foi designado pela Organização Mundial de Saúde para ministrar aulas na índia. Visitou numerosos países, inclusive a União Soviética, em busca de estreitamentos científicos com a França. Dirigiu; todos os anos, em Bordeaux, cursos em língua inglesa, não só básicos para estudantes, como avançados para especialistas (post-graduate). Deixa o Mestre copiosa bibliografia e alguns compêndios considerados clássicos em termos de especialização. Lega uma verdadeira escola internacional de ORL, cuja.tradição vem sendo fielmente mantida por seu filho Michel, também herdeiro dos privilegiados dotes do progenitor.
A Georges Portmann, a perene lembrança do Professor vivaz, dos trabalhos organizados, da eficiência dos ensinamentos, tão bem condensada na sentença: ta qualité d'un enseignement est sa simplicité
Ao Velho Mestre, o louvor pela atividade pertinaz em reavivar o poderio espiritual do seu país, cruzando continentes como mensageiro qualificado da ciência francesa, no desempenho fiel da divisa un pays est plus grand par son action spirituelle que par Ia forre de ses armes
Ao Grande Professor, o testemunho da saudade, do reconhecimento e da veneração dos seus numerosos alunos e admiradores espalhados pelo imenso território brasileiro.
1 - ORL do Instituto Penido Burnier (Campinas).